sexta-feira, 27 de março de 2015

Anna Magnani, Salvador Allende, Roberto Rossellini














Sobre os filmes «Amor» (1948) e «A Força e a Razão» (1971) de Roberto Rossellini. A propósito do ciclo sobre Roberto Rossellini, iniciado a 26 de Março de 2015, no cinema Nimas, em Lisboa

Anna Magnani, Salvador Allende, Roberto Rossellini
Sempre achei estranho o facto de o «neo-realismo» ser um tema olhado de lado, quase proscrito, pelos lados da crítica (talvez mais na literatura do que no cinema). Sempre achei, também, que alguns dos meus realizadores preferidos, Federico Fellini, Luchino Visconti, Vittorio De Sica, Roberto Rossellini, fizeram-me entender o Mundo colocando-o num iluminado palco real. Para mim, estes realizadores ajudaram-me a consciencializar a Verdade através de uma extraordinária confusão entre realismo, expressionismo e modernismo. Toda a Arte numa só Estética! Quase poderia dizer que os pressupostos do neo-realismo foram por eles proclamados e pelos mesmos negados. «Amor» traduz dois grandes planos apaixonados por Anna Magnani, ora em «A Voz Humana», palavra por palavra de Jean Cocteau, ora em «O Milagre», uma história mais religiosa que muitas homilias sagradas, escrita por Federico Fellini. Neo-realismo? Não ou talvez sim… Dois filmes num só, mais políticos do que parecem.
A sessão completa-se com uma lúcida e comovente entrevista a Salvador Allende, realizada por Rossellini a partir de Emidio Grego, onde o grande estadista assassinado fala superiormente do Homem do Século XXI – o Homem Humanizado, o Homem Irmão. Allende fala certo, muito certo, mas equivoca-se no século. Talvez o Homem Novo seja o do século XXII.

jef, março 2015

quinta-feira, 26 de março de 2015

Sobre o filme «Os Combatentes» de Thomas Cailley














Feminino ou Masculino

Gosto particularmente de filmes que pouco parecem contar. Principalmente comédias. Coisa difícil em cinema. «Os Combatentes» começa com uma cena «extra-curricular» que define toda a hora e meia que se segue. Será lícito discutir a qualidade e o preço de um caixão no dia da morte do pai? Os dois irmãos sabem do que falam, são carpinteiros e tentam, a custo, segurar a empresa de casas pré-fabricadas deixada pelo progenitor. A seguir é apenas uma comédia de Verão que, distraidamente, debate: vida civil ou vida militar; lealdade ou cumplicidade; treino ou conhecimento adquirido; resistência ou abnegação; diversão ou aborrecimento; preço da madeira ou incêndio florestal; consciência ou alienação. Enfim, coisa pouca! Fica ainda na retina o olhar olhado bem de perto de Madeleine (Adèle Haenel) ou de Arnaud (Kévin Azaïs). Feminino ou masculino, a questão eterna!

jef, março 2015

«Os Combatentes» de Thomas Cailley (2014). Com Adèle Haenel, Kévin Azaïs, Antoine Laurent, Brigitte Roüan.

quarta-feira, 25 de março de 2015

«O Osso da Borboleta» de Rui Cardoso Martins. Tinta da China, 2014.



Grande enciclopédia das imagens e das sombras

Ao quarto romance, Rui Cardoso Martins identifica uma mudança no rumo da sua escrita. Afunda-lhe o propósito, aprofunda-lhe o caminho, dá-lhe o peso dos quartos fechados, dos sótãos escuros, dos prédios em vias de extinção. Se os romances anteriores mostram a acção na rua ou debaixo de terra ou ao lado dos aviões, este volta-se para dentro de casa, em palco claustrofóbico, em cenário minúsculo onde as personagens, vestidas de forma espampanante como na ópera, temem estar frente-a-frente e evitam-se, diálogo a diálogo, ou melhor, monólogo a monólogo. 

Contudo, aqui está tudo o que já era contado, somente é alterado o modo dos que por aqui vivem. Ou sobrevivem, entre a espada e a parede, entre o passado e o futuro, sejam estes últimos olhados de frente ou lá para trás. Antes, o assunto era dissecado pelo olho grande do macroscópio, agora o mundo é dos seres pequenos e microscópios, bactérias carnívoras, protozoários ferozes, onde os animais se multiplicam num imenso jardim zoológico de cristal, como escrevia o outro. Mas o mundo será o mesmo e a consciência da escrita como arma política mantém-se e prolonga-se neste acto de narrativa melodramática. As personagens estão sós, como anteriormente, mas aqui encontram-se para se odiarem, para se repugnarem, para não se compreenderem. Até ao breve capítulo final, libertador. E a rejeição de uns pelos outros, não é mais do que rejeição de uma sociedade ignóbil que abandona os cidadãos de que se alimenta. Em função canibal ou autofágica. 

Aqui voltamos a encontrar a torrente imparável de histórias, imagens, ideias, sombras. E, neste romance, é tão colossal a velocidade da associação de objectos contabilizados, de metáforas, alegorias, parábolas, que ficamos com a percepção de que é a própria sombra criada por estes, no nosso cérebro, que dá a claridade de uma imagem que, afinal, já era nossa conhecida. Um verdadeiro tratado de semiologia, a ser analisado segundo Wittgenstein ou Umberto Eco. E se a maldade, a muita maldade, e a memória, a muita memória, não forem suficiente há que repetir a frase vezes sem conta, como dizia o outro. Fixar o caruncho, o escarro, as guerras, os pombos, o naufrágio. Poder-se-ia dizer que este romance é modernista, expressionista, de certo modo diabólico, mas seria um erro crasso. «O Osso da Borboleta» não faz mais do que repetir as imagens até que fiquem dentro de nós de cor, de coração, como fazia o velho repetidor Homero. Tal como os velhos clássicos, a estratégia de Rui Cardoso Martins foi sempre a mesma: reconhecer que a Realidade não pode ser real sem a Ficção, o Mundo não existe sem a Imaginação, o Futuro desmorona-se se lhe retirarem a Poesia.

Em todos os grandes escritores, os ciclos iniciados são falsos novos ciclos. A escrita dos grandes escritores está cristalizada numa forma apenas, embora mutante, que os leitores, melhor que ninguém, sabem identificar!

jef, março 2015

terça-feira, 24 de março de 2015

A realidade existe. Parte III [Presente do Indicativo]















Por vezes, gosto de pensar que só existe o Presente do Indicativo. Imagino um País com uma língua única cujos verbos se conjugam, invariavelmente, no dia presente. O povo troglodita que utiliza tal linguagem vive nas cavernas desse País e tem a mania de falar do passado sempre no momento indicativo. Quando planeia o futuro, em agendas e calendários, organiza-o sempre no acto contemporâneo.

«Não olho mais para jornais. Não dizem nada que não deva ser dito e sempre na ordem pela qual os mandam dizer. Dizer por dizer, o infinitivo é perfeito para a gentalha que lhes paga! Além disso, a crise obscurece qualquer sinal de alegria. Não só a crise, raios!, principalmente a imagem que dela publicitam! A imagem que agitam à frente do olhar escravo dos miúdos que devem partir, dos velhos que devem morrer, das crianças que não devem chegar, dos cancerosos que não devem tanto despender. O horror do emprego incerto é o maior incentivo para a criatividade, repetem! Mais vale uma migalha na minha mão, muito mais do que as mil na mão do patrão. E que guarde bem as dele pois é daí que sai a minha! O temor do perigo é tão bom para o povo como o de Deus, de Dom Sebastião encoberto, de Salazar poupado, de Cavaco armilar, do Fado sempre a nascer. Como cogumelos! Ai os transtornos da República que não nos deixam sossegados.»

«Não me diga que a Caparica, este ano, não está magnífica! As ondas estão grandes mas suaves, os mergulhos francos, a areia farta, quente mas sem escaldar. Imagine só: duas filas de barracas e três de toldos! Um areal dos diabos! O creme nivea nas costas das crianças que vão já a correr para o mar com os colchões repimpa. As bolas de berlim, fresquíssimas, as batatas fritas nos pacotes de papel vegetal, maravilhosas. Apenas os robertos estão, hoje, um pouco esganiçados e nem conseguem levar a melhor sob as traulitadas que dão na garupa do touro. Por que falam eles um espanhol tão esquisito? Então logo, sempre estamos combinados para ir às cadelinhas e depois à sardinhada?»

«A sonda Hergé chega a Marte e entra em prospecção. Descobre água no sub-sub-sub-solo silicioso. A notícia espalha-se, as águas agitam-se, os mercados enervam-se. A equipa servo-turco-croata ganha batalha judicial contra a holding israelo-palestiana, após lançar OPA hostil sobre o sistema integrado Apolo-Laika, em falência técnica mas sem passivos tóxicos. O exército especial chega para proteger as diversas equipas que actuam já no local. Os mais perigosos são os bandos de piratas que exigem dividendos, por sequestro. Recusam pagar os direitos geográficos impostos pela Conferência de Sião. Neste momento, grupos violentos “sem-rosto” ameaçam a região: terroristas-hooligans e católicos-fundamentalistas. Pretendem apenas dólares, pretendem apenas diversão abstracta. Os países reúnem-se outra vez e não chegam a qualquer conclusão. Sem esperança, aguardam directivas da Super-Nação.»

«Levam todo o santo dia-a-dia a dizer lengalengas. Repetem pela alvorada e ao crepúsculo da tarde: “Temos sempre Tebas Damasco Dresden Tarquínia Hiroxima Bagdad Paris Texas Babilónia Xangai Baku Tróia Moçâmedes Guernica Corinto Novosibirsk Constantinopla Lourenço Marques Bombaim Samarcanda Teerão Marienbad Jerusalém Odessa Berlim Cisjordânia Roma México Lisboa Theresienstadt Alexandria Suméria Nuremberga São Paulo Tóquio […]!”»

Os trogloditas do Presente crêem ser o Indicativo o ápice da Verdade! Os tolos! Soubessem eles usar o gerúndio…


jef, março 2015

terça-feira, 17 de março de 2015

«Que Importa a Fúria do Mar» de Ana Margarida de Carvalho. Vencedor do Grande Prémio de Romance e Novela, da Associação Portuguesa de Escritores.


 
O oceano que nos lê
Ao ler «Que Importa a Fúria do Mar» verificamos que, com o passar das páginas, somos pescados para dentro do romance, seguindo a linha da história, iscados pela minúcia. O Mar, esse, é o mesmo oceano que banha a Marinha Grande (18 de Janeiro de 1934), Vila Praia de Âncora, o Porto e o Tarrafal, não o dos «resorts» mas o da «frigideira». O barco é o «Luanda». O peixe é arraia-miúda. Ou talvez não. Neste livro, percebemos onde, dentro de nós, se finca o anzol que é o gosto pela leitura. Ficamos também a saber que é no detalhe que reside a literatura. Tal como a conversa. E esta, tal como a literatura, é feita de cerejas. Qualquer coisa que deleita, entretém e entretece os fios do conhecimento / curiosidade. Como uma pinça ou agulha que vai buscando e cerzindo as memórias, as mnemónicas, os silogismos, na teia do desconhecido. Resumindo, Ana Margarida de Carvalho é uma contadora de histórias, ideias e imagens, ao jeito de José Saramago ou Rui Cardoso Martins – o humor e a tragédia, o amor e a fúria, o microscópio e a luneta astronómica. Tudo no mesmo plano. Tudo com barcos, aventura e muitos bichos. Perfeito.
 jef, junho 2013

«Que Importa a Fúria do Mar» de Ana Margarida de Carvalho, Teorema, 2013. Edição de Maria do Rosário Pedreira.

sábado, 14 de março de 2015

O Teatro de Firmino Bernardo: «Teremos Sempre Tebas»




Consideremos que o oráculo de Delfos não diz a verdade. Antes revela, não a mentira, mas a fantasia que abominamos ou desejamos que aconteça. Tirésias, o cego, apenas sente e também pode estar errado. E a Esfinge e Jocasta, que falsidade terão elas para contar? Édipo, já rei, pode enganar-se, mas poderá também enganar? E Tebas responderá pela culpa? Qual o papel do espectador ao aproximar-se das sete portas de uma cidade sitiada? Em cada um de nós, haverá sempre Tebas!
 
A escrita para teatro de Firmino Bernardo é única. Parece ser uma escrita leve, humorística, lúdica. E é. Contudo, numa camada paralela, parece ser uma dramaturgia existencialista vinda de séculos passados recentes onde o indivíduo em crise se confronta com o coro colectivo. E é. Contudo, num outro extracto interior revela um composto visivelmente político, um sentido brechtiano para se revoltar contra a própria política do espectáculo – discursos curtos, cenas sobrepostas – que dão um trabalhão ao encenador. E revela muito bem. «Teremos sempre Tebas» é uma peça que regressa do classicismo grego, venerando-o, ao mesmo tempo que o excomunga e transporta para a alma contemporânea. Sem mácula faz-nos rir na tragédia, respeitando-a. Tal facto é, em teatro, único. Quem não conhece o teatro de Firmino Bernardo não sabe o que anda a perder.
 
«Teremos Sempre Tebas» peça de Firmino Bernardo (vencedor do Concurso de Dramaturgia Guilherme Cossoul 2014). Encenação de Susana Arrais, com Cláudio Henriques, Miguel Santos, Rui Ferreira e Sara Felício. Em cena na S.I. Guilherme Cossoul, em Lisboa, sextas e sábados, de 27 de Fevereiro a 27 de Março, às 21h30.
 
jef, março 2015


sexta-feira, 13 de março de 2015

A realidade existe. Parte II [os andaimes de Fernand Léger]















 

 
[Diz Fernand Léger: «Uma nuvem, uma máquina, uma árvore, são elementos que apresentam tanto interesse quanto as personagens.»]
 
Quem escreve (ou diz) saberá exactamente a massa volúmica de cada palavra, o peso específico de cada um dos seus significados?
Como eu gostava de saber se as palavras poderão formar, sintagma a sintagma e período a período, discursos bem definidos, digamos, muito simples, vejamos, visuais. Sem vírgulas ou advérbios a destruírem o peso volúmico ou a verticalidade da linha.

Gostava tanto de saber se é possível medir a realidade da palavra quando dita (ou escrita) de olhos abertos e braços levantados ou, silenciosamente, bem de perto da volta de uma orelha.
 
Serão os parágrafos que encontramos dentro de uma frase longa traduzíveis por plantas e alçados, planos, cartas, mapas ou talvez rascunhos, caso a ideia ainda não esteja formada, caso a ideia esteja em pré-palavra?
 
Alguém me dirá se a realidade da palavra, em português, na velhíssima ortografia, pode ser definida pelas linhas grossas, a duas dimensões, egípcias, das telas de Fernand Léger?

Ou se a frase, com estrutura própria, deixará que a revertam em laje, viga, betão armado, aço, cimento, cofragem, na dimensão pura, na característica verdadeira, como se fosse a ideia do pintor?

Andaimes que garantem, pilares que suportam, operários que içam a cabo, roldana e braço. A hipótese de um parágrafo e, com tal puxada, discutir o ponto de aplicação do discurso. Um discurso que dispensa parágrafos. Alavanca.

Sim, como se as frases de um discurso fossem feitas não de parágrafos, que pouca coisa são, apenas tinta escura em papel claro, mas de cores primárias, únicas, distintas, determinadas pela força da gravidade que é multiplicada pela citada massa. Na Terra, 9.8 é a substância certa de cada uma das palavras. Atracção das massas.
 
E se as letras de um poema estivessem inscritas nas cores de Fernand Léger? Caso tivessem dado a Mondrian um ponteiro e um baraço, ele desenharia a circunferência imperfeita. Como se os olhos de Miró segurassem o esquadro e o nível e, através destes, admitissem a recta gravidade. Como eu gostava de conhecer as cores das palavras primárias! [Presunção: as palavras contidas nas cores primárias são perpendiculares entre si.]
 
Como gostava que os que escrevem (os que dizem) colocassem o contrapeso bem medido no equilíbrio da palavra, reviravolta de ferro aço dentro da viga, cimento acomodado na cofragem. Editando a declaração.

Como eu gostava que as declarações fossem cimento. As palavras, tijolos. As vírgulas, fio-de-prumo. O nível-de-bolha, pensamento. Tudo o resto, o ar, a água, a temperatura, as circunstâncias do nada, ou seja, da vida, ou seja, de tudo.

Eu gostava muito que os poemas fossem de sílica, calcário, gesso, quando contactam com as circunstâncias. Cimento endurecido. Não para serem invencíveis, indestrutíveis, irremediáveis. Não. Apenas para o serem desse modo, e desse modo mudarem, transformando as circunstâncias de que são devedores.
 
[Porque o cimento muda as condições em que é trabalhado.]

As palavras, os tijolos e as suas condições, unidos pelo ar, a água, a temperatura, a pressão atmosférica. Tudo faz parte da declaração do poema. O cimento que une os tijolos, as palavras.
 
As palavras são, deste modo, as condições necessárias para quem escreve escrever, para quem diz dizer. Mudando as condições, alteram-se as circunstâncias do cimento, fazendo-as vencíveis, destrutíveis, remediáveis. Adaptáveis às exigências do tempo em mudança. Por isso mesmo, cimento eterno.

Porque as palavras, tal como os castelos construídos com areia na linha da maré, ora baixa ora preia-mar, são prontamente destruídas, ficando apenas a ideia do que eram. A ideia, talvez sílica, calcário, gesso ou areia. Argamassa de cimento com areia e água e calor. E por vezes, armada de aço para que as placas, os pilares, as vigas não cedam às marés. Mas a ideias também elas são destruídas pelo salitre que é alimentado pelo mar. Como o cimento (e o ferro das janelas), se forem esquecidas as circunstâncias e não aplicarem um primário protector como base…
 
Quem me dera que as ideias pudessem ser apenas ar, água e calor. Mas as ideias são como o cimento endurecido que, por mais indestrutível que seja, está sempre pronto a ser derrubado e de novo reconstruído. A ideia é também, por objectivo e consequência, palavra reciclada. Recurso infinito, por princípio. [Aí difere do cimento.]
 
Será então possível avaliar com correcção, em tabela da resistência dos materiais, milimetricamente, a realidade da ideia quando é dita (escrita) de olhos bem abertos, de braços levantados, sob a cor primária de uma bandeira? Ou, quando é escrita (ou dita) ao de leve, de mansinho, roçando silenciosa o lóbulo de uma orelha?

Serão as palavras «clamor» ou «sussurro» de betão armado, iguais aos castelos no ar, fenómenos meteorológicos, fabricados pelas nuvens que o vento modifica a cada sopro? Mas, apesar das circunstâncias volantes, tais castelos, palavras (e ideias) não continuarão a ser objectos absolutamente reais?
 
Não estaremos, assim, perante a realidade de que são feitos os andaimes de Fernand Léger?
 
jef, março 2015

segunda-feira, 9 de março de 2015

Teatro da Cornucópia «Lisboa famosa (portuguesa e milagrosa) ... »



















Teatro da Cornucópia «Lisboa famosa (portuguesa e milagrosa), cenas lisboetas de autos antigos» (Gil Vicente, Baltasar Dias, Afonso Álvares, alguns anónimos)

Lisboa, a fome e a fama que vêm de longe!

Por vezes, podem as palavras vindas de tempos antanhos ficar a soar diferente aos ouvidos de hoje, talvez incompreensíveis. Mas são palavras fundamentais embora diversas, transformando-se, chegando compreensíveis até nós pela expressão dos corpos dos actores, talvez pela sua dança… Como não entender a conversa entre Lisboa e a Fome, entre a Verdade e a Honra, entre o Centeio e o Milho estrangeiro? Como não sorrir com o ciúme de Santo António pela fama de São Vicente?

Esta é uma peça para quem gosta de Lisboa e das cores e da cenografia deslumbrante de Cristina Reis e da recriação subtil do Tejo e do Cais das Duas Colunas. Para quem não esquece o convívio insubstituível com Luis Miguel Cintra, Luís Lima Barreto e José Manuel Mendes. Para quem não esquece o riso de Sofia Marques e a suspensão no olhar de Rita Durão. Para quem apreciar a nova voz e a nova expressão dramática de Ana Amaral, Guilherme Gomes, Isac Graça, Rita Cabaço e Sílvio Vieira. Três gerações de actores para acarinhar quem, como eu, aprendeu a ver teatro com a Cornucópia, desde os idos de 1974 com «a Ilha dos Escravos» de Marivaux, lá no Capitólio, quando este ostentava ainda umas instáveis escadas rolantes.

É um crime teatral não ir ver e rir e pensar com esta peça! Como gostaria eu de ser dramático sem beliscar o profissionalismo destes que mentem com a verdade, deste superior Luis Miguel Cintra que diz a verdade mefistofélica, ajudado pelas deixas escritas no papel que traz na mão um pouco trémula… Ele mente, sim, dizendo a verdade mais pura! Nós os espectadores e esta cidade de fama e fome é que talvez estejamos doentes!

Viva o Teatro da Cornucópia! Viva Luis Miguel Cintra! Viva Lisboa!


jef, março 2015

domingo, 8 de março de 2015

A realidade existe. Parte I [lince-ibérico]


 
Afinal a realidade está aqui: o solo, as plantas, os animais. Segundo a fotografia de Inês Vasco, tirada a 4 de Março de 2015, observa-se o sexto lince reproduzido em cativeiro (Silves) dentro do cercado na região de Mértola. Antes de ser libertado em área aberta. Lince-ibérico Lynx pardinus, o felino mais ameaçado do mundo, também um dos mais belos. (Haverá felinos menos belos? A beleza, prática ética usada pelos humanos para seleccionar objectos, aplicar-se-á à Natureza?)
Repito: A fotografia não é minha, é de Inês Vasco. Nem o lince-ibérico, nem o solo, nem as estevas são minhas. Posso eu fazer parte do Mundo mas ele não me pertence.
 
jef, março 2015

sábado, 7 de março de 2015

sobre o filme «Yvone Kane» de Margarida Cardoso (2014)

 
«Yvone Kane» de Margarida Cardoso. Com Beatriz Batarda, Francilia Jonaze, Gonçalo Waddington, Irene Ravache, Samuel Malumbe. Portugal / Brasil / Moçambique, 2014.
A verdade e o esquecimento
Existe uma frontalidade, diria exactidão e contenção, nas palavras ditas que mantêm os diálogos a pairar na nossa cabeça como epígrafes das imagens. As imagens, essas, na justeza da câmara a tocar o rosto das actrizes (Beatriz Batarda vs. Irene Ravache) com as rugas e as manchas a que as personagens têm direito, tornam os enquadramentos arquitectónicos e a cenografia dos corpos dos actores o modo mais eficaz de fazer escutar as tais palavras poucas. E é importante ser-se exacto e contido quando se trata da oposição entre a verdade e a memória, entre Portugal e Moçambique, brancos e pretos, colonizados e colonizadores, arrogância e generosidade, entre a perda definitiva e a memória dorida, entre a paixão e a compaixão. Que fazer da verdade do passado quando o presente nos transporta para uma fronteira armadilhada que mal distingue a verdade, o esquecimento, o rancor e o perdão?
 
 
jef, março 2015
 

terça-feira, 3 de março de 2015

No Reino dos Macambúzios










Eu sou o Rei dos Macacos!
Há pouco os dados foram lançados.
Os peões no tabuleiro,
o açúcar no açucareiro,
o sortido fino e as burguesas,
o risinho delas e o chá das cinco.
Fazem alegres o piquenique,
a toalha no relvado,
entre brancos e pretos,
fogem os macacos dos quadrados.

Eu sou o Rei dos Malacuecos!
Entre lianas e avencas,
ilhas menos desertas, canibais,
eu dirijo o bicho-carpinteiro.
Traz consigo o bicho-matreiro,
bicho-malino que faz de bicho-de-conta,
príncipe da bisca, do bilhar e da bimbi.
Segue-o o valete dos matrecos.
Só depois vem o burrinho, José, Maria e Jesus,
a mulher dos sacos,
o homem dos trapos,
a menina do tule e dos laços.
A fechar, saltam os macacos a tocar os pratinhos,
(basta pôr a moedinha)
e os manetas trapezistas.
As ciganas trazem à cabeça os tarecos,
trastes velhos, mesquinhices,
gatos pardos, garfos rombos, patos marrecos.
O resto é fantasia!

Eu sou o Rei dos Trampolineiros!
Infantes malacuecos,
donzelas macacas, príncipes malinos,
virgens trapaceiras,
da selva surgem ainda negros flibusteiros,
espada em punho de renda branca.
Pulam manhosos
piratas maravilhosos,
gel na trunfa, sapatos garbosos,
vêm mansos como ministros,
e entre burguesas estendem
a toalha no relvado,
a dos quadrados.
Papoilas rubras, sangue nas flores prisioneiro.
Eles são os reis dos cavalheiros,
belas mãos, os financeiros.
Fingem o riso, trazem embuste,
cativam a fantasia por cumprir
invocam a beleza para a estiolar.
Saem macacos dos quadrados
dominós, arlequins, saguins,
outros bichos afins.
Fazem momices,
trajam de paletó, capindó,
trocam felizes pantominices,
sorriem em salamaleques,
agitam os leques velozes.
Tocam a sociedade em maior dó.

Eu sou o Rei dos Economistas!
Seres avessos, quatro patas,
cauda quase a apartar-se.
Ai as sardaniscas,
osgas putativas
de um Estado por servir!
Lançam um brinde de alegria,
um brunch comemorativo,
um pequeno-almoço de negócio.
Ai o sortilégio dos macacos
a toalha dos quadrados,
o valete dos malacuecos,
o piquenique das burguesas!
Rubro o ventre de quem banqueteou,
esquecido o sangue,
as papoilas, toda a beleza,
e o olhar branco do faminto.
Que requinte!

Ó Banqueiro dos Macacos,
Ó Ministro dos Malacuecos,
Ó CEO dos Trampolineiros,
Ó Director-Geral dos Trapezistas,
oiçam lá!

Eu sou o Rei das Pataniscas!


jef  março 2015