segunda-feira, 30 de abril de 2018

Sobre o filme «As Duas Feras» de Howard Hawks, 1938




















Não existe comédia mais extravagante e com um maior número de subterfúgios e subentendidos na história do cinema. Digo, subentendidos não mal-entendidos, pois aqui, ao fim de 80 anos, tudo é mais do que implícito. É tudo declarado.

Por que será que Susan Vence (Katharine Hepburn) se veste finalmente de negro e com véu (tal como a putativa noiva Alice Swallow), subindo até ao dorso esquelético do dinossauro para o destruir e conquistar em definitivo o amor do Professor Davis Huxley (Cary Grant)?

Por que será que o Professor não larga o osso, a tal clavícula intercostal em falta, e Susan não larga o agitado leopardo «Baby»? Por que têm ambos de cantar desenfreadamente «I Can’t Give You Anything but Love, Baby»?

Por que é que o psicanalista de circunstância papagueia a Susan: «Frequentemente, o impulso do amor no homem expressa-se de modo conflituoso.», enquanto tudo se desmorona à volta dos personagens, as peripécias sucedem-se, as quedas esmagam chapéus altos, os fatos rasgam-se e Susan e David têm de caminhar encostados e abraçados?

Por que afirmará o Professor Davis Huxey, travestido com um sumptuoso roupão emplumado de senhora, «Tornei-me gay de repente!»? (O que significaria esta frase há oitenta anos?)

Por que existem dois leopardos à solta, um bom e um mau, que devem ser capturados numa extraordinária caçada nocturna liderada pelos magníficos Charles Ruggles (Major Applegate) e May Robson (Tia Elisabeth) coadjuvados pelo jardineiro Gogarty  (Barry Fitzgerald)? Entretanto, Susan e Davis, vão-se caçando um ao outro?

Por que acabarão todos enfiados em jaulas na cadeia e os animais a passear cá fora?

Não há filme mais cómico e mais inteligente sobre o amor e a sedução que «As Duas Feras». Não há filme onde o riso e o guarda-roupa de Katharine Hepburn mais seduzam.  Não há texto mais rápido e divertido nem sucessão mais delirante de cenas caricatas.

A rever sempre que o tempo não anda de feição ou o espírito se perde em realidades absurdas.

jef, abril 2018
                                                                   
«As Duas Feras» (Bringing Up Baby)  de Howard Hawks. Com Cary Grant (Prof. Davis Huxley), Katharine Hepburn (Susan Vence), Charles Ruggles (Major Applegate), May Robson (Tia Elisabeth), Barry Fitzgerald (Gogarty), Walter Catlett (Slocum), Fritz Feld (Dr.  Lehmann, o psicanalista), George Irving (Peabody), Leona Roberts (a criada, mulher do jardineiro), Tala Birrell (Mrs. Lehmann), Virginia Walker (Alice Swallow, a noiva e secretária). Argumento: Dudley Nichols e Hagar Wilde. Produção RKO Radio Pictures. EUA, 1938, P/B, 101 min.

domingo, 29 de abril de 2018

Sobre o filme «Ilha dos Cães» de Wes Anderson, 2018
















Reconhecemos o perfeccionismo estético que o realizador Wes Anderson tem vindo a aprofundar, criando algumas das fábulas visual e musicalmente mais inesquecíveis dos últimos anos («Moonrise Kingdom», 2012 ou «Grand Budapest Hotel», 2014).

Podemos ou não aderir integralmente ao seu estilo minucioso e expressivo, aos decores em perspectiva, quantas vezes em miniaturama. Podemos estranhar os temas sempre a abraçar o afecto social ou a consciência histórico-política, mesmo que a fantasia delirante nos arraste para uma espécie de transe onírico à «Feiticeiro de Oz». Aguardamos o desfile de dezenas e dezenas de actores tocados pela graça juvenil, pela transformação circense, pelo à-vontade e entrega dramática de quem está a representar entre amigos, em frente à câmara de um amigo, Wes Anderson. Guardamos o sorriso benévolo que provoca e a banda sonora que nos leva a uma grande sala para sinfonias operáticas.

Temos tudo isto em «Ilha dos Cães» e muito, muito, muito mais. Por isso, aviso. Tome um café, preste muita atenção a tudo e, talvez, reserve uma boa dose de paciência.

No vago mundo nipónico de Megasaki, um tirano deseja manipular as eleições para, ganhando, expulsar a sobrepopulação canina que ameaça epidemicamente os humanos, atirando os cães para uma distante lixeira onde ficarão ao abandono. Até que um jovem, protegido do tirano, resolve voar até lá para resgatar o seu adorado amigo e protector cão. A partir daí, ou melhor, para chegar ali, o número de peripécias multiplica-se, os flashbacks rodopiam, as personagens ganham asas de cenário para cenário (e que belos alguns deles são!), a democracia vai sendo ameaçada, os oposicionistas aniquilados, a população estudantil mobilizada por uma jovem ocidental, os cães entram em guerra com os congéneres mecânicos, a tradução simultânea sobrepõe-se, a cartografia das ilhas desdobra-se, a sincopada percussão oriental agudiza-se, os despojos venenosos de uma sociedade de desperdício amontoam-se, a luta acelera… Tudo em apenas 101 minutos!

Saí do cinema um tanto cansado com tamanha carga estética, intenção distópica, parafernália de marionetas. Tamanho colorido!

Mas talvez fosse só do sono…

 jef, abril 2018                                                  

«Ilha dos Cães» (Isle of Dogs) de Wes Anderson. Com as vozes de Bryan Cranston, Koyu Rankin, Edward Norton, Bill Murray, Greta Gerwig, Frances McDormand, Scarlett Johansson, Harvey Keitel, Tilda Swinton, Liev Schreiber, Jeff Goldblum, Yoko Ono. Música: Alexandre Desplat. Animação. EUA, 2018, Cores, 101 min.


sexta-feira, 27 de abril de 2018

Sobre o filme «A Morte de Estaline» de Armando Iannucci, 2017

















É mesmo muito interessante que este filme de Armando Iannucci, transposição de um livro ilustrado de Fabien Nury e Thierry Robin, seja apresentado como uma comédia hilariante. Porque não é verdade!

Sim, ali estão compreendidos acontecimentos históricos de dimensão humana trágica, mas não se pense que se vá rir às bandeiras despregadas sobre o dia que precedeu a morte de José Estaline e os dias que compreenderam o funeral do ditador, em Março de 1953. Não!

Esta comédia é inteligentemente política e sóbria e apenas brinca até ao justo momento em que os grandes actores, palhaços quase tristes, vão avançando na liça do poder. Os actores são magníficos e de uma dicção perfeita. Os decores, guarda-roupa e iluminação, sóbrios e circunspectos. Os diálogos, sumários e incisivos. Os acontecimentos pobremente dramáticos e sangrentos.

Parece que assistimos a  uma peça de teatro cómica sincopada, de desenfreada contenção inglesa, no bom gosto da antiga BBC.

Sem dúvida uma comédia ver para, depois, ir a correr à net em busca de mais dados históricos para compreendermos o presente bipolar deste mundo.

jef, abril 2018.

«A Morte de Estaline» (The Death of Stalin) de Armando Iannucci. Com Jason Isaacs, Olga Kurylenko, Steve Buscemi, Rupert Friend, Richard Brake, Simon Russell Beale, Jeffrey Tambor, Paddy Considine, Tom Brooke,  Justin Edwards e Michael Palin. A partir da novela gráfica de Fabien Nury e Thierry Robin. Grã-Bretanha / Bélgica / França, 2017, Cores, 106 min.

Sobre o livro «há uma altura do dia…» de André Ruivo. the inspector cheese adventures, 2015












«há uma altura do dia em que tudo se embrulha…»
Quando confundimos as ideias com os cabelos, as pernas com o equilíbrio, chegamos a novas formas, atingem-nos fórmulas incompreensíveis. Assim são as caras e os corpos, as histórias desenhadas por André Ruivo. Através delas chegamos mais perto de formas que nos informam, ultrapassamos as fórmulas que nos confundiam. Essa é a nossa nova realidade ficcional. Somos, afinal, outros.

«há uma altura do dia…» de André Ruivo, texto e desenhos. 14 x 15 cm, 8 pp. the inspector cheese adventures, 2015.

jef, fevereiro 2015

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Sobre os livros «Biblioteca», the inspector cheese adventures (2011) e «Mystery Park», chili com carne (2012), de André Ruivo













Mystery Park na Biblioteca. André Ruivo escreve histórias curtas através de desenhos e vai registá-las à biblioteca, diga-se livraria, que é a mesma coisa. Esta biblioteca-livraria, diga-se cidade, está cheia de livros, de prateleiras, luz e cadeiras. Emoções. Mas não tem clientes, logo esta biblioteca-livraria-cidade não existe. Porém, ela mesmo agora contradiz-me e apresenta-se em papel e tinta, na minha mão. Os potenciais utilizadores andam um pouco alheados da cidade-livraria-biblioteca emocional, e passeiam, prontos para a sedução, mas também cativando, fumando, passeando o cão, lendo o jornal… A eles fica-lhes bem o gerúndio, pois não amam nem odeiam, apenas vão suspeitando que a vida não terminará ali, em Mystery Park, e talvez valha a pena ir indo até à cidade das bibliotecas procurar-lhe a continuação.

jef, janeiro de 2013

terça-feira, 24 de abril de 2018

Sobre o livro «Gangsters» de André Ruivo. The Inspector Cheese Adventures, 2012



(Pode dizer-se que este texto é uma tentativa de crítica, seja o que isso for…)

André Ruivo rejeita a legenda-ilustração para epíteto da sua arte. Mais nítida do que em obras anteriores, essa vocação mostra-se no conjunto de imagens ‘não tituladas’ reunidas no livro «Gangsters». A rejeição da frase escrita indexada à peça desenhada transfere, na sua abstracção figurativa, o trabalho para o olhar do leitor-narrador. 

Citando dois exemplos clássicos, também Paula Rego e Pedro Proença deixam ao leitor a liberdade de ajustar os sinais gráficos à sua própria cadeia interpretativa. André Ruivo parece insistir em que qualquer tipo de baias retira «autoria» à imagem.

Ora, se a primeira liberdade de André Ruivo é a da não-legendagem, então a segunda rejeição é a da intencionalidade, quer ela seja política, social, ou ambiental. É impossível associar estas imagens a uma linha programática como é fácil fazê-lo com George Grosz ou João Abel Manta. No entanto, as presentes ilustrações podem de modo muito aberto celebrar a liberdade de expressão e a força colectiva no modo individual em que se apresentam.

Concluindo, os 12 retratos incluídos em «Gangsters» são desafios gráficos, histórias puras e livres, lançadas ao espírito do observador apenas pelo traço expressivo das personagens e pela violência com que a cor nelas é aplicada.

jef, fevereiro 2013

Sobre o livro «Burgueses Somos Nós Todos ou Ainda Menos» de Mário de Carvalho. Porto Editora, 2018
















Este livro é sobre a contemplação da descrença, a narrativa da desesperança. E a sua maior ironia centra-se no termo exacto do seu título, referência ao poema de Mário Cesariny que é citado em epígrafe, páginas adiante. Talvez o humor aí se conclua.

A ‘burguesia’ de Cesariny é uma burguesia pueril, insciente de si própria, contente, contente por ler sem saber ler. A ‘burguesia’ de Mário de Carvalho não será ainda a burguesia de Marx ou Engels, a simples burguesia capitalista mascarada de cartola e charuto, militarizada, com nariz de porco, caricatura «degenerada» de George Grosz. Nem a pequena burguesia alheada de consciência. É mais um estado triste e complexo dos que, com dote ou herança à vista, reconhecem no tempo, inexorável e fatídico, o fim de uma linha que se desejou de algum estatuto mas que foi deslizando para o desalento, para a solidão.

Onze contos onde perpassa a acrimónia velada contra o futuro, esse infiel tempo verbal que mostra sistematicamente a traição insuspeita enterrada no passado. E se não a desvenda, esconde no desinteresse humilhante, quase nonchalant, de um jantar entre negócios e amigos. São amigos reencontrados que afinal nada mais podem contar uns aos outros; antigos camaradas que envelheceram; velhos lobos solitários caídos em descrédito bancário ou na suspeita hereditária da descendência. Aqui o futuro esconde-se no vão dos pequenos momentos-história da tal caída ‘burguesia’.

Talvez um certo Gustavo Miguel, realizador de cinema, cirandando nas margens da Lagoa Moura, em «A Sala Magenta» (2008), ou o amante da «Ronda das Mil Belas em Frol» (2016), lhes dêem parentalidade.

Porém, as histórias deste livro surgem vivas e prontas a renascer na belíssima estrutura da adjectivação e no alinhavo descritivo tão pormenorizado quanto é exigido pela suspensão do tempo. Precisamente, é no quase maquiavélico manuseio simples e complexo, vanguardista ou oitocentista, de palavras e da sua sintaxe que, afinal, reside a sempre futurista escrita de Mário de Carvalho.

jef, abril 2018                                                               

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Sobre o filme «Até Nos Vermos Lá em Cima» de Albert Dupontel, 2017
















A produção cinéfila francesa tem destas coisas. Encanta-se consigo própria. Finge que é a produtiva Hollywood. Presume-se. Encharca-se de sumptuosos cenários, decores, adereços, guarda-roupa. Aplica credíveis efeitos especiais. Coloca uma banda sonora a imitar Danny Elfman ou Alexandre Desplat. Chama bons actores capazes de dar corpo a uma interessante história novelesca que sublinha o horror que foi a morte nas trincheiras (e mesmo depois do armistício) da terrível e mais esquecida Guerra Mundial, a primeira. História baseada no romance de Pierre Lemaitre.

Mas, depois, a tal produção manda apressar a leitura do espectador porque o tempo da narração não chega para mostrar tantas imagens e temos correr atrás de uma história intrincada sobre traição, amor fraternal, fraude bancária, ganância desmedida, falcatruas estatuárias, requebros pirosos sobre a amizade e os desencontros familiares, até estacionarmos num delicodoce happy end com paisagem cartonada marroquina ao fundo.

Que nos fique a ideia tão interessante de praticar a comédia dramática sobre, repito, uma das guerras mais sangrentas e dilacerantes de sempre.
Que fique também a interpretação de Niels Arestrup, a fazer de Presidente-Pater- Familias.

jef, abril 2018.

«Até Nos Vermos Lá em Cima» (Au revoir là-haut) de Albert Dupontel. Com Nahuel Pérez Biscayart, Albert Dupontel, Laurent Lafitte, Émilie Dequenne, Niels Arestrup. Argumento a partir do romance de Pierre Lemaitre. Música: Christophe Julien. Fotografia: Vincent Mathias. Canadá / França, 2017, Cores, 117 min.


quinta-feira, 19 de abril de 2018

Sobre o filme «Taxi» de Jafar Panahi, 2015














Esta é uma das comédias mais inteligentes do mundo.
Em Teerão, Irão, século XXI, um taxi mais ou menos comunitário segue as ruas e os passageiros vão entrando aleatoriamente. Ou talvez nem tanto. Neste filme não se sabe onde pára a realidade e começa a realidade encenada. Mas o teatro vence sempre como símbolo máximo da verdade.

O taxista é o próprio realizador Jafar Panahi, preso político, impedido de sair do Irão e de fazer cinema. Mas o taxista sorri! Sorri sempre e conta como são as coisas no país e no mundo. Conta tudo com o humor que faz realçar os factos mais importantes da vida em comum.

Um homem defende a pena de morte para os ladrões de carros dos pobres. A professora defende a educação e a reintegração.

O pequeno homem aluga clandestinamente filmes ocidentais, descobre o realizador, desmascara o cenário para o espectador. Com o realizador a seu lado vende muito mais dvd.

As duas senhoras têm de devolver os dois peixinhos vermelhos ao lago artificial até ao meio-dia. Impreterivelmente. O aquário escaqueira-se.

O motociclista sinistrado apanha boleia e, no colo da mulher, só deseja registar o seu testamento. O hospital que fique para depois.

A sobrinha do realizador estuda cinema e tem um tpc para fazer. Uma curta-metragem distribuível segundo as regras fundamentais do cinema iraniano. Filma sempre e pede ao pequeno apanhador de lixo que devolva a moeda apanhada no chão ao seu dono. Seria um fim excelente para o seu trabalho: sacrifício e altruísmo! O miúdo não obedece.

A advogada dos presos políticos, incluindo do realizador, devolve-lhe o sorriso solidário e distribui rosas num acto de pura estética e benevolência política.

A verdade encenada é sempre mais verdadeira.

Dos mais belos filmes políticos de sempre!

jef, abril 2018
                                                                      
«Taxi» de Jafar Panahi. Irão, 2015, Cores, 82 min.    

terça-feira, 17 de abril de 2018

Sobre o filme «Manifesto» de Julian Rosefeldt, 2015















Sofrerá este filme de uma tripla incompatibilidade. Sem hipótese de conciliação.

Por um lado, o modo como vai buscar textos fundamentais que, modernistas, desafiaram a estrutura estética e ética da sociedade, envolvendo-os com uma capa de mavioso colorido burguês com up-grade proletário e digital. O humor poderá ser sempre revolucionário mas neste caso toca o risível.

Em segundo lugar, Cate Blachett é uma diva que merece o tempo, a luz, a sobriedade e o génio de um Woody Allen, não a apressada singeleza lírica e, por vezes, ridícula de Julian Rosefeldt.

Na terceira alínea, os belos cenários e os extravagantes decores em que são situados os monólogos da agitação. Fazem perder o olhar, levitar a imaginação, enlevar essa maravilhosa coisa que é entrar no cinema e esquecermo-nos de nós e do mundo real, passando a ser aquele mesmo e por breves instantes o nosso mundo real. E a música de Ben Lukas Boysen e Nils Frahm, inteligente e sóbria. Um belo celofane que faz esquecer o que é um Manifesto.

E, agora, dentro do meu cérebro como irei compatibilizar o inconciliável? Terei de ir buscar os estetas revolucionários Méliès, Buñuel, Kubrick, Pasolini, Bergman, Antonioni, Tarkovsky, Lynch, Roy Andersson ou Laurie Anderson, para reconciliar o olhar com as sinapses e a minha compreensão cinéfila?

jef, abril 2018

«Manifesto» de Julian Rosefeldt. Com Cate Blanchett, Erika Bauer, Ruby Bustamante. Fotografia: Christoph Krauss. Música: Ben Lukas Boysen e Nils Frahm. Alemanha, 2015, Cores, 95 min.


segunda-feira, 16 de abril de 2018

Sobre o disco «Laço Umbilical» de Lucibela, Lusafrica 2018






Há discos assim. Viciam. Obrigam a gastar a tecla «repeat». Clarificam o gosto musical. Melhor, identificam o que procuramos insistentemente no fundo do fundo da música.

Lucibela lança o primeiro álbum e com ele refaz a perspectiva do que é o meu pré-conceito de música cabo-verdiana. Nada disto é verdadeiramente “morna” ou “coladeira”, sequer “valsa”, “mazurca”, “fado”, “samba” ou “jazz”. Contudo «Laço Umbilical» não provoca qualquer hiato com a tradição de um dos países mais musicais do mundo, nem com as raízes negras ou ramos latinos que a faz respirar.

Cabo Verde está lá todo, tradicional e moderno, alegre e nostálgico, dançante e terno. Graças a essa maravilhosa doçura de contralto-quase-lírico de Lucibela. Graça aos arranjos de Toy Vieira, tão simples, suaves e libertos, que parecem difíceis de imaginar. Graças a essa magia que faz cobrir a saudade com a poeira levantada pelo pé de dança.

Claro! Está lá Manuel de Novas unido ao mais jovem Mário Lúcio e à belíssima e novíssima Elida Almeida. 

Claro! Em «Laço Umbilical» está tudo o que eu quero de um disco. 

Talvez grande parte de mim esteja contido nestas canções!

jef, abril 2018

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Sobre a dupla apresentação do livro «O Homem do Leme» de Manuel Halpern. Rosa de Porcelana, 2018.











Não. Não é sobre a canção dos Xutos, não. Mas podia ser, anda lá próximo.
Este «O Homem do Leme» aproxima-se muito, tocando-o com provocação e carinho, do Jornal de Letras, Artes e Ideias, esse fenómeno extraordinário, extravagante, amorável, esse acto jornalístico resistente e desafiador nas Artes em Portugal e no mundo.
«O Homem do Leme» comemora os 20 anos de crónicas quinzenais de um dos seus jornalistas e mais fiéis camaradas de gávea e proa, de pelotão da frente e plantel de ataque, de redacção, luta e também de matraquilhos – o querido amigo Manuel Halpern!
São textos muito divergentes por que se desejam fora do centro e que começaram por querer sublinhar a força estratégica das novas tecnologias no mundo das criatividades artísticas. Contudo, as tecnologias foram envelhecendo e os dados confidencias vendidos a troco de votos e dólares, enquanto estas crónicas permaneceram aqui mais à frente e modernas, incólumes ao desvario fúnebre de bytes e bits (estes termos ainda se podem usar?).
Ficções. Elegias. Alogias. Epifanias. Comemorações. Desafios. Alertas. Modos de usar. São apontamentos de coisa alguma que parecia importante e, de facto, os vinte anos de publicação que vão correndo, ora lentos ora stressados, confirmam agora a sua vocação para o prazer da leitura. Sabe bem ler estas crónicas, hoje!

Se estiverem por Lisboa, no dia 17 de Abril de 2018, pelas 18h30 na Casa Fernando Pessoa (rua Coelho da Rocha, 16), apareçam! O escritor José Luís Peixoto vai apresentá-lo e haverá leituras por alguns infiltrados!

Dois dias depois, a 19 de Abril, pelas 21h30, no espaço insuspeito e tradicional Popular Alvalade (rua António Patrício, 11B), ali muito perto da lisboeta avenida dos Estados Unidos da América, a coisa não se repetirá, mas passará pelos dedos musicais de Luís Varatojo. Os intrusos infiltrar-se-ão de novo.

jef, abril 2018

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Sobre o filme «Chavela» de Catherine Gund e Daresha Kyi, 2017















Homossexualidade, Alcoolismo, Solidão. Os pragmáticos ou os mórbidos podem resumir assim o filme sobre a cantora Chavela Vargas, nascida na Costa Rica, em 17 de Abril de 1919, e que quase morreu no palco, México, a 5 de Agosto de 2012.

Contudo, durante o documentário, reverente, cronológico, sistemático, devedor à grande artista, ouve-se uma frase que surge forte. «Chavela apreciava a liberdade que a solidão lhe dava».

Homossexualidade, Alcoolismo, Solidão. Reconheço que é inevitável uma biografia sobre a artista não pender para esses temas tão sempre na moda.

No entanto, aquela mulher viveu 93 anos dirigidos pela voz do seu corpo e pelo nervo da sua alma. Viveu no livre arbítrio que as condições de cada época entregam aos mais resistentes. Viveu como quis. Cantou como bem entendeu. Vestiu-se a seu bel-prazer. Amou muito e arrasou os corações de muitas mulheres. Fez chorar. Encantou. Ultrapassou a solidão, amando-a. Amou a liberdade, ultrapassando-a com a prisão que a paixão concede. Morreu com o mundo a seus pés.

E o filme termina com «La LLorona». Um truque baixo para as lágrimas do espectador.  

Acima de tudo, Chavelas Vargas é a música que nos entregou.

jef, abril 2018.

«Chavela» de Catherine Gund e Daresha Kyi. Com Chavela Vargas, Pedro Almodóvar, Elena Benarroch, Miguel Bosé, Tania Libertad, Martirio. EUA / Espenha / México, 2017, Cores, 93 min.


quarta-feira, 11 de abril de 2018

Sobre o filme «Custódia Partilhada» de Xavier Legrand, 2017
















Neste filme, Xavier Legrand coloca o espectador num estado de permanente observação, análise e julgamento. Ou seja, em vigília. A partir de uma sessão inicial, longa e meticulosa, vamos tomando o pulso a uma situação difícil de gerir ou de, sobre ela, sentenciar. Tentamos chegar a uma conclusão justa ou apenas moral. Estamos na berlinda. Seguimos os trâmites da custódia partilhada de Julien (Thomas Gioria), 11 anos, pelos dois pais divorciados, Miriam (Léa Drucker) e Antoine (Denis Ménochet). Uma sucessão de cenas estudadas ao pormenor para que penetremos nesse incómodo terrível através dos discursos e dos olhares da juíza e das advogadas de defesa. Os pais permanecem quase esfíngicos.

Depois, a causa passa a ser a de Julien (e a de Joséphine - Mathilde Auneveux -, já com 18 anos, a filha). O interior de Julien é verdadeiro e angustiado, o seu exterior não é conciliador mas cumpridor da estratégia judicial e familiar. Julien mente e o espectador estranha-o e acusa-o. As suas lágrimas são contidas, os seus actos nervosos.

A vigília do espectador vai ficando numa angustiada perplexidade acompanhando o percurso da «ex-familia» de Julien, cujas lágrimas e actos se soltarão apenas nas cenas finais, esclarecedoras e brutais, violentas e policiais.

O filme é de certo modo «hiper-realista» e Xavier Legrand dá-lhe um carácter de libelo político urgente. No entanto, a previsibilidade do seu fim deixa a vigília justa do espectador mais perto de um redutor filme de suspense (excelente suspense, diga-se) do que de um manifesto social que parecia estar a desenrolar-se. 

Fico a pensar nos belos filmes dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne.

jef, abril 2018.

«Custódia Partilhada» (Jusqu'à la Garde) de Xavier Legrand. Com Léa Drucker, Denis Ménochet, Thomas Gioria, Mathilde Auneveux, Mathieu Saikaly, Florence Janas, Saadia Bentaïeb, Coralie Russier, Martine Vandeville, Jean-Marie Winling. França, 2017, Cores, 93 min.

domingo, 8 de abril de 2018

Sobre o filme «O Eclipse» de Michelangelo Antonioni 1962






















Quando vemos os filmes de Antonioni reconhecemos o ponto onde a Arte se transforma num objecto cuja abstracção nos leva ao centro fundamental da realidade. Nessa abstracção, poderíamos colocar cinematografias tão específicas como as de Andrei Tarkovsky ou Stanley Kubrick.

Apetecia-me dizer, arriscando um atroz pretensiosismo, que se as palavras não chegam para definir o que é poesia, então utilize-se os andaimes e os alçados com que a arquitectura a edifica. Assim sinto o cinema de Michelangelo Antonioni.

Em «O Eclipse», esse hiato por falta de palavras é utilizado para nos relatar o distanciamento moral existente na quebra dos afectos quando confrontados com a evolução real do erguer das cidades. Uma chamada brutal à realidade, uma vocação política neo-realista.
Ou será, precisamente, o contrário, o princípio arquitectónico de um futuro descrente em si próprio?
Estou confuso!

Entre as cenas iniciais que precedem a separação entre Vittoria (Monica Vitti) e Riccardo (Francisco Rabal) e aquelas com que o filme termina e o «eclipse nocturno» invade Roma que se desertifica e faz o nosso olhar perder-se, deslizando, sobre o facto de uma aldeia olímpica em construção, esquina a esquina, andaime por andaime, facto quantas vezes referido simbolicamente ao longo do filme.

Ou, então, o encontro de Vittoria com Piero (Alain Delon) no interior da velha Roma e da agitação feérica e incompreensível da bolsa, levando-nos a uma provável relação enclausurada num passado que o presente, aos poucos, está a rejeitar. Todas as cenas na casa de família de Piero ou as seguintes, no escritório do corrector, são de uma alegria e intimidade tuteladas, vigiadas por retratos de antepassados ou telefones fora do descanso.

Até as cenas na casa da amiga «queniana» Marta (Mirella Riccardi), de uma liberdade exuberante, parecem cercadas por uma moral omitida, que o espectador não identifica mas vai respirando. Algum medo. Alguma suspeita. Alguma ameaça latente.

E sobre tudo isto a luz superlativa do Verão. A esquadria portentosa das escadas, dos vidros, das empenas dos prédios, o recorte das folhas das árvores. Os rostos e os corpos maravilhados, quase oníricos de Monica Vitti e Alain Delon. Os cães que fogem, nocturnos. O bidon da água onde flutua a caixa de fósforos, o padre que passa, a criada que passeia o bebé. O carro que é içado do lago artificial. Tudo pode ser futuro. Tudo pode ter já passado. Mas é de uma beleza tão perene que me comove.

E, sobretudo, a face sublime da silenciosa Monica Vitti, que revela tudo com uma gargalhada ou um véu súbito de tristeza, tocada no início pela brisa da ventoinha e pelo vento, no final.

Todas as cenas, inesquecíveis. Não existem filmes mais belos nem mais futuristas!

Que a arquitectura e a poesia de Michelangelo Antonioni tutelem a nossa realidade!

jef, abril 2018

«O Eclipse» (L’Eclisse) de Michelangelo Antonioni. Com Monica Vitti, Alain Delon, Francisco Rabal, Lilla Brignone, Rossana Rory, Mirella Riccardi, Louis Segnier, Cyrus. História de Michelangelo Antonioni e Tonino Guerra; Fotografia: Gianni Di Venanzo. Música: Mina (canções); Giorgio Gaslini. Itália, 1961, P/B, 124 min.