quinta-feira, 30 de maio de 2019

Sobre o filme «O Rio» de Emir Baigazin, 2018

















Este filme tem um enorme potencial de enfado. Talvez mesmo de tédio. Primeiro, o espectador deseja deslumbrar-se com as cores entre o ocre, o 'tierra de siena queimada', a cor de pó, que cobrem as figuras dos cinco irmãos que, na pequena quinta enfiada entre o deserto claustrofóbico e o rio perigosamente encantador, são escravizados pelos seus pais. Vivem eles entre Esparta e o Deus das Moscas (William Golding,1954), numa sociedade onde as brincadeiras são enclausuradas pelo trabalho de sol-a-sol e pelos castigos corporais.

O espectador aguarda. Aparece um quase primo vestido de extraterrestre ou manipulador de matérias perigosas com um tablet na mão. Ele mostra-lhes os jogos electrónicos. Eles mostram-lhe a corrente forte do rio. Negoceiam. Parece que a intriga vai desenvolver.  Num cenário entre um dengoso «Aconteceu no Oeste» (Sergio Leone, 1968) e uma caricatura de «O Estado das Coisas» (Wim Wenders, 1982).

Mas não. Tudo se queda num pretensioso bailado onde a repetição dos movimentos pelos cinco irmãos, ou das pegadas na areia, ou das braçadas na água, se alastra até à exaustão das frases ditas em tempo ou do olhar vago que é, também este, artisticamente sorumbático. 

Enfim, uma espécie de drama-comédia em superprodução que se deseja a si própria estética e política. Pois, nem uma coisa nem outra.

A salvar poderá estar o esforço dramático das cinco crianças. E a paisagem que, ali, realmente é bela.

jef, maio 2019

«O Rio» (Ozen) de Emir Baigazin. Com Zhalgas Klanov, Eric Tazabekov, Zhasulan Userbayev, Ruslan Userbayev, Bagdaulet Sagindikov, Sultanali Zhaksybek. Realização, argumento e fotografia: Emir Baigazin. Cazaquistão, Polónia, Noruega, 2018, Cores, 108 min.


segunda-feira, 27 de maio de 2019

Sobre o filme «Em Chamas» de Lee Chang-Dong, 2018.

















Não sendo o melhor filme de suspense do mundo, contém características que se ausentam de muitos dos potenciais bons filmes do planeta.

Os olhares dos três personagens principais cruzam-se emocionalmente mas quase sem se cruzarem em crescentes tensão e desespero. Mas aparentando alienação ou falso desprendimento.

Lee Jong-su (Yoo Ah-in) vive de entregas comerciais mas pretende ser escritor. Certo dia, encontra Shin Hae-mi (Jun Jeong-seo), amiga de infância que faz publicidade na rua de uma das lojas. Esta partirá em breve para África e pede-lhe para tratar do gato na sua ausência. Quando regressa apresenta-lhe Ben (Steven Yeun) que por lá encontrou e por quem se sente atraída. E o caso complica-se…

Sem dúvida um filme com garra na construção das personagens e na contenção que as torna enigmáticas concedendo-lhes fascínio à própria angústia e ansiedade.

No final, mas talvez de modo excessivamente melodramático, o espectador é levado a seguir a paixão de Lee pela desaparecida Shin e a pensar que uma certa loucura que o motiva é a própria intriga literária que ele persegue.

jef, maio 2019

«Em Chamas» (Beoning) de Lee Chang-Dong. Com Ah-In Yoo, Steven Yeun, Jong-Seo Jun. Baseado num conto de Haruki Murakami. Coreia do Sul, 2018, Cores, 148 min.

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Sobre o filme «Sinónimos» de Nadav Lapid, 2019


 
 
 













O mais interessante neste filme é o facto de deixar o espectador de cara à banda, questionando a narrativa dispersa dentro de uma intriga poética e fracturada, onde a incoerência à nouvelle vague nos fazem ter muitas saudades da cidade de Paris, política, brilhante e enorme. Agreste e amorosa!

Não interessa se Yoav (Tom Mercier) foge de Telavive e repudia os pais e Israel, pretendendo entrar numa casa parisiense onde encontra a chave num envelope debaixo da passadeira, no patamar. Roubam-lhe depois tudo (e o pouco) que tem, mas encontra, nu, enregelado e próximo de uma morte empírica, dois amigos: Emile (Quentin Dolmaire), Caroline (Louise Chevillotte). Emile deseja escrever um livro e mudra o mundo. Caroline pretende encontrar um sentido para a eterna duplicidade da vida. Yoav quer mesmo ser francês: tem um dicionário leve, procura sinónimos, rejeita a violência de um clã e as fronteiras de uma embaixada. Metralha com os braços e os dedos a bela extinta Notre Dame. Não canta, berra «A Marselhesa». Faz castings para filmes pornográficos. Come sem se enjoar esparguete com molho de tomate e natas.

Tudo isto com uma vocação epidermíca, sensual, quase libidinosa, dos actores. Paris no centro de um universo que se deseja agressivamente pacífico. Lembrou-me Truffaut, Jean-Luc Godard, Bernardo Bertolucci. Isso é muito bom!

jef, maio 2019

«Sinónimos» (Synonymes) de Nadav Lapid, 2019. Com Tom MercierQuentin DolmaireLouise Chevillotte, Uria Hayik, Olivier Loustau, Léa Drucker. França / Alemanha / Israel, 2019, Cores, 123 min.





segunda-feira, 20 de maio de 2019

Sobre a exposição «Once in a Lifetime [Repeat]» de João Onofre. Culturgest, Lisboa. Maio de 2019


















Em primeiro lugar, esclareço que «Once in a Lifetime [Repeat]» de João Onofre já não se encontra em exibição. Uma vez na vida e já acabou.

Em segundo lugar, esta exposição é uma espécie de labirinto (para quem gosta muito de cinema) que deixa o espectador vogando num espaço negro de corredores e esquinas onde a eficácia cinematográfica, a concentração sonora, o rigor da arquitectura dos planos lentos, mas determinantes, vai fazendo com que o olhar se perca no silêncio do escuro e se concentre num certo espasmo cardíaco. Temos de ficar à espera que a razão vá sonhando e o pesadelo da morte retratada nos rostos de óculos escuros dos coveiros dos cemitérios de Lisboa se cruze com a taquicardia dos dois estetoscópios alterados e ligados a dois corações, em simultâneo. Usemo-los ali mesmo. Estamos vivos!

As crianças cantam, como é óbvio, «I See a Darkness». «La Nuit n'en Finit Plus», outra entoa dentro de uma longa cova no centro de uma noite americana, verdejante. «Like A Virgin» é trauteada, outras palavras. Aguarda-se que o vedor busque em definitivo a água para que a instalação se complete. Sugere-se a respiração vital de Carlos Paredes sobre o toque da guitarra e dois auto-falantes. Ponderamos se estamos mesmo a olhar as mãos que se tocam de Monica Vitti e Alain Delon («O Eclipse», 1962).

Existe um coro pop-gospel que aniquila os cantores-atletas que tentam chegar à voz, numa visível comédia trágica de um mundo em suspenso. Como o microfone. «I Want to Know What Love Is».

Tudo na exposição parece estar a desvanecer-se, a perder-se nesse riso, reconhecendo o efémero, como quando o toner falha na pior altura. «Five Words in a Line Series».

Existe em tal labirinto um exercício que admite o negro da morte e o azul do sonho atmosférico e romântico de alguma serra da Arrábida, Norberto Lobo interpreta «Eu Amo», guitarra eléctrica, chapéu-de-sol vermelho e vento. Contudo, aqui, João Onofre afasta radicalmente a dúvida que as sombras poderiam projectar. Sem sombra de sombra, poderíamos até ter medo do além ou do quarto escuro mas a vida continua lá fora, como cá dentro, sobrevoando o céu que a tenta orientar-se, risível, com um imponderado nível de bolha.

Once in a Lifetime [Not Repeat].

jef, maio 2019


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Sobre o filme «Agradar, Amar e Correr Depressa» de Christophe Honoré, 2018.















Christophe Honoré deseja sair da comédia dramática, mais ou menos cançonetista, e construir um épico sobre o amor homossexual, franco, e liberto, alegre, mas pintado pelas sombras negras do VIH e da Sida. França, Verão de 1990. Jacques (Pierre Deldonchamps) e Arthur (Vincent Lacoste) encontram-se e amam-se. Vivem separados pela geografia, entre Rennes e Paris. Estão unidos pela diferença das suas idades, pela descrença de um e pela expectativa do mais novo, pelo acto do cigarro aceso, pelo futuro que, já se sabe, é rápido, incerto mas contém lá dentro o momento presente que tem de ser vivido.

Contudo, muito longe vai o tempo do belo «Em Paris» (2006), com o brusco e fraterno encontro dos actores Romain Duris e Louis Garrel. E muito perto está o sintomático e cardíaco «120 Batimentos Por Minuto» (Robin Campillo, 2017). Parece que Christophe Honoré, de tanto querer entrar no drama sincopado e diacrónico, a la nouvelle vague, em truncagens de tempo e de espaço, com tantas colagens de situações vividas e citações epigráficas, deixa os actores órfãos, soltos num vácuo emocional (e tanto que eles se esforçam), assim como os espectadores que compreendem as situações como fundamentais mas são delas afastados emocionalmente, inundados de referências literárias e as blagues do quotidiano irónico que tentam intensificar o climax e alicerçar a estratégia narrativa.

E não é por Arthur, consciente da efémera voluptuosidade da juventude, acariciar a real lápide funerária contendo a memória presente e futura de François Truffaut, que o filme se cobre do pathos emocional e leva o espectador a aderir a uma história que teria tudo para comover e elucidar sobre essa época de amor e desespero. «Jules e Jim» (1962) já fez tanto pela infinidade do presente, por essa amizade amorosa centrada no futuro que termina, que jamais poderá ser esquecido!

Que voltem as comédias singelas e as tragédias cantadas de Christophe Honoré.

jef, maio 2019


«Agradar, Amar e Correr Depressa» (Plaire, aimer et courir vite) de Christophe Honoré. Com Vincent Lacoste, Pierre Deldonchamps, Denis Podalydès, Adèle Wismes, Quentin Thebault, Clément Métayer, Tristan Farge. 2018, Cores, França, 132 min.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Sobre o filme «Hotel Império» de Ivo Ferreira, 2018















«Hotel Império» é um filme lento, talvez mesmo mole, onde as personagens deambulam pausadas, sacrificadas, angustiadas, por entre uma construção de memória velha que se deseja vintage, oitocentista, onde os gangsteres sorriem dengosos e dizem palavrões entredentes enquanto descem aos tombos escadas sórdidas em busca desesperada de uma «Relíquia Macabra». Fumos, espectros, sombras, seres perseguidos por agiotas e desilusões, e portas translúcidas de vidro martelado. As ruas da antiga Macau como as vias rápidas e as suspeitas de um proto-«Blade Runner» cruzado com o desencanto das montras que expõem mas não revelam de um «Paris-Texas», entre os corredores e pátios de uma «Rua da Vergonha»… Tudo muito vão de escada. Tudo muito ali de casa. 

Felizmente apenas 82 minutos!

Ai meus pobres John Huston, Dashiell Hammett, Ridley Scott, Wim Wenders, Sam Shepard, Kenji Mizoguchi. Que falta fazem por aqui!

jef, maio 2019

«Hotel Império» de Ivo Ferreira. Com Margarida Vila-Nova, Rhydian Vaughan, Kwok-Leung Gan, Cândido Ferreira, Tiago Aldeia. Portugal / China, 2018, Cores, 82 min.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Sobre o filme «Piazzolla - Os Anos do Tubarão» de Daniel Rosenfeld, 2018















Este filme é sobre a tristeza do que ficou por dizer, por resolver, por desencantar. Daniel Piazzolla, o seu filho, olha pela janela e passeia os olhos pela maqueta da exposição que será realizada sobre o génio de seu pai. Relembra os dez anos que passou sem lhe falar após ter-lhe dito que voltar a uma formação jazzística já vivida é voltar para trás.

Daniel vai ouvir as gravações das conversas que a sua irmã, Diana Piazzolla, teve com o pai para a publicação de um livro sobre a vida do célebre bandoneonista. A sua irmã também já não está com ele.

As memórias sucedem-se, as viagens também, o trabalho quase frenético também. Os sorrisos do seu avô «americano» que ‘obrigou’ a criar tal criatura, os da sua bela mãe, os da sua irmã resistente, idem.

Talvez rápido demais para tanta informação criativa, familiar e política, em anos tão fundamentalmente agitados na América Latina e no mundo.

Um filme triste sobre como será viver no seio de uma família movida, centrada e encerrada dentro do trabalho de um génio. Como será sobreviver na ressaca da ausência, do vazio, do eco extinto da criatividade exemplar de Astor Piazzolla, que não desdenhava a expectativa necessariamente em pausa da pesca à linha dos tubarões?

jef, maio 2019



«Piazzolla - Os Anos do Tubarão» (Piazzolla, Los Años del Tiburón) de Daniel Rosenfeld. Argentina / França, 2018, Cores, 90 min.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Sobre o filme «O Mar de Árvores» de Gus Van Sant, 2015
















Sem dúvida que Aokigahara é um objecto literário, cinematográfico. O “Mar de Árvores é uma floresta de 38 km² situada na base noroeste do monte Fuji, no Japão. É um local turístico, de grande densidade florestal, silencioso, onde os espíritos e as almas vindas da mitologia japonesa guerreiam pelo espaço contra os numerosos suicidas que por ali deambulam. Há avisos escritos para que pensem duas vezes. Em média, são encontrados cem corpos por ano, alguns em avançado estado de putrefacção ou até mesmo somente os seus esqueletos. Diz a Wikipédia.

Naturalmente, o realizador Gus Van Sant entusiasma-se com o facto e coloca dois seres em busca do nada circulando no palco denso da floresta. Arthur Brennan (Matthew McConaughey), cidadão americano, cientista, professor, e o japonês Takumi Nakamura (Ken Watanabe). Deste último pouco se sabe. Do primeiro, rigorosos flash-backs vão-nos pondo ao corrente das dificuldades amorosas (e outras mais) que este tem com Joan Brennan, a sempre bela e terna Naomi Watts.

Poderia ser um telefilme choramingão a ser visto numa chuvosa tarde de domingo, onde a tristeza, o desespero, a neurose, a doença, a aceitação da ausência definitiva, estão listadas por ordem enciclopédica, caso Matthew McConaughey e Naomi Watts não estivessem à altura de nos fazer esquecer cardápio tão depressivo. Caso Gus Van Sant não fosse exímio em apresentar, cruzados, o espaço florestal e o espaço do passado do protagonista, costurando a história com sinais simbólicos que nos fazem seguir pelo processo real de recuperação humana face ao trauma da morte no amor.

jef, maio 2019

«O Mar de Árvores» (The Sea of Trees) de Gus Van Sant. Com Matthew McConaughey, Ken Watanabe, Naomi Watts, Katie Aselton e Jordan Gavaris. EUA, 2015, Cores, 110 min.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Prepare-se para a terceira vida dos Rollana Beat! Hoje no cinema São Jorge, pelas 19h15. IndieLisboa!





















Digamos que Rollana Beat (1998–2002 / 2014) deseja apartar-se dos seus ouvintes mas não consegue. Rollana Beat regressa com mais imagens, também com mais som, nesta série de faixas (gostaria de dizer canções) oferecidas ao olhar plástico de treze artistas para que lhe dêem a projecção luminosa que nós, ouvintes-leitores, ambicionávamos. Porque a música dos Rollana Beat (André Ruivo – guitarra e voz; André Sentieiro – bateria; Fernando Ascensão – contrabaixo; Manuel Correia da Silva – gira-discos e sampler) sempre teve esse condão, quase estratégia, quase missão estética e paisagística. Música que reúne visões, vértices, assimptotas, roubos e repetições. Cenas e pausas. São 13 filmes tacitamente musicais (talvez devesse dizer videos) vindos sobretudo de dois grandes dossiers públicos (alguém chamar-lhes-ia álbuns), unindo duas vidas: «Big Sneeze» (MetroDiscos, 2000) e «Murdering the Classics» (Bandcamp, 2014).

Prepare-se agora para a terceira vida dos Rollana Beat!

1. INÊS OLIVEIRA «Jack Plays Trombone at the Underground Station» (3’19)
A cineasta Inês Oliveira vai buscar a canção à maquete dos Rollana Beat de 1998 e transporta-a, subvertendo-a, para o abrigo quente mas populoso do metro de Londres durante o Blitz de 1940-1941. Enquanto as sucessivas imagens a preto e branco relatam a possibilidade de concórdia por baixo da terra e dos bombardeamentos nazis, o riso nervoso da voz que persegue Jack devolve-nos a nevrótica e instável realidade.

2. GONÇALO DUARTE «He Ain’t Got Rhythm!» (4’38)
Ainda a maquete das músicas de 1998. O ilustrador Gonçalo Duarte liberta a banda desenhada sobre a animação do cinema, inverte as cores e transforma a tela numa ardósia onde as linhas desenhadas sugerem o giz agreste da infância. As vozes múltiplas, um caixão e um telefonema que se evade pela janela. Sobre a mancha que desvanece e transforma a cobra em pássaro, a flor em ruído urbano. O negro como princípio vital do ritmo.

3. DEDO MAU «Garbage Grows for our Distractions» (4’21)
A vida não anda fácil para quem chega do outerspace cheio de boas intenções e com um carrinho azul na mão. O Planeta está cheio de big brothers de olhares cruzados e vermelhos. Um spectrum game de onde é difícil escapar. O melhor é sintonizar o ecrã e regressar ao firmamento. Dedo Mau prefere as cores primárias para se evadir no interior
do cinema de animação, programático mas delirante, dentro da faixa extraída de Big Sneeze (2000).

4. VASCO REIS RUIVO «Ella» (1’46)
O realizador e músico Vasco Reis Ruivo vai ao oriente buscar olhares e sorrisos (ou quase sorrisos) e fumo e cigarros. Politicamente incorrecto, contudo pacificador. Filma
a cores dentro do scratch, sobre o scratch, e justapõe as imagens como slides em movimento alongado, ilustrando a faixa intróito do álbum «Big Sneeze» (2000). Uma pequena história com final feliz e cão em fundo.

5. XAVIER ALMEIDA «Revolutionary Dogs» (3’52)
A abstracção urbana como estímulo para a compreensão do movimento em falso. O artista plástico Xavier Almeida filma a cores, quase uma tela, um véu, sépia antigo, sobre o jazz de uma cidade que trabalha e se diverte, como os Rollana Beat já o haviam feito em 2000. Existe um ponto que não é final, uma mancha que atenua, perturba ou clarifica o nosso ente social. The smoke city with a dot.

6. RENATA SANCHO «Big Sneeze» (2’34)
Não podemos desmobilizar, desviando o olhar da sociedade de informação. A televisão é tão importante quanto o microscópico. A beleza de um vírus ou de uma bactéria é, através deles, visível e transmitida. Atenção ao espirro e à lindeza televisiva! Por esse motivo, Renata Sancho reparte o ecrã em três módulos, sublinhando a consciência da informação-infecção. Por fundo, uma das canções-mote dos Rollana Beat (2000).

7. AYA KORETZKY «Murdering Raymond Scott» (3’40)
Com a ajuda dos Rollana Beat, a realizadora Aya Koretzky assassina um dos mestres da repetição electromagnética aplicada ao som musical. Uma pasta lenta e morna, inexorável e viscosa, invade e vai tomando conta de tudo, do pouco que resta do compositor-inventor. A partir do canto superior esquerdo. Um mergulho vermelho sobre o epitáfio fotográfico. O sorriso afundado e um ponto final na canção retirada de Big Sneeze (2000).

8. OSTRALIANA «Expire Date» (3’25)
Ostraliana usa a vibração rítmica da bateria dos 3’25 minutos de «Expire Date» (Big Sneeze, 2000) para pôr a correr a transfiguração na dança profissional, desenhando a fotografia (rotoscopia). Parece coisa bíblica, a banda desenhada animada em papel de seda colorido: alguém, frente ao espelho, faz o que ele não diz do seu corpo mas também o que o olhar dos outros ordena. Ostraliana impõe às pausas musicais o figurativo da personagem em pose ostensivamente reflexiva.

9. EDGAR PÊRA «Just What the Doctor Ordered» (5’30)
Para o cineasta Edgar Pêra, a sua viagem ao oriente chinês, filmada a cores Super 8, «My Trip to China», reflectiu-se nos instantes de escadarias em movimento, de ruas que se atravessam a passo lento e bicicletas perpendiculares às passagens de peões. Também no circular parado da multidão nas cidades proibidas, dos anúncios luminosos, do sol vermelho que se deita. Até o som de «Just What the Doctor Ordered» (Murdering the Classics, 2014) é distendido, distorcido, quase parodiado, pela voz sincopada da língua chinesa.

10. BRUNO BORGES «Garland» (3’46)
A abstracção gárrula do filme que Bruno Borges executa sobre a trama musical sincopada, quase histérica, quase bruta, de «Garland» (Murdering the Classics, 2014), é provocadora de uma sintonia dicotómica e sincrética que ocupa todo o espaço criativo da visão do espectador. Digamos, toda a violência que um adulto pensa estar envolvida na ideia infantil do super-herói. Ou seja, o adulto infantil, a preto e branco. O riso e o medo.

11. LUÍS LÁZARO «Apparently Singing the Wrong Words» (6’10)
Luis Lázaro verbaliza de modo plástico, histriónico, o que a mais longa faixa («Murdering the Classics», 2014) desta série de filmes tende a velar. Aparentemente são palavras erradas e cantadas num sistema de sobreposição de caras e personagens escondidas que, a todo o custo, tentam tornar abstracto aquilo que deseja o figurativo. Cor de fogo lançado, quase metalúrgico. Existem olhos que não espreitam, apenas pretendem que sejam vistos. O pintor surge então, em luz negra-branca-azul, com pinceladas extremas transfigurando os comboios e os sinos secretos em animais nocturnos: solitários e urgentes.

12. ISABEL ABOIM INGLEZ «Western Spaghetti» (3’32)
A animação colorida de Isabel Aboim Inglez tem uma origem, quadro a quadro, ou frame a frame, se preferirem, na complexa montagem do cinema das cenas breves. As tardes infantis (antes da electrónica e dos telemóveis) eram assim. Uma colina de revistas “Condor”, um batalhão de cowboys, do lado de lá, outro, de índios ávidos de setas e de sangue. Um gira-discos portátil a tocar Ennio Morricone. Ou melhor «Western Spaghetti» (Murdering the Classics, 2014).

13. LEONOR NOIVO «Dopping» (3’57)
Nem Olivia Newton John, nem Jane Fonda. A cineasta Leonor Noivo justapõe a um certo blue mood do tema «Dopping» (2002) os nove exercícios (e um tanto) para classes de exercício físico a serem visionados no pequeno ecrã. Uma aeróbica que tem tanto de soviética quanto de libidinosa. Curtas cenas vindas das secções televisivas com o físico dos modelos a olhar-nos nos olhos enquanto a mira técnica se sintoniza em pose anacronicamente lenta e colorida.

Lisboa, Março de 2019
João Eduardo Ferreira