sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Sobre o filme «Da Natureza» de Ole Giæver e Marte Vold, 2014.














Da natural (mas sem remédio) solidão humana.
O melhor deste curto filme são as suas imperfeições: os anacrónicos hiatos narrativos, a apressada voz off sobre o fundo montanhoso a mover-se lentamente, os ténues flash-backs justificando aquilo que, por vezes, não devia ser desaprovado. A liberdade e a solidão são temas principais para reflexão durante um fim-de-semana em isolamento na montanha norueguesa. A consciência moral em fim-de-ciclo da vida humana em confronto com o ciclo da Natureza sem fim, sem pecado, sem perdão. Para onde caminhamos nós? A solidão é apeadeiro inevitável?

jef, novembro 2015


«Da Natureza» (Out of Nature / Mot Naturen) de Ole Giæver e Marte Vold. Com Ole Giæver, Rebekka Nystabakk, Marte Magnusdotter, Sivert Giæver Solem. Noruega, 2014, Cores, 77 min. 

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Sobre o filme “Tudo Vai Ficar Bem” de Wim Wenders, 2015.














Wim Wenders, Edward Hopper e a Noite Americana.
Este filme é sobre a improbabilidade da felicidade, ou melhor, sobre a linha que separa a abrupta assunção do luto e a névoa densa em que a memória se transforma com o passar tempo. Como nas telas de Edward Hopper, a sombra recortada ou a luz cega encobrem sempre um factor escondido, inconstante, instável. O factor narrativo da arte e também o do dia-a-dia. Os planos fotografados por Benoit Debie espicaçam a noite americana «hopperiana». A luz de serenidade presa ao fio da tragédia que se deseja sublimar. Tudo se passa sob a anacrónica e tensa banda sonora de Alexandre Desplat. Um dos grandes compositores de Hollywood! Afinal, a felicidade está assente sobre a areia movediça de uma bela luz que pacifica mas que é dramaticamente finita.

jef, novembro 2015


Wenders, Wim “Tudo Vai Ficar Bem” (Every Thing Will Be Fine). Rachel McAdams, James Franco, Peter Stormare, Charlotte Gainsbourg. Fotografia: Benoit Debie; Música: Alexendre Desplat. Argumento: Bjorn Olaf Johannessen; Canadá / Alemanha / França, 2015.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Ora! Ora!













Ora! Ora!

Imagine que o Sol se revolta contra Galileu Galilei e vai de andar desenfreadamente à volta da Terra sem tropeçar sequer na Lua.

Imagine que as galerias Uffizi começam a adquirir Rui Chafes por insuspeita ordem sentimental e todos acorrem a aplaudir o Baco de Caravaggio suspenso num imponderável arame.

Imagine que começam a citar John Cage, Wittgenstein ou Husserl logo ao abrir da primeira classe da instrução pública, por exigência da lógica, dos símbolos ou da lesa-majestade.

Imagine-se que algum iconoclasta resolve adorar a cultura pimba, as flores de plástico, a fastfood, que lhes dedica imagens coloridas, recita belas mantras, evangeliza por textos puros. Imagine que, sobre tudo isso, ainda sorri como se nada fosse.

Imagine que a ciência se transforma numa arte como todas as demais artes não figurativas. Apenas por exacto deleite de conhecer, de criar e de provocar a conversa.

Imagine a natureza a interrogar-se sobre a gravidade, a tensão superficial dos líquidos, a impenetrabilidade dos corpos, a transformação da matéria em vácuo, a energia potencial e o respectivo halo cinemático.

Imagine ainda um fogo a arder sem ser visto, uma ferida que dói sem se sentir, uma dor a desatinar sem doer, um cuidar que se ganha por se perder, uma lealdade a matar e a vencer o vencedor, um andar solitário por entre o mundo.

Ora!

Ficará esclarecido que o coração humano, algum dia, causará amizade favorável no próprio coração humano, mesmo sabendo que tão contraditório é este ao ser que o compreende. Tão contraditório que chega a compreender o seu próprio Amor…

…e Camões que se perca a imaginar rimas sérias para sonetos tolos.

jef, novembro 2015

terça-feira, 17 de novembro de 2015

A honestidade do pecado














A tômbola do pecado ou a honestidade do aleatório.
Saber o que uma esfera contém é uma motivação profissional tão honesta quanto a de qualquer outra profissão honesta. Agora, saber se existe alguma profissão minimamente honesta, isso já é outro problema. Nesse campo, poderemos recordar a frase célebre dita por algum filósofo em alguma conferência esquecida e da qual ficaram apenas uns quantos registos mal copiados e ainda por cifrar. «Atire a primeira pedra aquele que nunca pecou!». Se assim a verdade fosse, teria desabado uma chuva de pedras mentirosas sobre o pobre atormentado que não se decidia a abrir a bola nas duas metades de que era composta. Frederico colocara a moeda de euro na ranhura e rodara o manípulo em 360º. A esfera caíra, colorida e vã, outra metade transparente, no que agora se chamaria receptáculo. Frederico, como uma criança, ficou a vê-la ali por uns segundos, desconhecendo o que continha: um porta-chaves futebolístico, uma pastilha elástica embrulhada em cromo sugestivo, um corta-unhas com a imagem da santa. Apesar de estar viciado naquelas tômbolas, não movia os braços e as mãos pois tinha a cabeça noutro lugar. Pensava onde residiria o lado honesto de uma profissão. Abrir as bolas para testar o seu conteúdo. Nesse momento, Frederico pensava em Valéria, a prostituta de quem se tornara uma espécie de amigo. Não estaria a ser honesto para com o chulo de Valéria, conhecido do bairro desde miúdos. Frederico queria ser o chulo de Valéria e, logo à tarde, oferecer-lhe-ia o que saísse daquela esfera.
E quem ainda não tivesse pecado que atirasse a primeira pedra.

jef, novembro 2015

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Certezas











Certezas, certezas, parece difícil hoje em dia obtê-las.
Em supermercados, grandes superfícies, lojas de chineses ou de paquistaneses? Na mercearia da D.Antuérpia?
Mesmo por bom dinheiro já ninguém pode ter a certeza de que está a adquirir uma boa certeza. Dessas, fidedignas, com garantia, certificadas, prontas a serem usadas para todo o serviço, em todas as ocasiões… Para sempre!
Isso era outra época. Uma era tão recuada que fazem com que esses anos estejam enterrados agora em fetos arbóreos e grandes répteis herbívoros. Nessa altura, todos tinham a certeza de que sobreviveriam. Não havia dúvidas, raras vezes se enganavam.
As coisas eram diferentes nesse tempo. Os homens deitavam contas à vida, compravam o jornal pela manhã, tinham um livro de cheques no bolso do casaco, despediam-se das esposas que vinham acenar à porta, amorosas, de roupão e rolos na cabeça. Depois, dirigiam-se para o trabalho, certos que este duraria até ao final da vida. Feliz. Nem valia a pena olhar a televisão mais ou menos a preto e branco com guerras mais ou menos frias e continentes mais ou menos quentes e biquínis mais ou menos ilhas e cogumelos mais ou menos atómicos.
Belos tempos!
Mas olha no que deu tanta exuberância, tanta certeza…
Hoje as coisas não são bem assim. Empregos para mais de um ano são raros, as esposas não sorriem e as crianças não são educadas, nem andam bem vestidas, nem andam bem penteadas. Até a natureza parece andar destrambelhada!
Um Horror!
E o pior é que os outros sorriem e vêm dizer que assim é que as coisas devem ser. O sorriso dos tolos é a prova de que julgam ter a certeza absoluta das parvoíces que andam a dizer. Os imbecis!
Oh, meu Deus! Como é que este país há-de algum dia ir para a frente?
Que saudades tenho eu dos dinossauros excelentíssimos!

jef, novembro 2015

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Insecto perfeito













Insecto perfeito.
Se concedermos um ponto de luz ao abdómen de uma larva.
Se, depois, devolvermos à metamorfose a pose intacta do pré-insecto.
Não chegaremos à perfeição do pirilampo desaparecido, não.
Mas guardaremos para sempre
um dos muitos significados da palavra
Metáfora.


jef, novembro 2015

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Quando a sineta toca










Quando a sineta toca no alto do portão.

Sarabandas e contradanças são ouvidas lá no céu.
Cemitérios de anjos cegos presos na esperança de um dia serem guindados por suas dóceis asas até ao salão de baile.
Mas de pedra são e muito se agarram à laje!
Há fumo e fogo. 
Talvez uma lágrima. 
Ou um medo a escapar entre os dedos musicais.
Violas e violinos lançam arpejos fáceis e as sirenes de bombeiros afinam pelo timbre do trompete. A vassourinha assegura o toque romântico na bateria.
Sapateado leve, tiquetaque marialva, roçagar de saias, fartos bigodes encerados. Um ligeiro toque castrense de calcanhares. Um certo sorriso escondido no leque naftalina. Um aranhiço pequenino.
Paira no ar o cheiro da decadência acarinhada. Aroma a cadáver fresco. Ossos em contrachoque. Brincadeira para além do Além.
São barulhos comuns de um estranho mundo que só a Jack devemos!
[Que medo tenho eu do Boogie Woogie Man!]


jef, outubro 2015

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Sobre o livro «break dance» de André Ruivo, MMMNNNRRRG, 2015














O sonoro cheiro das sebentas escolares.
Digam o que disserem, existe uma poalha de liberdade, um laço perene de criatividade, deixados ao acaso pelas sebentas escolares. Um cheiro único e sedimentar nos riscos que cobrem a atenção que não é dada às aulas, às matérias, às vozes. Um silêncio único que é coberto de esferográfica, lápis de cor, grafite, tinta, e que vai dançando pelas folhas pautadas através de uma concentração muito especial. (Quem nunca dançou não sabe o poder dessa ‘ausência’). Um vácuo terno e caloroso em cada uma das pautas que poderia estar atafulhada de fórmulas teóricas e demonstrações dogmáticas.
Não é rebeldia mas, pura e simplesmente, Liberdade! Coisa única para o homem e respectiva sobrevivência. É esta a demonstração oferecida pelo recente livro de André Ruivo. «break dance».
Mas tomem atenção, muita atenção!
Não leiam estas ilustrações como desperdício infantil que ocupa muito do espaço psicanalítico da Arte com redes paternalistas de segurança ou acusações iradas contra um passado qualquer. As páginas finais, suspensas nos traços compactos de esferográfica preta, são dessa história prova e redenção!
As pontes executadas pelos traços, ilusoriamente descomprometidos e insconscientes, lançam para dentro de nós as hifas de um futuro que gostamos de ter na mão. Doa a quem doer!

jef, novembro 2015

«break dance» de André Ruivo, MMMNNNRRRG / the inspector cheese adventures, Outubro 2015.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Noite de Halloween. Dia de Todos os Santos. Dia de Finados.












Noite de Halloween. Dia de Todos os Santos. Dia de Finados.

Nunca devemos perder o sentido do nosso desassossego. Mesmo desconhecendo onde, num dado instante, este se encontra. Por vezes, esconde-se, anda cosido com as paredes, finge não nos afectar, até parece andar contente, distraído de nós. Ser independente do nosso sossego. Desengane-se quem pensa que, por fim, partiu de vez, podendo descansar e esquecer o lugar de onde veio.
Não. Esse quem está perante um acto ilusório.
Pelo contrário, o desassossego apenas recua para trás da árvore, faz um cocó, alivia a sua própria dor, desfaz a pressão, para depois tomar balanço e dar, ainda com mais força, um pulo assustador, aparecendo repentinamente à nossa frente.
Faz «Buuuu!».
Nós damos um salto, o coração na boca. No silêncio, assustamo-nos, gritamos sem fazer barulho e acabamos a olhar para o chão, a palma das mãos suadas, o rosto corado, como a criança perante o vidro partido.
Arrependimento, remorso, culpa... O desassossego alimenta-se de várias espécies de abóboras-meninas.
A morte momentânea arrebata-nos para os carris do absurdo e nós, por um momento, morremos com ela, desconhecendo de onde ela saiu, para onde nos levou. A morte perene fica por perto.
Depois as células recolhem à sua valva, esquecem, como esquecem todas as células de qualquer ser vivo que tem o dever da sobrevivência. Acalmam-se e voltam ao acto ilusório.
O desassossego foi só ali atrás da árvore fazer um xixi.

jef, novembro 2015