segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Sobre a peça «De Passagem» de Luísa Costa Gomes. Teatro do Bairro, 2024.






















Uma casa na montanha. Lá em baixo, um lago. Um homem que viaja de bicicleta pelo mundo, Roberto (Francisco Vistas), encontra o homem da casa, António (João Barbosa), que lhe oferece uma lata com feijões e está bastante mal-humorado. Roberto perde (ou é-lhe roubado) o saco com todos os pertences. Principalmente o caderno onde vai desenhando as paisagens que com ele se encontram. Com Roberto cruzam-se dois fleumáticos caminhantes, talvez britânicos e imperturbáveis, Domingos (Ricardo Aibéo) e Augusto (Marcello Urgeghe), que também apontam toda a dádiva da natureza num caderninho. Ao longe, na outra colina Maria Rita (Sandra Santos), com o seu pacífico marido Marlôn, anseia porque não consegue vislumbrar o seu filho Mateu que se afastou para ir sozinho comprar um gelado.

No fundo, «De Passagem» é uma comédia sobre o costume económico, como escreve Luísa Costa Gomes, na apresentação da peça. Todas as histórias se cruzam de modo anacrónico na tentativa de dar e receber, roubar e reaver, como se o maior humor fosse o mais trágico. Como se a maior troca não fosse a do amor mas a do bem, sendo a dádiva a moeda de troca e o aceitar um modo de empenho, de obrigação de retribuir, de ficar depois mais pobre e quem deu, afinal, futuramente vir a receber de volta e enriquecer.

Num cenário tão misterioso e bucólico quanto a intriga que nele se desenrola (com fortes laivos de angustiada intranquilidade) das paisagens naturalistas de Jean Baptiste-Camille Corot, apresenta-se uma comédia desabrida cujo centro é a etimologia da palavra e a intriga se encontra na velocidade lúdica do diálogo.

O verdadeiro teatro é isto!

(E pelo meio, ainda me lembrei dos Monty Python e das comédias revolucionárias de Marivaux e Beaumarchais)


jef, janeiro 2024

«De Passagem» Texto: Luísa Costa Gomes. Encenação António Pires. Com: Francisco Vistas, João Barbosa, Marcello Urgeghe, Ricardo Aibéo e Sandra Santos. Cenografia: Alexandre Oliveira. Figurinos: Luísa Pacheco. Desenho de Luz: Rui Seabra. Desenho de Som: Paulo Abelho. Produção: Ar de Filmes / Teatro do Bairro. 90 min (aproximadamente)

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Sobre o filme «Os Delinquentes» de Rodrigo Moreno, 2023



 





























Da Argentina, o ano passado já nos chegara «Trenque Lauquen: Parte I e Parte II» (Laura Citarella, 2023). Um longo filme constituído por duas partes. Dois episódios que se completavam e confundiam um aos outro… Ao estilo David Lynch.

Agora, do mesmo país e também em duas longas partes, chega o filme de Rodrigo Moreno. Decididamente uma comédia de efeitos surpreendentes que dá ao espectador todo o tempo para seguir um enredo que o confundirá e entusiasmará ao longo das suas três horas de exibição. Uma comédia de suspense realizada, no início, como faz Alfred Hitchcock, com uma mochila cheia de dólares surripiados declaradamentee ao som de uma extraordinária banda sonora a lembrar Bernard Herrmann. Para concluir-se como Pedro Almodóvar costuma imaginar, num intrincado movimento de paixões, encantamentos e coloridos musicais. Onde também permanece o laivo de David Lynch, angariando as paisagens americanas (estas agora do Sul) para enquadrar o enredo que segue a volúpia desconexas dos respectivos episódios.

Um enorme filme de puro entretenimento com actores que se afastam da beleza física mas se aproximam da fotogenia pura. Como se vivessem para estar à frente de uma câmara ávida de um argumento louco, livre e fantasioso sob o lema: para quê viver 40 anos aborrecidos a trabalhar se podemos trocá-los por apenas três anos na cadeia e, depois, a vida restante na liberdade definitiva? (E ainda por cima com o eterno sorriso bucólico a pairar!)

 

jef, janeiro 2024

«Os Delinquentes» (Los delincuentes) de Rodrigo Moreno. Com Daniel Elías, Esteban Bigliardi, Margarita Molfino, Germán de Silva, Mariana Chaud, Gabriela Saidon, Cecilia Rainero, Javier Zoro, Lalo Rotavería, Iair Said, Fabian Casas, Adriana Aizemberg. Argumento: Rodrigo Moreno. Produção: Ezequiel Borovinsky e Renata Falcheto. Fotografia: Inés Duacastella e Alejo Maglio. Guarda-roupa: Flora Caligiuri. Argentina / Luxemburgo, 2023, Cores, 180 min.

 

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Sobre o livro «O Último Sonho» de Pedro Almodóvar, Alfaguara 2023. Tradução de Helena Pitta.


 









Ler este livro é um modo de aprofundar o método de funcionamento artístico e emocional de Pedro Almodóvar. Parece que aqui está tudo e ao mesmo tempo sugere que lhe falta a outra metade. Um cineasta único, um coração movimentado, atormentado. Entre a reflexão do alto dos seus 74 anos, as dores de cabeça, os tormentos, a solidão, as suas dúvidas e as certezas flamejantes da divertida vampe nascida no pós-Franco, a insone estrela de fotonovela porno Patty Diphusa.

São uma dúzia de relatos, entre o conto, a crónica, a reflexão. A educação religiosa, a morte da mãe, a comparação com Andy Warhol, o fascínio por Chavelas Vargas e os contos de estilo – a princesa Joana, a católica, a demente e a adormecida; o vampirizado padre Bendito; o santificado Barrabás; o morrido-nascido Miguel; a vingança de Luís ou o teatro de Tennessee Williams – John Cassavetes visto através de León.

Afinal, Pedro Almodóvar é mesmo aquela criatura que se habituou a contar-nos histórias, tristes e divertidas, tal coloridas quanto musicais. Tal como ele é.

E tão honesto, que nos propõe inicialmente a própria leitura do seus textos e por fim, o próprio escreve «Um Romance Mau», um texto linear e directo à brutal diferença existente entre o romancista, o escritor de guiões e o cineasta.

Pode não ser o melhor livro do mundo mas que nos deixa, uma vez mais, apaixonados pelo carinho das imagens e dos enredos de Pedro Almodóvar, lá isso deixa!


jef, janeiro 2024

sábado, 20 de janeiro de 2024

Sobre o filme «Folhas Caídas» de Aki Kaurismäki, 2023



 




















Tomemos «Folhas Caídas» como uma peça de teatro alegórica onde os actores quase não se movem diante de uma câmara parada, onde tudo faz sentido, as cores, os decores, o guarda-roupa, a estratégia de uma narrativa tão forte quanto natural ou fortuita. Imagine-se que estamos a ver imagens por um antigo daguerreótipo mas em belas cores e com a Ucrânia invadida e bombardeada a cada momento. Como uma sequência de naturezas mortas. Como pinturas musicais, ternas e tristes. Também cómicas. Como são todas as fábulas.

Aliás (para mim) os reis das fábulas contemporâneas, doces, tristes, belas e musicais são: Jim Jarmusch, Roy Andersson e Aki Kaurismäki. Aqueles que humanamente olham para o cinema através do modo ancestral de contar as histórias sem história. Os perdidos na vida e no silêncio, operários despedidos, empregadas de supermercado despedidas, aguardando um momento para ir ao clube de karaoke para velhos ou ao cinema Ritz ver os mortos-vivos mais recentes de Jim Jarmusch («Os Mortos Não Morrem», 2019). Alguém sai do cinema e compara-o com «Diário de um Pároco de Aldeia» (Robert Bresson, 1951) ou «Bando à Parte» (Jean-Luc Godard, 1964). À porta do cinema, a triste, pobre, solitária e desempregada Ansa (Alma Pöysti) e o pobre, triste, desempregado, solitário e alcoólico Holappa (Jussi Vatanen) conversam sobre como tanto se pode rir num filme de mortos-vivos. Por cima espreita o célebre cartaz de «Breve Encontro» (David Lean, 1945).

Ansa e Holappa talvez um dia se voltem a encontrar. Um dia talvez refaçam a vida e regressem a casa seguidos pela cadela Chaplin.

«Folhas Caídas» é um filme urgente sobre as vidas que são tudo e também nada são.

Um filme belo como poucos para ser guardado para sempre nos olhos e no coração.


jef, janeiro 2024

«Folhas Caídas» (Kuolleet lehdet) de Aki Kaurismäki. Com Alma Pöysti, Jussi Vatanen, Alina Tomnikov, Martti Suosalo, Sakari Kuosmanen, Janne Hyytiäinen, Nuppu Koivu, Maria Heiskanen, Sherwan Haji, Paula Oinonen, Eero Ritala, Mikko Mykkänen, Matti Onnismaa, Lauri Untamo. Argumento: Aki Kaurismäki. Produção: Aki Kaurismäki. Fotografia: Timo Salminen. Guarda-roupa: Tiina Kaukanen. Finlândia / Alemanha, 2023, Cores, 81 min.

 

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Sobre a peça «Hamlet, o Musical» de Jacinto Lucas Pires, 2023


 























Como a Bíblia, Hamlet de William Shakespeare é um livro infinito. Como com a Bíblia, já se fizeram musicais e também podemos lê-lo de trás para a frente.

Aqui, é-nos oferecida a história do anti-herói e príncipe Hamlet, Senhor de Elsinore e das vinganças, da viagem a Inglaterra e do rancor, do pai morto, das tantas mortes, da Ofélia vogando no mar de lágrimas, das recordações trazidas em flash-back (ou analepse) e da memória ressabiada, reconstruída ou repisada, a memória consabida da morte. Ou seja o fim da memória.

Mas essa história é-nos dada agora através de um musical desconexo onde as personagens se travestem e dançam, e ainda cantam e também morrem (ou fingem morrer). Vá lá!

Não interessa a ordem, aqui revisita-se esta morte que já foi revisitada em «Coveiros» de Jacinto Lucas Pires (2022). Horácio vai tentar mesmo contar a história de trás para a frente. E nós tentamos ir atrás dele, mas ele baralha-se.

Ficamos ainda a saber pronunciar Rosencrantz, Guildenstern e Fortinbras!

Aguardemos então o tal Hamlet, o completo. O definitivamente morto, revisitado e adorado. Hamlet, o eterno.


(Ainda bem recordo da tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen para a encenação de Luis Miguel Cintra e o cenário e os figurinos Cristina Reis, no Teatro da Cornucópia, em 2015. Fui buscar a tradução de António M. Feijó, Cotovia, 2001)


jef, janeiro 2024

«Hamlet, o Musical». Encenação: Marcos Barbosa. Dramaturgia: Jacinto Lucas Pires. Criação Musical: Silas Ferreira. Cenografia e Figurinos: Arial Fiske de Gouveia. Desenho de luz: Carlos Ribeiro. Interpretação: Pedro Fontes, Silas Ferreira e Marcos Barbosa. Produção: Escola do Largo / Admirável Reino.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Sobre o filme «Anselm - O Som do Tempo» de Wim Wenders, 2023



 















Não sei se terá sido pelo encantamento dos filmes que tenho visto ultimamente, todos perfeitos no seu plano estético, moral, afectivo, aproximando-me da visão miniaturista e ultra-emocional sobre a exigível existência futura – «Ervas Secas» de Nuri Bilge Ceylan (2023); «Dia Perfeiros» de Wim Wenders (2023); «História de Um Proprietário Rural» e «Crepúsculo em Tóqui» de Yasujiro Ozu (1947, 1957).

Talvez por causa de uma overdose de imagens bélicas, ansiosas, agressivas e sangrentas com que todos nós nos confrontamos minuto a minuto no quotidiano.

Ou pelo meu ancestral estrabismo que não me permite ver convenientemente a realidade dos filmes 3D sobre dois óculos sobrepostos, deixando a minha cabeça hirta para que a enxaqueca não sobreviva.

(E não deixando de pensar que só os antigos egípcios e os ícones pré renascentistas viam a realidade apenas a duas dimensões, sendo que a arte visual contemporânea, cinematográfica ou não, tem sempre em atenção os famosos pontos de fuga e as linhas de convergência.)

E apesar do filme ser muito belo nesse absoluto oceano sem fundo da arte de Anselm Kiefer que, eu pobre ignorante, desconhecia.

O filme sobre tal extravagante artista plástico e a sua exorbitante, monumental, gigantesca obra de arte não me entusiasmou por aí além. O filme, não a obra retratada, pareceu-me em certos momentos um pouco piegas.

Contudo, reconheço que esta geração de artistas alemães (Anselm Kiefer, Joseph Beuys, Wim Wenders ou Rainer Werner Fassbinder) são absolutamente fundamentais para ser possível construir algo de belo por cima da absoluta ignomínia do holocausto e das suas sequelas.

 

jef, janeiro 2024

«Anselm - O Som do Tempo» (Anselm - Das Rauschen der Zeit) de Wim Wenders. Com Anselm Kiefer, Daniel Kiefer, Anton Wenders, Ingeborg Bachmann, Joseph Beuys, Paul Celan, Martin Heidegger. ProduçãoKarsten Brünig. Fotografia: Franz Lustig. Música: Leonard Küßner. Alemanha, 2023, Cores, 92 min.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Sobre o disco «Ruins» de Grouper, Kranki, 2014









Não sei se quando gostamos muito de um disco não procuramos nele, acima de tudo, os sons ancestrais que nos dizem respeito. A nossa memória musical, o nosso caminho mais alongado, as moléculas perdidas de qualquer coisa desaparecida e de que gostávamos muito.

«Ruins» tem um lado espontâneo e intuitivo, dificílimo de conseguir no mundo musical que, hoje em dia, parece andar verdadeiramente enlouquecido em termos comerciais.

A americana Liz Harris deita mãos e ouvidos a esses princípios, retira-se para casa de uma tia emprestada e vai gravando directamente o som do piano e da voz ao crespúsculo de Aljezur, lá no distante ano de 2011. No final, a oitava faixa “Made of Air” chega depois mas foi gravada antes, em casa materna em Petaluma – Califórnia (2004).

Inicia-se com “Made of Metal”, uma percussão com o vago subterfúgio tribal  sob o som etéreo de ralos ou das rãs. Pouco importa a zoologia. Depois vem o espaço amplo mas com as reverberações das batidas nas cordas do piano vindos do eco de um sótão plantado à beira Atlântico.

Pelo meio, “Labyrinth” é concluído com um bip de micro-ondas. A electricidade volta a casa da tia do Sérgio e a máquina presta tributo musical ao sereno vazio Vicentino. E não lhe foi recusado.

Tudo sem início, tudo sem fim. Mas muito belo.


(Ah! E lá fui anotando sem critério alguns dos tais caminhos ancestrais – «From Gardens Where We Feel Secure» de Virginia Astley (1983); Brian Eno; Erik Satie; Feist; «Dehli9» dos Tosca (2003), …


jef, janeiro de 2024

 

quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

Sobre o livro «Rusga» de Rui Môço, Cordel d’Prata 2020












São 36 textos que, em certo sentido, poderíamos considerar como poemas se não fossem escritos em prosa e neles não espreitasse a veia narrativa de cronista de Rui Môço.

Seriam poemas sérios se o autor conseguisse reprimir o irresistível laivo de humor com que enaltece ou fustiga grande parte dos protagonistas nos seus contos.

Sim, porque são pequenos contos que, em simultâneo, contêm o lado microcósmico e humanista do quotidiano mas também o delirante lado clínico da observação diária, quase fantasioso, quase romanesco. Lembrei-me de Robert Walser ou Nikolai Gógol.

O Amor e a Morte. O Cosmos e a Botânica. O Mar, a Solidão e o Abandono. Também o Corpo e a Palavra.

Talvez melhor, tudo sobre o corpo da palavra. Sem o vício do adjectivo nem o inútil alongar descritivo da acção. Simples e eficaz. Por vezes matreiro, outras, doce.

E se já ninguém deveria escrever sobre o amor, a páginas tantas, Rui Môço ameaça-o escrevendo o paraíso e o inferno que se abatem, intermitentes, sobre o vôo das andorinhas que tentam encontrar os frutos ávidos na superfície de um corpo suculento.

Ou, já lá para o fim, o assomo de uma natureza morta com uma laranja esmagada que tenta, apesar do sumo se perder pela rua, manter a dignidade da sua forma.

«Rusga» será, deste modo, a metáfora para o toque-e-foge de um desejo ou de uma desilusão.

 

jef, janeiro 2024

segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

Sobre o livro «Um Lugar para Mungo» de Douglas Stuart, Alfaguara, 2023. Tradução de Nuno Quintas.



 







Como deve ser difícil traduzir um livro como «Um Lugar para Mungo». E esse modo verbal vindo directo de uma sociedade à beira da ruptura por todos os cantos. Novamente («Shuggie Bain», Douglas Stuart 2021), os arrabaldes de Glasgow, os bairros sociais, o desemprego, nem carvão, nem aço, nem estaleiros, apenas uma política inferior e musculada. Margaret Thatcher, 1980. O álcool, a droga, a pobreza, o desamparo. E a testosterona. A agressividade atroz entre as tribos protestantes e católicas como diversão primordial de fim-de-semana. O sangue e os ossos partidos. A subjugação à supremacia masculina como vínculo mais distinto de uma sociedade. Um bairro, Um prédio, umas escadas com um vitral luminoso em cada patamar, em cada lar um esconderijo mal dissimulado. Ali vive Mungo, a irmã Jodie, a sua protecção talvez também o irmão Hamish, a sua ameaça. A mãe Mo-Maw, sigla usada nos Alcoólicos Anónimos, já não mora ali. Do outro lado, pelas janelas das traseiras, Mungo diverte-se em trejeitos e momices com James. Mungo tem 15 anos, James um pouco mais velho, é católico e tem um pombal num descampado por perto. Uma amizade quase infantil que se vai aproximando irremediavelmente da paixão. Porém e por todos os motivos, ela é proibida.

O romance é escrito de tal modo que a leitura se torna compulsiva apesar de (ou talvez por isso mesmo) sabermos da tragédia iminente. Em diálogo constante, com descrições rápidas e microscópicas, por vezes infligindo golpes radicais narrativos. É-nos apresentado em dois tempos diferentes: “Maio seguinte” e “Janeiro passado” que se aproximam numa vertigem de ansiedade, miséria e abandono, até assistirmos à sua conclusão, em climax apoteótico de peça de teatro, em que todos os agentes e toda acção se unem, à mesma hora, no terreiro frente ao hospital, junto a uma rulote de “bifanas” escocesas.

Douglas Stuart tem um dom especial para fazer fluir o melodrama através do modo muito especial em emprestar sensibilidade e ternura às personagens, mas também raiva e revolta por uma injustiça tão real e dilacerante. (O realizador de cinema Douglas Sirk, certamente ficaria curioso pelos enredos do seu homónimo!)

Será Douglas Stuart um escritor neo-neo-realista?

 

jef, janeiro 2024

domingo, 7 de janeiro de 2024

Sobre o livro «Anna Karénina» de Lev Tolstoi. Relógio D’Água, 2012 (1877). Tradução de António Pescada.



 







«Anna Karénina» é um romance monumental escrito em miniatura. Uma enorme novela minuciosa construída a partir de três ou quatro histórias principais que se cruzam e chocam nas quais o pormenor mais ínfimo e requintado de uma saia, de um véu ou sobrecasaca é tão importante como os comentários sociais e políticos que vão evoluindo ao sabor do rodar das caleches ou da caça às galinholas nas margens pantanosas do lago. É a história universal do Amor mas, talvez acima de tudo, a compreensão das mudanças radicais que um país continental como a Rússia viria a sofrer ao longo das décadas e dos séculos seguintes.

Nos bailes e jantares, todos os pormenores descritivos são fundamentais e ninguém é figurante. Todas as reacções têm consequências, todos os olhares, as suas causas. Como nas cenas de baile dos filmes de Luchino Visconti. O guarda-roupa nas corridas de cavalo é essencial, como nos filmes de George Cukor. Os uniformes definem a hierarquia, o tédio e a vacuidade das relações administrativas e nas eleições regionais.

Um romance que, na sua primeira linha, marca para sempre o percurso melancólico da humanidade:

«Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.».

Nenhuma novela de mais de 750 páginas começa de modo tão rápido como se tivéssemos entrado no cinema já com o filme a meio. Logo a figura de Stepan Arkáditch Oblonski, hedonista, leviano, bon vivant, gastador, marca o ritmo. Talvez a figura mais superficial e quase tola, também divertida e sociável, amigo de longa data, do tempo miliar, de Konstantin Dmítri Lévin, precisamente o seu oposto. Talvez a personagem mais acarinhada pelo escritor, aquela que lhe veste a pele, que vai às colmeias com ele ou recita de cor as próprias teorias sobre a religião, sobre a agricultura, sobre o mau-humor e o bom amor pela humanidade. Taciturno, tão envergonhado quanto apaixonado, tão literato como distraído e juvenil, sempre a duvidar da utilidade de rezar a um certo deus. Deverá haver poucos romances que acabarão de modo tão poético, introspectivo, iconoclasta, consciente, fundamentado na virtude do melhor querer. Termina com a própria lei estipulada por Lévin para o resto da sua vida.

Uma outra personagem masculina, central para o desenrolar da intriga e que representa ainda o oposto de Oblonski e Lévin, obrigou-me a sublinhar o seu lema:

«Cada minuto da sua vida estava ocupado e programado. E para conseguir fazer tudo o que devia fazer todos os dias, ele mantinha a mais rigorosa pontualidade. “Sem pressas e sem descanso”, era a sua divisa».

Alesksei Aleksándrovitch, de seu nome, mais velho, funcionário de ministério, implacável nas normas administrativas e familiares e no cumprimento religioso, tem umas mãos e umas orelhas muito particulares. Ainda outra personagem no oposto das anteriores. Pelo contrário, uma das mais infantis e solitárias, fez-me apontar outra passagem. Serioja estuda obrigado à frente do professor, velho e feio:

«Compreendia que o professor não pensava no que dizia, sentia-o pelo tom com que isso era dito. “Mas porque é que eles combinaram dizer tudo da mesma maneira, tudo o que é mais maçador e desnecessário? Porque é que ele me afasta de si, porque é que não gosta de mim?”, perguntava a si mesmo com tristeza e não conseguia encontrar resposta.»

O mais inacreditável no romance é que o ritmo não é constante e navega ao sabor diletante do instinto do escritor, entre descrições de refeições e compotas ou teorias para renovar o contrato agrícola num país onde a serventia nos campos acabara. E o nosso tempo segue a seu lado, acelerando e travando em tom volúvel, no modo literário e não real, que deixa o leitor preso à página que está a virar.

Nas últimas páginas, tive de abrandar para melhor saborear a leitura e adiar esse sempre triste sentimento de orfandade que os enormes livros entusiásticos deixam no leitor quando ameaçam chegar ao fim.

Colossal monumento ao Amor, à Vida e à Liberdade.


jef, janeiro 2024

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Sobre o filme «As Ervas Secas» de Nuri Bilge Ceylan, 2023

 





















O cinema de Nuri Bilge Ceylan vive da paisagem como personagem e do tempo que ela entrega às figuras que nela ficam suspensas. É usualmente um tempo de espera, um tempo quase inconsequente como o ritmo inflexível das estações do ano.

Aqui o Inverno que cobre o horizonte de uma pequena aldeia pobre da Anatólia na Turquia acolhe um professor de artes visuais, Samet (Deniz Celiloglu) que vive entre o tédio branco daquele horizonte e o instável desespero de voltar a Istambul. Até que a sua aluna preferida, Sevim (Ece Bagci), o acusa de um procedimento menos próprio, por interesse, provocação ou vingança. Nunca o saberemos.

Dos filmes do realizador que me lembro, talvez seja este o que leva essa instabilidade emocional a um ponto mais forte, tornando a indecisão ou desespero ou aborrecimento de Samet num quase caso de suspense, envolvendo o realismo de um regime lectivo autoritário, um ambiente de revolta política violenta, uma aldeia quase abandonada à sua sorte, uma inconsequente história de afecto melancólico entre Samet, Nurai (Merve Dizdar) e Kenan (Musab Ekici).        

E se a paisagem é a trave-mestra, aquela que define a beleza como o fulcro estético do dicionário poético que o realizador constrói para si próprio e para os que assistem aos seus filme, a verdade é que a ética acompanha-a pelas densas discussões teóricas sobre o princípio da liberdade individual e o seu afastamento face à responsabilidade social colectiva, num assomo de existencialismo, acusado de cobardia. A este respeito veio-me à memória «Malmkrog» de Cristi Puiu (2020).

Contudo, já bem avançado vai o filme surge um episódio inusitado que nos faz regressar à sala de cinema. Samet deve ir à casa de banho e tem de fazer um longo percurso cenográfico. Essa sequência (talvez dispensável) vem lançar uma suspeita sobre o protagonista e uma acha para a fogueira das dúvidas. Interessante mas que não suplanta Pedro Almodóvar em «A Voz Humana» (2020) ou o épico «O Navio» de Federico Fellini (1983).

Uma obra que merecerá sempre a nossa melhor atenção.


jef, janeiro 2024

«As Ervas Secas» (Kuru Otlar Üstüne / About Dry Grasses) de Nuri Bilge Ceylan. Com Deniz Celiloglu, Merve Dizdar, Musab Ekici, Ece Bagci, Erdem Senocak, Yüksel Aksu, Münir Can Cindoruk, Onur Berk Arslanoglu, Yildirim Gücük, Cengiz Bozkurt, S. Emrah Özdemir, Elif Ürse, Elit Andaç Çam. Argumento: Ebru Ceylan, Nuri Bilge Ceylan e Akin Aksu. Produção: Nuri Bilge Ceylan. Fotografia: Cevahir Sahin e Kürsat Üresin. Música: Philip Timofeyev. Guarda-roupa: Gülsah Yüksel. Turquia, 2023, Cores, 197 min.