«Anna
Karénina» é um romance monumental escrito em miniatura. Uma enorme novela minuciosa
construída a partir de três ou quatro histórias principais que se cruzam e
chocam nas quais o pormenor mais ínfimo e requintado de uma saia, de um véu ou
sobrecasaca é tão importante como os comentários sociais e políticos que vão
evoluindo ao sabor do rodar das caleches ou da caça às galinholas nas margens
pantanosas do lago. É a história universal do Amor mas, talvez acima de tudo, a
compreensão das mudanças radicais que um país continental como a Rússia viria a
sofrer ao longo das décadas e dos séculos seguintes.
Nos
bailes e jantares, todos os pormenores descritivos são fundamentais e ninguém é
figurante. Todas as reacções têm consequências, todos os olhares, as suas
causas. Como nas cenas de baile dos filmes de Luchino Visconti. O guarda-roupa nas
corridas de cavalo é essencial, como nos filmes de George Cukor. Os uniformes
definem a hierarquia, o tédio e a vacuidade das relações administrativas e nas
eleições regionais.
Um
romance que, na sua primeira linha, marca para sempre o percurso melancólico da
humanidade:
«Todas
as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é
infeliz à sua maneira.».
Nenhuma
novela de mais de 750 páginas começa de modo tão rápido como se tivéssemos
entrado no cinema já com o filme a meio. Logo a figura de Stepan Arkáditch Oblonski,
hedonista, leviano, bon vivant,
gastador, marca o ritmo. Talvez a figura mais superficial e quase tola, também
divertida e sociável, amigo de longa data, do tempo miliar, de Konstantin
Dmítri Lévin, precisamente o seu oposto. Talvez a personagem mais acarinhada
pelo escritor, aquela que lhe veste a pele, que vai às colmeias com ele ou recita
de cor as próprias teorias sobre a religião, sobre a agricultura, sobre o
mau-humor e o bom amor pela humanidade. Taciturno, tão envergonhado quanto
apaixonado, tão literato como distraído e juvenil, sempre a duvidar da
utilidade de rezar a um certo deus. Deverá haver poucos romances que acabarão
de modo tão poético, introspectivo, iconoclasta, consciente, fundamentado na
virtude do melhor querer. Termina com a própria lei estipulada por Lévin para o
resto da sua vida.
Uma
outra personagem masculina, central para o desenrolar da intriga e que
representa ainda o oposto de Oblonski e Lévin, obrigou-me a sublinhar o seu
lema:
«Cada
minuto da sua vida estava ocupado e programado. E para conseguir fazer tudo o
que devia fazer todos os dias, ele mantinha a mais rigorosa pontualidade. “Sem
pressas e sem descanso”, era a sua divisa».
Alesksei
Aleksándrovitch, de seu nome, mais velho, funcionário de ministério, implacável
nas normas administrativas e familiares e no cumprimento religioso, tem umas
mãos e umas orelhas muito particulares. Ainda outra personagem no oposto das anteriores.
Pelo contrário, uma das mais infantis e solitárias, fez-me apontar outra
passagem. Serioja estuda obrigado à frente do professor, velho e feio:
«Compreendia
que o professor não pensava no que dizia, sentia-o pelo tom com que isso era
dito. “Mas porque é que eles combinaram dizer tudo da mesma maneira, tudo o que
é mais maçador e desnecessário? Porque é que ele me afasta de si, porque é que
não gosta de mim?”, perguntava a si mesmo com tristeza e não conseguia
encontrar resposta.»
O
mais inacreditável no romance é que o ritmo não é constante e navega ao
sabor diletante do instinto do escritor, entre descrições de refeições e
compotas ou teorias para renovar o contrato agrícola num país onde a serventia
nos campos acabara. E o nosso tempo segue a seu lado, acelerando e travando em
tom volúvel, no modo literário e não real, que deixa o leitor preso à página
que está a virar.
Nas
últimas páginas, tive de abrandar para melhor saborear a leitura e adiar esse sempre
triste sentimento de orfandade que os enormes livros entusiásticos deixam no
leitor quando ameaçam chegar ao fim.
Colossal monumento ao Amor, à Vida e à Liberdade.
jef,
janeiro 2024
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