quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Sobre o filme «A Noite do Dia 12» de Dominik Moll, 2022

















Do realizador Dominik Moll a minha memória vai directamente para o filme «Harry, um Amigo ao seu Dispor» (2000), um thriller psicológico inclassificável, inquietante, inesquecível, que oferece ao actor Sergi Lopez (Harry) o papel da sua vida, entre a comédia trágica, a esquizofrenia delirante e a mortal obsessão.

Com «A Noite do Dia 12», o realizador volta ao percurso através do interior das personagens pela via mais difícil: como epígrafe, ele logo nos apresenta a inconclusão do desfecho, o de um crime por desvendar. Quase todo o filme revela as marcas psicológicas que esses casos deixam até nos investigadores e polícias mais experientes. Por essa inconclusão, os espaços abertos em torno da estação de ski parecem confluir na claustrofobia obsessiva da investigação ou nos exíguos espaços onde são feitos os interrogatórios e os polícias vivem em casulo.

Pouco se revelará se se disser que o caso gira em torno do cadáver de Clara (Lula Cotton-Frapier), encontrado na noite do dia 12. Clara, queimada viva. Clara, inteligente e alegre, que teria uma queda para se apaixonar facilmente por bad boys. Os suspeitos são muitos, as dúvidas ainda mais. As sequelas psicológicas do vazio da investigação no jovem investigador chefe Yohan (Bastien Bouillon), em Marceau (Bouli Lanners), nos restantes polícias ou até na juíza (Anouk Grinberg) são imensas e ultrapassam-nos.

De novo, Dominik Moll conta-nos uma história no modo “realista” transformando um filme supostamente policial numa viagem pelos interstícios emocionais de quem lida por profissão com a morte infligida, as suas causas, as suas consequências. Um filme a não perder.


jef, novembro 2023

«A Noite do Dia 12» (La nuit du 12) de Dominik Moll. Com Bastien Bouillon, Bouli Lanners, Théo Cholbi, Johann Dionnet, Thibaut Evrard, Julien Frison, Paul Jeanson, Mouna Soualem, Pauline Serieys, Lula Cotton-Frapier, Charline Paul, Matthieu Rozé, Baptiste Perais, Jules Porier, Nathanaël Beausivoir, Benjamin Blanchy, Pierre Lottin, Camille Rutherford, David Murgia, Anouk Grinberg. Argumento: Gilles Marchand e Dominik Moll segundo o romance de Pauline Guéna. Produção: Caroline Benjo, Barbara Letellier e Carole Scotta. Fotografia: Patrick Ghiringhelli. Música: Olivier Marguerit. França / Bélgica, 2022, Cores, 115 min.

 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Sobre o filme «Céu em Chamas» de Christian Petzold, 2023

































O que restará deste filme talvez seja mesmo Paula Beer, aquela actriz que (depois de Nina Hoss!!) o realizador colocou na frente das suas câmaras fazendo-a brilhar em empatia cinematográfica, quero dizer fotogenia. «Em Trânsito» (2018) ou «Undine» (2020). Talvez «Céu em Chamas» sobreviva apenas pelo sorriso e o enlevo dramáticos da actriz.

Parece que Christian Petzold já esqueceu que um dia realizou «Bárbara» (2012) ou «Phoenix» (2014) e nos deu o lado consciente, teatral, histórico e belo do cinema. Agora, o realizador resolveu colocar tudo no mesmo cadinho e levar ao lume das alterações climáticas: a crise literária de um jovem escritor, Leon (Thomas Schubert), os respectivos ciúmes amorosos pela irreverência libertadora de Nadja (Paula Beer), também os ciúmes pelo fotógrafo e amigo Felix (Langston Uibel), este que se toma de amores pelo nadador-salvador Devid (Enno Trebs) e também ciúmes pelo seu malogrado editor Helmut (Matthias Brandt), este que dá mais atenção a Nadja (afinal, ela é muito mais do que parece!) e pelas belas fotografias do portfolio de Felix. No fundo, Leon nem escreve nem se diverte, em suma, é um chato!

Não há dada que falte neste filme mas parece que tudo lhe sobeja (excepto Paula Beer, claro!), numa tentativa falhada de simulacro das comédias dramáticas de praia de Éric Rohmer.


jef, novembro 2023

«Céu em Chamas» (Roter Himmel) de Christian Petzold. Com Thomas Schubert, Paula Beer, Langston Uibel, Enno Trebs, Matthias Brandt. Argumento: Christian Petzold. Produção: Anton Kaiser, Florian Koerner von Gustorf e Michael Weber. Fotografia: Hans Fromm. Alemanha, 2023, Cores, 102 min.

 

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Sobre o filme «O Pub The Old Oak» de Ken Loach, 2023












Quando idealizou o filme com o argumentista Paul Laverty, Ken Loach não terá imaginado como a sua estreia em 2023 se revelaria uma paradigmática premonição do aprofundamento do nosso mundo contemporâneo, tremendamente violentíssimo, tremendamente abjecto, onde a guerra e os imbecis enaltecem a lei da miséria e da morte.

Olhado de muito longe, «The Old Oak» talvez não seja o melhor de Ken Loach. Contudo, este cinema deve ser visto bem de perto, como uma espécie de homília salvadora da barbárie. O cinema, a literatura, a arte… E uma certa ingenuidade programática do argumento em fazer confluir apenas num filme o mundo mineiro desaparecido com a chegada dos imigrantes destroçados, fornece a carga comocional suficiente para fazer de nós, espectadores, actores de uma consciência social, política, global, tornando o filme ainda mais interventivo.

E o mundo precisa de cinema militante e terno, bondoso e consciente. E Ken Loach é um génio na produção de gratas personagens humanas e teatrais: toda a longa vida de mineiro e filho de mineiro de TJ Ballantyne (Dave Turner) cruza-se com a jovem vida da fotógrafa e refugiada síria, Yara (Ebla Mari). Toda a história comum está contida nos sorrisos trocados, nas poucas palavras ditas, mas principalmente nos silêncios comuns.

E sobre esse mundo extinto dos bairros mineiros britânicos «The Old Oak» recordou-me a ternura emocional de «Tempos Difíceis» de Charles Dickens (1854) ou de «Shuggie Bain» de Douglas Stuart (2021).

Este filme devia ser incluído no Plano Mundial do Cinema para que todos se possam comover com a arte da consciência. E que as lágrimas sirvam para compreendermos e distinguirmos o lado certo de um mundo periclitantemente incerto.

Viva Ken Loach e o cinema de intervenção!


jef, maio 2023

«O Pub The Old Oak» (The Old Oak) de Ken Loach. Com Dave Turner, Ebla Mari, Debbie Honeywood, Claire Rodgerson, Trevor Fox, Chris McGlade, Col Tait, Jordan Louis, Chrissie Robinson, Chris Gotts, Jen Patterson, Arthur Oxley, Joe Armstrong, Andy Dawson, Maxie Peters. Argumento: Paul Laverty. Produção: Rebecca O'Brien. Fotografia: Robbie Ryan. Música: George Fenton. Grã-Bretanha / Bélgica / França, 2023, Cores, 113 min.

 

 

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Sobre o filme «Sobre L'Adamant» de Nicolas Philibert, 2023


 













L’Adamant não será propriamente um barco. É uma estrutura arquitectónica flutuante ancorada na margem do rio Sena que abre portas pela manhã a um grupo de pessoas que ali convivem, reúnem, discutem, dão azo à sua criatividade artistíca: médicos, psicólogos, auxiliares e doentes. Doentes que, conscientes da sua própria estranheza interior, não desdenham o lado colectivo que L’Adamant lhes oferece, que os atrai, distrai e motiva mas que também parece navegar em contra-corrente com o seu outro lado interior profundamente exuberante e rico mas também desesperadamente triste, para não dizer depressivo, coisa que possivelmente será a coisa que a todos liga.

Um filme que começa com uma canção exasperadamente cantada apelando ao espectador para a não desistência – este que é o melhor epílogo do filme que o apresenta como epígrafe. Todo o filme é conduzido pelo lado "oposto"..

Um filme que nos transporta para o enorme universo incompreendido da “loucura” considerado, tantas vezes, como descartável pela aceleração acéfala do mundo social dito normal.

Um filme que nos entrega essa tristeza sublime carregada de afecto e de dádiva sem julgamento.

Um filme que nos faz compreender aquelas pessoas maiores no sentido próprio do verbo que é o de nos integrar num mundo diverso e de tão difícil convivência. Um mundo tão solitário mas universal.

Um filme cheio de tempo e de ternura.

Um filme a não perder para também entendermos a loucura normal e cega do dia-a-dia.


jef, outubro 2023

«Sobre L'Adamant» (Sur l'Adamant) de Nicolas Philibert. Com Mamadi Barri, Walid Benziane, Sabine Berlière, Romain Bernardin, Charafdine Bouzaraa, Linda De Zitter, François Gozlan, Jean-Paul Hazan, Pauline Hertz, Érik Ménard, Nicolas Philibert, Frédéric Prieur, Muriel Thourond, Sébastien Tournayre. Argumento: Linda De Zitter e Nicolas Philibert. Produção: Céline Loiseau, Miléna Poylo, Gilles Sacuto. Fotografia: Nicolas Philibert. França, 2023, Cores, 109 min.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Sobre o filme «Salvatore Giuliano» de Francesco Rosi, 1962



 


















Nos últimos meses, a Itália persegue-me (e bem) cinefilamente. Qualquer coisa faz sentido entre «O Leopardo» (Luchino Visconti, 1963), «Marcha sobre Roma» (Mark Cousins, 2022) ou «O Sol do Futuro» (Nanni Moretti, 2023). E agora esta peça teatral de Francesco Rosi, «Salvatore Giuliano». 

A questão siciliana num mundo neo-realista entre as montanhas e o tribunal, entre a população de Montelepre que protege com garras e dentes um filho da terra que se torna chefe de um bando resistente ao poder italiano e que luta pela independência da ilha no pós-guerra. Salvatore Giuliano, que ao espectador apenas surge como cadáver, chorado, beijado e carpido por sua mãe, tornado um resistente sobrevivente, chefe de um grupo de bandidos que dilacera à metralha uma pacífica manifestação-piquenique promovida pelo Partido Comunista Italiano no 1º de Maio.

Tudo realizado na lógica operática em que o coro feminino das mulheres aldeãs não actrizes rivaliza com o coro masculino dos rapazes não actores que se agrupa em torno do protagonista-ausente, numa movimentação febril de massas tendo por palco um gigantesco cenário. Sobre essa gestão (soberba) do espaço mais amplo (ou mais restricto) onde se situa a acção dos grupos não profissionais é, ainda, impossível não me recordar, por exemplo, de «A Terra Treme» (Luchino Visconti, 1948) ou de «Ladrões de Bicicletas» ou de «Milagre de Milão» (Vittorio De Sica, 1948, 1950).

Aqui, é o teatro no mundo centrado na procura do seu propagonista!

 

jef, outubro 2023

«Salvatore Giuliano» de Francesco Rosi. Com Salvo Randone, Frank Wolff, Pietro Cammarata, Sennuccio Benelli, Pippo Agusta, Sennuccio Benelli, Pietro Cammarata, Max Cartier, Nando Cicero, Pietro Franzone, Giovanni Gallina, Vincenzo Norvese, Carmelo Oliviero, Renato Pinciroli. Argumento: Francesco Rosi, Suso Cecchi D'Amico, Enzo Provenzale, Franco Solinas. Produção: Franco Cristaldi. Fotografia: Gianni Di Venanzo. Música: Piero Piccioni. Itália, 1962, Cores, 123 min.

 

 

sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Sobre o filme «O Assassino» de David Fincher, 2023








Será mesmo este filme uma comédia sobre a importância filosófica do “acto falhado”? Um assassino ultra-profissional a mover-se na esfera mafiosa dos altos dólares, um ser gélido, quase oriental, paciente, matemático, cauteloso, calculista, implacável, de olhar vítreo sobre os corpos mortos e os corpos vivos, falha um golpe há muito estudado e, para ele, aparentemente de fácil execução. Afinal ele tem um coração romântico e uma mansão-esconderijo demasiado exposta na República Dominicana. Conseguirá o belíssimo Michael Fassbender suportar a longíssima sequência de episódios sangrentos daquela missão impossível, sem mudar de expressão e repetindo em voz off a mesmíssima frase comportamental durante cerca de duas horas? Por que razão agarra ele um ralador de cenouras em vez de uma faca eléctrica? Por que razão, quase “criminosa”, se desperdiça os poucos minutos da aparição de Tilda Swinton?

Enfim, entretém bem a matiné dominical via netflix mas não satisfaz e até irrita um pouco a narrativa rápida e presunçosa. Sobretudo, faz-nos ir a correr rever Michael Fassbender em «Fome» (Steve McQueen, 2008) e Tilda Swinton em «A Voz Humana» (Pedro Almodóvar, 2020).


jef, novembro 2023

«O Assassino» (The Killer) de David Fincher. Com Michael Fassbender; Tilda Swinton; Charles Parnell, Arliss Howard, Kerry O'Malley, Sophie Charlotte, Emiliano Pernía, Gabriel Polanco, Sala Baker, Endre Hules, Bernard Bygott, Monique Ganderton, Daran Norris. Argumento: Andrew Kevin Walker baseado no romance gráfico de Alexis Nolent e Luc Jacamon. Produção: William Doyle e Peter Mavromates. Fotografia: Erik Messerschmidt. Música: Trent Reznor, Atticus Ross. Guarda-roupa: Cate Adams. EUA, 2023, Cores, 118 min.

 

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Sobre o filme «Marcha Sobre Roma» de Mark Cousins, 2022



 






















A origem do mal.

O que mais me intriga no filme talvez seja o que mais me atrai. Essa exploração livre e um pouco caótica do cinema como método de entretenimento e exploração da verdade histórica. O cinema como arte manipuladora, fazendo da mentira o simulacro da realidade. Precisamente, começa por escalpelizar, fotograma a fotograma, o filme realizado em 1922 por Umberto Paradisi «A Noi». Um filme que se inicia em Nápoles e faz crer na posterior e triunfal chegada de Mussolini a Roma. Afinal, tudo não passou de um fracasso e de uma encenação pífia com a sistemática duplicação de imagens, a começar pela ausência da subida em pompa de Mussolini e dos Camisas Negras da escadaria do soldado desconhecido, pela alteração das datas para esconder a chuva, a lama ou pela pouca adesão popular às movimentações fascistas.

Além disso, a belíssima actriz Alba Rohrwacher fala para a câmara como uma mulher que sentiu o entusiasmo pela ascensão do regime e depois o confronto deprimente perante as suas bárbaras consequências.

Fala-se de «O Triunfo da Vontade» de Leni Riefenstahl (1935), de «O «Couraçado Potemkine» Serguei Eisenstein (1925). Também de «Um Dia Inesquecível» de Ettore Scola (1977). De outros filmes realizados pelo mundo na década de 20.

Fala-se de Hitler, de Franco, de Salazar, de Haile Selassie, da Maçonaria. E de como os rapazes fascistas gostam de aparecer às varandas. Também de Trump, de Bolsonaro, de Viktor Orbán, de Giorgia Meloni…

Fala-se de Roma como cenário de teatro e de passeio sobre os vestígios arquitectónicos do fascismo.

Fala-se, por fim, da reabertura de uma sala de espectáculos que da provável demolição se ergueu para assumir o seu papel como Cine-Teatro de intervenção, de estudo, de discussão da arte social do cinema, onde se mantiveram nas paredes os símbolos esculturais colocados anteriormente pelo regime de Mussolini.

Um filme que, através das imagens de recolha histórica, da encenação dramática e do fio contínuo temporal transportado pela realidade política oferece um emocional testemunho contra as hifas que o fascismo de Mussolini vem lançando até aos dias de hoje.


jef, novembro 2023

«Marcha Sobre Roma» (Marcia su Roma) de Mark Cousins. Com Alba Rohrwacher, Mark Cousins (voz), Donald Trump, Benito Mussolini, Gabriele D'Annunzio, Haile Selassie, Giacomo Acerbo. Argumento: Mark Cousins e Tommaso Renzoni. Produção: Carlo Degli Esposti, Nicola Serra, Antonio Badalamenti. Fotografia: Timoty Aliprandi, Mark Cousins. Itália, 2022, Cores, 98 min.