terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

Sobre o filme «Aftersun» de Charlotte Wells, 2022





















Fim de estação. Existe um ponto essencial no filme. O tempo do silêncio. A pausa da câmara sobre uma estância de veraneio barata à beira-Turquia. Um espaço invulgar que dá tempo à câmara para oferecer ao espectador o vazio do próprio tempo que pode ser chamado tédio de Verão. Sophie (a magnífica Frankie Corio) observa tudo, principalmente o pai, Calum (Paul Mescal), longe da mãe divorciada, quase a sucumbir perante o amor pela filha e a angústia de um jovem passado por resolver. Ali, nada há a fazer entre a praia, as diversões toscas de toscos animadores, os tapetes ou os banhos turcos. O tempo sobeja para a sintomática e lenta observação, para a pausada reflexão Tai Chi numa semana de férias a dois, demasiado concreta.

O melhor do filme é esse olhar sobre o maravilhoso, sobre amor com tempo e sol e mar entre um pai e uma filha. Um olhar que vai construindo a história, talvez como se Éric Rohmer sobrevoasse de parapente e os espreitasse dissimuladamente entre os chapéus-se-sol.

Contudo, a jovem realizadora quer explicar mais no seu muito interessante primeiro filme. Parece querer explicar tudo, o passado e o futuro. Exemplificar toda a ausência nostálgica que, por sinal, já está implícita no interior da espera pelo fim daquelas férias sob o Sol resplandecente.

E, por vezes, explicar tudo não significa dar tudo a entender. Quantas vezes a explicação derrota a adesão mais profunda do espectador. 

E Sófocles já melhor concedeu o beneplácito a Édipo.


jef, janeiro 2023

«Aftersun» de Charlotte Wells. Com Paul Mescal, Frankie Corio, Celia Rowlson-Hall, Sally Messham, Ayse Parlak, Sophia Lamanova, Brooklyn Toulson, Spike Fearn, Harry Perdios, Frank Corio, Ruby Thompson, Ethan James Smith, Onur Eksioglu, Cafer Karahan, Kayleigh Coleman. Argumento: Charlotte Wells. Produção: Mark Ceryak, Amy Jackson, Barry Jenkins. Fotografia: Gregory Oke. Música: Oliver Coates. Reino Unido, EUA, 2022, Cores, 102 min.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Sobre o filme «Holy Spider» de Ali Abbasi, 2022



 















Longe do ímpeto cinematográfico iraniano que nos tem deslumbrado nos últimos anos. Bastante longe desse genial fazer cinema sem quase ter história, sem quase ter verbas, sem ter liberdade para criar. Contudo (e este contudo é um contudo bastante sublinhado), o realizador Ali Abbasi não se afasta do cinema social para nos entregar a história de um pedreiro, veterano da guerra Irão-Iraque, que na cidade santa Mashhad assume a missão profetizada de liquidar prostitutas, paupérrimas e viciadas em heroína. O argumento persegue a perigosa investigação da jornalista Rahimi (Zar Amir-Ebrahimi) sobre a actividade desse predador divino Saeed Hanaei (Mehdi Bajestani) até à sua captura e julgamento. Sempre filmado de muito perto, correndo, ansiando, sem omitir o sangue, a violência, a degradação dos corpos, dos olhares, dos gestos. E como tudo na história é medonho, desde a investidura religiosa para tais actos, ao desprezo e cumplicidade policial e das autoridades políticas e judiciais. Acima de tudo, ao apoio popular e familiar dos hediondos actos.

Um filme de acção vibrante e sem rodeios mas que é marcado pela simplicidade apressada, fechando os olhos à estética, de telefilme ou série televisiva.


jef, janeiro 2023

«Holy Spider» de Ali Abbasi. Com Zar Amir-Ebrahimi, Mehdi Bajestani, Arash Ashtiani, Forouzan Jamshidnejad, Sina Parvaneh, Nima Akbarpour, Mesbah Taleb. Argumento: Ali Abbasi, Afshin Kamran Bahrami. Produção: Ali Abbasi, Sol Bondy, Jacob Jarek. Fotografia: Nadim Carlsen. Música: Martin Dirkov. Guarda-roupa: Hanadi Khurma. Dinamarca, Alemanha, França, 2022, Cores, 116 min.

 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Sobre o filme «Tár» de Todd Field, 2022


 

















Fico com a sensação de que o realizador Todd Field ficou tão entusiasmado, delirante mesmo, quando conseguiu contratar Cate Blanchett para o papel da maestrina Lydia Tár que se esqueceu que estava perante uma das mais talentosas actrizes contemporâneas, entregando-lhe um papel progressivamente monocórdico, onde a actriz se viu a braços com uma personagem muito má, cuja maldade o argumento pretende justificar por algumas perturbações mentais. E como Cate Blanchett tão luminosamente se desembaraça!! (Cá para mim, a doença mental não poderá justificar o desconcerto social e humano – os sete milhões de vítimas do “perturbado” holocausto que venham dizer…) Contudo, o filme avança, longo, e Cate Blanchett lá para o final vai ter de assumir um papel quase burlesco de mulher louca, viciosa, dominadora, quase maquiavélica. Aí, o filme descamba, para terminar com uma cena absolutamente incompreensível filmando o público de um concerto muito a Oriente. 

Que saudades tenho eu de a rever o superlativo «Blue Jasmine» de Woody Allen (2013).

Todd Field também não se capacitou que trabalhava com a magnífica Nina Hoss (uma das almas do realizador alemão Christian Petzold) ou a talentosa Noémie Merlant («Paris 13» de Jacques Audiard, 2021), que surgem como simples partenaires secundárias (embora brilhantíssimas partenaires!) da diva Lydia Tár.

Também não me cheguei a deliciar com o Adagietto da quinta sinfonia de Mahler ou o Adagio-Moderato do concerto para violoncelo Op. 85 de Edward Elgar. Apenas fiquei com o profundo desejo de rever, por exemplo, o filme de Visconti ou o maravilhoso «Breve Encontro» de David Lean (1945), com o concerto para piano n.º 2 de Rachmaninoff.

Este filme deixou-me incomodado pois eu não esqueço os amabilíssimos concertos comentados e dirigidos por Leonard Bernstein transmitidos pela RTP,  ou as sinfonias n.º 1 e n.º 2 de Beethoven que eu ouvi, curiosíssimo, no ginásio da Escola Preparatória Eugénio dos Santos, em Lisboa, dirigidos e comentados pelo maestro José Atalaia. Saí dali e obriguei os meus pais a darem-me dinheiro para ir a correr comprar o disco à discoteca Roma.

Este filme incomodou-me pois acredito que os maestros podem ter os seus caprichos, as taras ou manias, os seus desaguisados com os músicos ou a produção, mas nunca poderão ser maus para quem ali está a tocar. A música colectiva de uma orquestra, se assim fosse, seria inaudível, desconjuntada, impossível de ser concretizada perante uma audiência!

Espero mesmo que nunca tenha existido alguma Lydia Tár de batuta na mão.

 

jef, janeiro 2023

«Tár» de Todd Field. Com Cate Blanchett, Noémi Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Mark Strong, Adam Gopnik, Marc-Martin Straub, Egon Brandstetter, Sylvia Flote, Allan Corduner, Sydney Lemmon, Nicolas Hopchet, Zethphan D. Smith-Gneist. Argumento: Todd Field. Produção: Todd Field, Scott Lambert, Alexandra Milchan, Cate Blanchett . Fotografia: Florian Hoffmeister. Música original: Hildur Guðnadóttir. EUA, 2022, Cores, 158 min.


domingo, 12 de fevereiro de 2023

Sobre o filme «Onde Fica a Casa do Meu Amigo?» de Abbas Kiarostami, 1987























Abbas Kiarostami é uma alma maior. De um simples facto social (e político) relacionado sobre a exigência da realização dos trabalhos de casa feita pelo professor (e de um engano de cadernos escolares semelhantes) constrói um acto puramente estético.

A partir desse acto estético observamos toda a sociedade rural iraniana desde as suas raízes até a uma suposta renovação comercial. Por que razão será necessário substituir as velhas e trabalhadas janelas e portas de madeira por eternas portas de metal? Por que será que o bisavô de Ahmed por vezes se esquecia da dar a semanada ao filho mas jamais se esquecia de lhe dar a tareia educativa? Por que correrá tanto Ahmed, de aldeia para aldeia, entre os suplícios do tempo e da desobediência materna, para encontrar a casa do seu amigo Mohamed Reda Nematzadeh?

Cada olhar angustiado de Ahmed contém toda a génese do que deveria ser a humanidade. Cada plano arquitectural de Kiarostami é um fulgurante elogio à luz e à sombra renascentistas. Cada uma das corridas de Ahmed entre colinas, uma alegoria à tenacidade e interajuda humanas. Uma espécie de via-sacra em prol da beleza e da bondade. Ahmed poderia ser Cristo com o sofrimento, a determinação e a inocência de uma criança que sabe estar a fazer a missão que lhe está atribuída. Mas apenas em cumprimento da humana consciência.

A última cena é inesquecível.

Sim, têm razão. Uma obra-prima.


jef, fevereiro 2023

«Onde Fica a Casa do Meu Amigo?» (Khane-ye doust kodjast?) de Abbas Kiarostami. Com Babek Ahmed Poor, Ahmed Ahmed Poor, Khodabakhsh Defaei, Iran Outari, Ait Ansari, Sadika Taohidi, Biman Mouafi, Ali Djamali, Aziz Babai, Nader Ghoulami, Akbar Mouradi, Teba Slimani. Argumento: Abbas Kiarostami. Produção: Ali Reza Zarrin. Fotografia: Farhad Saba. Música: Amine Allah Hessine. Irão, 1987, Cores, 84 min.

 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Sobre o disco «Bixos Bons. Volume Nr. 4» de Senhor Vulcão, Discos Vulcão 2022

 

Entro no universo do Senhor Vulcão pelo número quatro. Um disco amarelo. Sete canções que reconhecem na simplicidade directa o melhor modo de absorver e observar o acto musical. Sem grandes misturas, sem Photoshop acrílico-electro-acústico. Sete scherzi, sete divertimentos assumidos no interior de uma forte personalidade artística. Sem pompa nem circunstância.

E esse acto representa uma provocação política? Ou uma provocação poética?

De tudo aqui se fala.

Como se folheássemos uma enciclopédia zoológica para crianças incrédulas mas afoitas, ou o assento de nascimento dos fregueses de um remoto bairro lisboeta.

Como se brincássemos ao romantismo dos animais capitalistas de Georg Grosz.

Como se sorríssemos a sério do mundo das canções de intervenção; do Zecchino d'Oro e da pequena Maria Armanda; de um certo mundo nacional cançonetista contemporâneo; de um lado muito compenetrado, até engravatado, do actual hip-hop; de um mundo ultra-presunçoso da moderna poética portuguesa.

Aqui a liberdade da arte, do som e das palavras é rainha.

Torna-se impossível ouvir este disco sem sentirmos uma certa vontade de ir novamente colar os mais difíceis cromos (o Pirilampo e a Serpente) na caderneta “O Loto dos Animais”.

E isso é muito bom!


jef, fevereiro 2023

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Sobre o filme «Trabalhos de Casa» de Abbas Kiarostami, 1989

























Não haverá muito a dizer sobre aquilo que começa por ser explicado pelo próprio realizador como alguma coisa que não tem guião, nem ele saberá se resultará num filme. Talvez seja a tentativa de perceber a motivação (e os desaires) dos trabalhos de casa escolares feitos no seio da própria família.

Um miúdo sorridente pede que lhe tirem uma fotografia. Kiarostami pergunta o nome da escola. Senta-se depois numa secretária, faz baixar a luz para que o seu rosto fique na sombra. O homem da câmara de filmar é Iraj Safavi. 

Os pequenos alunos são entrevistados sobre a carga de trabalhos que levam para casa, quem os ajuda, como e quando os fazem. Antes ou depois dos desenhos animados: Pinóquio ou Charlie Chaplin. Como são castigados. Como não são incentivados. No pátio, uma multidão de rapazinhos entoam um cântico meio-religioso meio-bélico, mas o som desaparece pois a coisa não parece estar a correr bem.

Um professor viajado explica como aquele método de ensino está completamente errado.

Estamos em 1988 e Irão e o Iraque apresentam mutuamente as garras da guerra.

Alguns querem ser engenheiros ou médicos. Querem matar Saddam. Por fim, as lágrimas do pânico são substituídas pela espiritualidade de um cântico aprendido de cor. O pai não o pode ajudar.

Não existe filme mais comovente sobre a possibilidade trágica do ensino ou a impossibilidade afectiva da educação.


jef, fevereiro 2023

«Trabalhos de Casa» (Mashgh-e Shab) de Abbas Kiarostami. Com Babak Ahmadpoor, Farhang Akhavan, Mohammad Reza, Abbas Kiarostami, Iraj Safavi. Argumento: Abbas Kiarostami. Produção: Ali Reza Zarrin. Fotografia: Ali Asghar Mirzaie, Farhad Saba, Iraj Safavi. Música: Mohammad Reza Aligholi. Irão, 1989, Cores, 86 min.

 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Sobre o livro «No Bico da Cegonha» de Ricardo Cabaça. Urutau, 2022


 









Gosto de ler teatro. Com o meu tempo, a minha imaginação, o meu passado, as minhas supostas didascálias. Parecem peças que circulam, muito abstractas, suspensas, nesse modo de substanciar o que é efémero e fantasioso.

Ricardo Cabaça, também encenador, junta quatro peças contemporâneas sobre o eterno contemporâneo, onde as personagens vivem no e do mundo onírico do engano e da manipulação. Nada mais clássico.

“Esqueletos vivem dentro de sonhos”: uma estranha mulher vê-se aprisionada num aquário e é mostrada como atracção de circo. Quem assim a expõe é o marinheiro que, afinal, se encontra preso nos sonhos dela, dessa estranha mulher que se cobre de escamas, deambulando, antes, pelos delírios de um irmão e de uma irmã que se julgam siameses, sentados na borda de uma banheira.

Fake News: Naked Fews” (acto único): m.a.u.r.o., d.a.n.i. e m.a.r.i.o. são personagens-anagramas que elucidam sobre o modo actual de olhar a verdade de uma realidade que surge como fictícia ou virtual, multiplicada e falseada por milhões de manipuladores. Eles vêm esclarecer, pedir o apoio e solidariedade do público, enlaçando-o, proclamando que irão aniliquilar as fake-news com o extraordinário método – as naked fews. Contudo…

“Ninguém morre ao domingo” (acto único): no quarto, uma criança está sozinha e brinca às famílias fazendo girar um velho carrocel desenterrado. Um thriller infantil onde todos circulam num terreno minado. “Ninguém morre ao domingo?”, pergunta. “Ao domingo não.”, responde o pai. “Nunca é domingo para toda a gente.”, corrige a mãe.

“Anti-Benjamim” (acto único): depois de uma visita ao laboratório, Óscar, conhecido dramaturgo, é aliciado por Eliza, directora de marketing. No entanto, a voz desta parece ser mecânica, programa, não natural. Surge fatal. Quem vencerá?

Eu gosto de ler teatro pois, na real realidade, o teatro é a mais benévola e esclarecida das manipulações. Se no teatro a sério, actores e plateia estão cientes e participam convictos dessa boa mentira, na leitura de uma peça o leitor está só mas é rei e senhor do seu tempo e do seu espaço únicos.

Ricardo Cabaça interpela e interpreta com sagacidade as origens da permanente ansiedade do nosso actual dia-a-dia.


jef, fevereiro 2023

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Sobre o filme «Ursos Não Há» de Jafar Panahi, 2022




















Só um enorme cineasta se permite realizar um filme tão complexo, com tão poucos recursos e dando ao espectador a sensação de estar a ver um filme tão fácil de entender.

Como um filme fora de um filme.

As cenas iniciais e aquelas com que o filme termina são a prova.

Logo de início, a marcação de cena numa rua comercial onde os vendedores ambulantes, músicos e transeuntes fazem uma espécie de bailado sequencial, mostra-nos que há teatro por ali. A cena é interrompida. Ainda não está bem. Será necessário repetir. Percebemos que Jafar Panahi está a fazer aquele filme à distância e que um casal de perseguidos-exilados discute a possibilidade de fuga com o passaporte falso acabado de chegar. Ela parece ser iraniana, ele estrangeiro, talvez turco.

Jafar Panahi realmente está instalado numa aldeia remota na fronteira entre o Irão e a Turquia e, dali, vai realizando o filme à distância. Nas horas vagas fotografa a vida na aldeia. Uma das fotografias que supostamente foi tirada, porém, retrata algo “ilegítimo” segundo a tradição local. Ele próprio é instado, ali mesmo, a resolver o problema perante um tribunal de aldeia. Também ele se expressa nas duas línguas locais.

Nas cenas finais, o realizador deve igualmente fugir. Apenas a câmara apontada para si enquanto conduz o carro e nos ouvidos o insistente sinal sonoro de que não leva o cinto colocado, parecendo que nada ficou concluído, ou tudo está dramaticamente terminado. Por fim, desliga o motor. Sai dos filmes e do cinema.

É assim que o realizador-realizador Jafar Panahi demonstra, através do realizador-actor Jafar Panahi, como crucial é o acto de filmar (e também o de ver filmes extraordinários). Como o acto de fotografar e de realizar pode ter um papel fundamental no curso do amor, das famílias e das sociedades.

Como é fácil ser estrangeiro em causa e casa próprias.

Romeu e Julieta que o digam.


jef, janeiro 2023

«Ursos Não Há» (Khers nist) de Jafar Panahi. Com Jafar Panahi, Naser Hashemi, Vahid Mobasheri, Bakhtiyar Panjeei, Mina Kavani, Narges Delaram, Reza Heydari, Javad Siyahi, Yousef Soleymani, Amir Davari, Darya Alei. Argumento: Jafar Panahi. Produção: Jafar Panahi, Nader Saeivar. Fotografia: Amin Jafari. Irão, 2022, Cores, 106 min.