segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Sobre o disco «Sonatori de la Gioiosa Marca “Follie all’italiana”», Erato / Warner, 2001







Estamos no século XVII e perante o início de uma Itália faustosa e cada vez mais burguesa. Com o epicentro em Nápoles, a ocupação espanhola foi disseminando a influência ibérica na cultura italiana. Numa altura em que os músicos eruditos angariavam admiradores e mecenas, não é difícil de imaginar como eles ansiavam por novos motivos criativos, instrumentos, música e danças provenientes de uma península exótica apesar de invasora. A guitarra espanhola, o alaúde árabe e a “follia” (dança de provável origem portuguesa) invadiu o espírito de compositores como Caldara ou Vivaldi, este em início de carreira. Assim, também os ritmos marcadamente dançantes e a melodias circulares e repetitivas oriundas de longínquas tradições populares, foram enchendo as pautas italianas. A música erudita foi-se tornando mais laica, divertida e cosmopolita, enriquecendo-se com modernos ritmos e harmonias que exprimiam outros sentimentos, comuns apesar de distintos. Os extraordinários músicos que integram o grupo Sonatori de la Gioiosa Marca respondem ao convite dançante e interpretam uma frutuosa época musical em que a diversidade e a troca de influências geográficas era motivo de orgulho cultural. 

Aqui se ouvem: Antonio Vivaldi, Arcangelo Corelli, Andrea Falconiero, Bernardo Storace, Giovanni Antonio Pandolfi, Maurizio Cazzati, Francesco Corbetta, Giovan Battista Vitali, Antonio Caldara, Giovanni Reali.

 Sonatori de la Gioiosa Marca são Giorgio Fava e Roberto Falcone (violino), Walter Vestidello (violoncelo); Giancarlo Rado (guitarra e alaúde) e Gianpietro Rosato (orgão, cravo e espineta).

jef, janeiro 2002

Sobre o filme «Julieta dos Espíritos» de Federico Fellini, 1965


 































Este é um filme que sempre me deixa um lastro amargo, inquietante e constrangedor. Como se estivesse a ler um daqueles contos nefastos dos Irmãos Grimm. No meio de um ameno e delicado pinhal de pinheiros-mansos, situa-se uma casa encantada de bonecas, cercada por uma vedação branca e harmoniosa. Lá dentro vive uma princesa, bela, amorosa e discreta, de nome Giulietta (Masina), rodeada por duas criadas gentis, Elisabetta (Milena Vucotich) e Teresina (Elisabetta Gray). Com pompa, aguarda nessa noite o seu marido, Giorgio (Mario Pisu) para celebrar mais um aniversário de casamento. Mas Giorgio surge envolto numa multidão de convivas e amigos diletantes que lhe estragam a intimidade desejada. Mais tarde, pelo meio do sono e do sonho, Giorgio repetirá um nome: Gabriela!

Giulietta fará o percurso de tormenta num universo de cores intensas e saturadas, feito de descobertas medonhas, desilusões caladas e tentações que não deseja. Vive ela entre os arcanos mais poderosos que, afinal, são os espíritos íntimos mais débeis. Nem a inicial previsão do espírito Iris (Sandra Milo), distribuindo o amor por todos, nem a profecia final, feita do apelo aos amigos, se cumprirão. Giulietta ficará só, tal como Gelsomina n’«A Estrada» (1954). Só que Gelsomina morrerá na miséria mas, de certo modo, celebrada por todos quantos com ela contactaram, recordando-lhe o imenso amor, a sua música, enquanto Giulietta percorrerá o pinhal, simplesmente, entre as memórias que não desejou guardar.

Só, Giulietta percorrerá os belos palácios de cenários sem fim, as masmorras labirínticas, os elevadores escondidos na floresta, os segredos libidinosos e aquáticos do palacete de Fanny (Sandra Milo), entre o faustoso guarda-roupa e a monumentalidade dos chapéus usados por mulheres deslumbrantes.

Só, ficará Giullieta entre quem dela não se lembrará, enquanto Gelsomina será para sempre recordada.

Se Fellini acabou com o neo-realismo em «A Estrada», com este filme terá derrotado o drama onírico e psicanalítico. Na alma destas duas assombrosas personagens está imensa generosidade teatral de Giulietta Masina.


jef, agosto 2020

«Julieta dos Espíritos» (Giulietta degli Spiriti) de Federico Fellini. Com Giulietta Masina, Mario Pisu, Sandra Milo, Valentina Cortese, Caterina Boratto, Sylvia Koscina, Lucia Della Noce, Lou Gilbert, José de Villalonga, Miceli Picardi, Silvana Jachino, Elena Fondra, Milena Vucotich, Elisabetta Gray, Valeska Gert, Asoka Rubener, Alberto Plebani, Felice Fulchignoni, Anne Francine, Mario Conochia, Genius, Massimo Sarchielli, Fred Williams, Raffaele Guida. Fotografia: Gianni Di Venanzo. Música: Nino Rota. Cenários: Piero Gherardi, Luciano Riccieri, E. Benazzi Taglietti, Giantito Burchiellaro. Produção: Angelo Rizzoli. Itália / França, 1965, Cores, 129 min.

 

 

sábado, 29 de agosto de 2020

Sobre o filme «Sábado à Noite e Domingo de Manhã» de Karel Reisz, 1960

 




























A memória tem destas coisas. Quando falavam em Albert Finney, eu recordava a espantosa figura de Edward Masry em «Erin Brockovich» (2000), um filme e tanto do grande Steven Soderbergh com a maravilhosa Julia Roberts. Contudo, agora, jamais esquecerei a personagem de Arthur no filme de Karel Reisz «Saturday Night and Sunday Morning». Esse operário contestatário, jovem manhoso, tão arrojado e irreverente como arrogante (“O que eu quero é divertir-me, o resto é propaganda!), sugerindo, no início, um misto de Warren Beatty, James Dean, Paul Newman, Marlon Brando ou Jack Lemon nas mãos de Elia Kazan, Nicholas Ray, Richard Brooks ou Billy Wilder. Dentro de cenários minúsculos, quartos ínfimos, pubs apinhados, tectos baixos, bairros operários paupérrimos, feiras populares rodopiantes. Excepto a fábrica, imensa e imersa no ruído metalo-mecânico. Arthur parece contestar o sistema (“Não deixes que os sacanas te esmaguem!”). Só que a aranha vai sendo apanhada, ficando cativa na própria teia. A sociedade que contesta vai moldando-a, domesticando-a, conduzindo-a para o mesmo estatuto das gerações anteriores, tristes, resignadas e pobres do pós-guerra. Nada a fazer! Ele esquecerá a criança que, afinal, sempre irá nascer – numa soberba interpretação de Rachel Roberts (Brenda) – pois já está aí a aparecer a fresca juventude de Doreen (Shirley Anne Field), bela e imaculada, exigindo casamento e casa com casa de banho e tudo.

Afinal, o herói nunca existiu e o ansiado neo-realismo esboroa-se, de certo modo, num ultra-realismo dramático, tão inglês e tão “dickensiano”, que nos emociona e nos lembra quão enorme é o cinema inglês de David Lean, Mike Leigh, Ken Loach ou Stephen Frears.

E, repito, ninguém que veja este filme jamais esquecerá o nome de Albert Finney.


jef, agosto 2020

«Sábado à Noite e Domingo de Manhã» (Saturday Night and Sunday Morning) de Karel Reisz. Com Albert Finney, Shirley Anne Field, Rachel Roberts, Hylda Baker, Norman Rossington, Bryan Pringle, Robert Cawdron, Edna Morris, Elsie Wagstaff,  Frank Pettitt, Avis Bunnage, Colin Blakely, Irene Richmond. Argumento de Alan Sillitoe baseado no seu romance homónimo. Fotografia: Freddie Francis. Música: John Dankworth. Grã-Bretanha, 1960, P/B, 89 min.


Sobre o disco «La Gaia Scienza: Johannes Brahms – Quartett c-moll, op. 60 & Quintett f-moll, op. 34» Winter & Winter / AnAnAnA, 2001

















Stefan Winter, o produtor e cabecilha-mor da etiqueta alemã insiste na interessante faceta de, a cada álbum publicado, oferecer uma interpretação paralela, ou melhor, fornecer algumas pistas suplementares sobre as motivações que suportam as suas novas edições. Uma espécie de psicanálise musical que, não fosse tão inteligente, seria tomada por presunçosa. No caso, os Quarteto e Quinteto para piano e cordas de Brahms são executados tradicionalmente pela formação italiana La Gaia Scienza que traz no seu currículo Winter & Winter a execução de diversas peças provenientes da sabedoria dilaceradamente meditativa de Franz Schubert. Não será assim difícil imaginar o ambiente introspectivo e de profundidade melancólica desta interpretação de um autor que usou a música de câmara como exercício para o seu rigoroso trabalho de composição mas, sobretudo, como expressão maior para as paixões que lhe moldavam a criatividade. Assim, Stefan Winter, cumprindo as próprias palavras do compositor, veste o disco de amarelo, azul e encarnado, e aponta um revólver à cabeça de Johannes Brahms.


jef, setembro 2001

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Os deuses não escolhem
















































Os deuses não escolhem

Ao fundo da cena, por entre o pano da invisibilidade, o pianista torna-se o observador atento da tragédia que se desenrola ali perto, no palco, iluminado a branco. Empédocles, perante o terrível dilema, é arrastado até à escolha impossível. Amado pelo povo como deus, é, simultaneamente, odiado pelos doutores como usurpador da fé e da devoção divina. Depois, repudiado como traidor por quem o amou, também é invejado pela ignomínia de chefes e sacerdotes que lhe cobiçam o alto critério do seu pensamento. Agora, amparado na inquebrantável lealdade do seu seguidor, Pausânias, e na paixão pura e devota da jovem Pânthea, vê-se obrigado a fugir da cidade e do jardim onde o escutaram e veneraram. Mas é na montanha que ele encontra o refúgio necessário e pode, finalmente, saciar a sede na fonte da sabedoria. Apenas a natureza lhe devolve a tranquilidade e nela reencontra o significado para a sua liberdade. Mais tarde, imploram que regresse mas ele recusa. É tarde demais, já nada o fará voltar atrás. O tormentoso caminho para a sua última decisão está agora serenamente traçado! No eco da clara planície povoada de pequenos seixos, transformada na densa montanha redentora, ressoa ainda a voz firme de Empédocles que, virado para o seu fiel amigo, declarara para que todos o oiçam:

«Pausânias! Não te esqueças disto: Aos mortais nada é dado de graça.»

A música adquire a força de um pungente recitativo que reforça os laços entre cada emoção e o carácter de cada personagem. Como se as palavras fossem demasiado verdadeiras para serem escutadas, são as sábias notas musicais das derradeiras sonatas de Schubert que permitem abrir as portas que levarão o pensador até à sua livre escolha. A sombra do herói desaparece, o cenário suspende-se na crueza das cores saturadas. O piano silencia-se. O público compreende.

É, precisamente, através no silêncio de uma partitura ausente que se progride durante os minutos finais sobre a tela negra, livre de imagens, legendas e genéricos, que o realizador Pedro Costa sugere a reentrada para a outra realidade. No fundo, o espectador tem ali a chave que o fará regressar da longa apneia em que mergulhou. O tempo e o espaço são-lhe devolvidos mas ele fica retido pelo preciso, mas enigmático, objecto da obra. O silêncio da música talvez seja o único epílogo possível para o filme que acabou de ser exibido. Sem margens nem conceitos. É ali que o espectador se confronta, em definitivo, com o labirinto de imagens e soluções de vida que lhe foi proposto. Será que aquela realidade lhe concedeu os autênticos parâmetros capazes de interpretar a falsa serenidade em que vive? Ou a falsa realidade do écrã possuirá, exclusivamente, a dimensão da sensibilidade de quem a ela assistiu? No fundo, apenas ali se contou uma história. No Bairro da Fontainhas em Lisboa. A demolição. Uma família e a vendedeira de couves e alfaces. Alegrias, tristezas, amizades, trabalhos, doenças, afectos e amarguras. Nada mais! Uma fábula de carne e osso, sem mote mas com moral. Como em todas as histórias, só palavras e imagens unidas pelo olhar da consciência de cada um. É assim, um filme pode trazer todas as perguntas mas tem o direito de recusar o prémio das respostas que lhe são exigidas. Porque, acima de tudo, ele é o símbolo das possíveis escolhas.

Mas se um filme é sobretudo um símbolo, este revela-se na beleza absoluta de cada um dos quadros sobrepostos. Uma beleza reencontrada, unicamente, em obras como “Nostalgia” de Tarkovsky, “Mãe e Filho” de Sokurov ou “Persona” de Bergman. E como nestas, aqui poderemos procurar o sinal inevitável, o supremo símbolo da liberdade artística. A cena passa-se no “quarto da meninas”. Vanda recebe nos seus domínios com a parcimónia que caracteriza os sapientes, o agora despojado Pango. Através de planos sucessivos, ali está ele sentado, mais ao longe Vanda, reclinada sobre a cama e, lá atrás, na parede marcada, apenas uma fotografia. Um passado.

Vanda diz: «Mas é a vida que a gente quer, é esta.»

Pango responde: “Não, não é a vida que a gente quer, parece que é a vida que a gente é obrigada a ter. Parece que já é um destino, é um traço...”

Vanda insiste: “É a vida que uma pessoa quer, acho eu. Hoje em dia é assim!”

Coincidência ou não, a peça decorria no palco ao mesmo tempo em que era exibido o filme. Separados por séculos, formas, expressões e músicas, ambos colocam no seu centro o mais sublime elemento da existência do homem que é, em simultâneo, o mais profundo significado da obra de arte. Talvez Empédocles estivesse a responder a Vanda. Talvez Vanda, involuntariamente, encontrasse o verdadeiro sentido para a vida e o quisesse partilhar com o filósofo, o poeta, o músico, o encenador, o realizador, o público. Se aos deuses lhes retiraram o poder do discernimento, que os simples mortais possam usar, então, esse dom que só a eles foi atribuído – o poder da liberdade, a liberdade de escolher!

 

jef, maio 2001

«No Quarto da Vanda» de Pedro Costa, 2000. Com Vanda Duarte, Zita Duarte, Lena Duarte, António Moreno, Paulo Nunes, Paulo Gonçalves, Pedro Lanban, Fernando Paixão.

«A Morte de Empédocles» (1ª versão) de Friedrich Hölderlin / Teatro da Cornucópia, Março 2001. Encenação: Luis Miguel Cintra. Cenário e figurinos: Cristina Reis. Intérpretes: Rita Loureiro, Sofia Marques, José Manuel Mendes, Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Ricardo Aibéo, João Grosso. Música: excertos das sonatas para piano de Franz Schubert D 959 e D 960, interpretadas por Nuno Vieira de Almeida

«A Morte de Empédocles» de Friedrich Hölderlin. Edição bilingue. Tradução e prefácio: Maria Teresa Dias Furtado. Relógio D’Água Editores, 2001

«Schubert Piano Sonatas – D575, D894, D959, D960» por Alfred Brendel. Philips / Universal, 2001




terça-feira, 25 de agosto de 2020

 











«Utopia Americana. Significará isto ironia? Será uma piada? Estarei a falar a sério? E de que modo? Refiro-me ao passado ou ao futuro? Será pessoal ou político? Estas canções não descrevem um imaginário ou um lugar impossível possível mas sim uma tentativa de retratar o mundo em que agora vivemos. Muitos de nós, suspeito, não estamos satisfeitos com esse mundo – o mundo que fizemos para nós mesmos – bem, tem que ser assim? Estará aí outro dia? Estas canções são sobre esse olhar e essas interrogações.» David Byrne na ‘American Utopia’.

 

Há muito que David Byrne usa um determinado método de trabalho para estruturar os dias, pensar, olhar o mundo, criar, escrever, publicar, escutar e fazer-se ouvir. Através desse método, utiliza o passado não como tábua de salvação mas como sedimento que, sob a pressão dos anos, vai formando rocha metamórfica. No presente. Talvez por isso, não inclua no duplo álbum ao vivo «Psycho Killer» (faixa que talvez tenha mesmo sido tocada na Broadway…), escolhendo antes «Road to Nowhere» para ir terminando o espectáculo. Uma espécie de arquitectura, argamassa estruturada e consciente, que o leva a concluir o primeiro disco com «Glass, Concrete & Stone» vindo do anterior álbum de originais, de título sintomático «Grown Backwards» (2004).

Após os oito álbuns editados com os Talkins Heads e dos posteriores onze, a solo ou em associação, há um outro componente mineral que regressa sistematicamente para lhe rever, ajustar e redefinir o citado método. Um procedimento paralelo mas igualmente persistente: Brian Eno. Essa companhia pela qual surgiu «Remain in Light» dos Talkings Heads (1980) ou um objecto tão indefinido quanto secular de nome «My Life in the Bush of Ghosts» (1981).

Novamente com Brian Eno, surge em 2018 o disco «American Utopia». Sobrepõe-se-lhe uma recente matriz de luminosidade laboral de sintoma pop e cariz construtiva. Com ele vêm «I Dance Like This», «Every Day Is a Miracle», «Everybody’s Coming to My House». Junta-se-lhe «One Fine Day» do álbum «Everything That Happens Will Happen Today» (2008). O mundo pode não estar a ser assim tão bem escrito sobre as linhas tortas que o homem lhe tem imposto mas a última coisa que deve acontecer é perder-se a consciência e a vontade de que tudo pode ser de novo, social, cultural, ecológica e politicamente, revertido e melhorado. A meio da canção ele diz: “We’re only tourists in this life / only tourists but the view is nice”. Há sempre um certo milagre na vida através do qual tudo pode ser amavelmente contemplado, generosamente negociado ou raivosamente exigido. Por isso, aqui entra também, quase no fim, a canção de combate tribal de Janelle Monáe «Hell You Talmbout» (2015).

David Byrne sempre preferiu a percussão da tribo africana, com os pés a exigirem levantar a poeira vermelha, ao batuque do hip-hop urbano e sincrético, suavemente adoçado por sapatilhas violentas. Oiçam-se, assim, as versões de «Burning Down the House» ou «Blind».

Se existe um espírito criativo absolutamente livre ele é o de David Byrne, nada está fora do alcance da sua integração musical. Ele prefere cobrir o álbum de originais com as imagens do esquecido artista plástico nova-iorquino Purvis Young e despir o palco de artefactos, mesas, cadeiras, sapatos, cabos eléctricos. Apenas uma cortina de correntes metálicas (Maira Kalman) e os 13 músicos vestidos de clássicos fatos cinzentos (HeatherMary Jackson). A ausência obriga o essencial a descobrir-se, a dança a mover-se, as palavras a assumir nova consciência musical iluminando o mundo.

E está aí a chegar o filme realizado por Spike Lee. Atenção!

 

jef, agosto 2020

 

Referencial de Inércia









Referencial de Inércia


Quem salta, salta sempre sobre alguma coisa.

Essa coisa está subjacente ao impulso, ao movimento, ao salto.

A coisa refere-se, por inerência, ao salto mas está parada.

Por exemplo, é a terra sob os pés.

Sem a coisa parada sobre a qual se salta não há movimento.

Tire-se-lhe a referência quieta e esse movimento termina no Universo.

Acabam os pés que pulam, acaba a terra que fica.

O fim da anima.

O firmamento implode sobre si mesmo, fica ressequido, desaparece num átomo simples.

O electrão tomba sobre o próprio núcleo, o átomo extingue-se também.

Fica apenas uma pequena rã, incrédula, antes do salto, antes do ovo.


Porém, debaixo dos pés da rã a Terra moveu-se!


jef, agosto 2020

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Sobre o filme «The Knack… And How to Get It» de Richard Lester, 1965

 










Uma espécie de comédia rápida e delirante; scherzo coreografado; apontamento de bailado sobre a belíssima música de John Barry; divertimento sobre a falsa ingenuidade e a presunção do falso galanteador. Tudo girando à volta de uma cama de ferro com dois metros e a sua importância na real arte da sedução quando Londres se encontra no epicentro da revolução sexual. Este filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes.

Nancy (Rita Tushingham) chega a Londres, deslumbrada e ingénua, e procura as instalações da YWCA. Colin (Michael Crawford) é um ingénuo professor de liceu que deseja uma cama larga e um pouco do talento de sedução (the knack) demonstrado pelo seu amigo Tolen (Ray Brooks). Encontra Nancy por quem tomba enamorado, tenta exibir as lições dadas por Tolen mas sem sucesso. Toda a velha geração londrina, numa espécie de coro grego geriátrico, range os dentes, franze o nariz, critica o desvario juvenil… mas a nova cama de ferro é um sucesso.

E contra mim falo, para apreciar este filme por inteiro, será necessário saber inglês na ponta da língua, um inglês citadino, de gíria, de rua, de certa intimidade. As legendas não lhe chegam e contêm imprecisões desconcertantes.

É um filme datado, de época, marcado pela visão urgente de uma ‘new vague’ artística. Um filme divertidíssimo, mas muito datado, que deve ter obrigado os actores a um esforço físico notável e, agora, obriga o espectador a ir ter com uma época e uma cidade nostalgicamente finitas.

 

jef, agosto 2020

 

«The Knack… And How to Get It» de Richard Lester. Com Rita Tushingham, Ray Brooks, Michael Crawford, Donal Donnelly. Argumento de Charles Wood segundo a peça de Ann Jellicoe. Fotografia: David Watkin. Música: John Barry. Grã-Bretanha, 1965, P/B, 85 min.

 

 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

Sobre o filme «Adam» de Maryam Touzani, 2019

















Sob a penumbra luminosa da casa-padaria da viúva Abla (Lubna Azabal) e da sua pequena filha Warda (Douae Belkhaouda) vem instalar-se Samia (Nisrin Erradi), grávida e sem tecto para ficar em Casablanca. A história é muito fácil de contar não fora os portentosos silêncios e olhares trocados entre as duas mulheres. A pequena Warda é o contraponto de ignição, o discreto e apaixonado fornecedor Silmani (Aziz Hattab), o contraponto do afecto masculino.

Entre as cores densas, pastel e saturadas, vindas de um renascimento realista e flamengo, assenta o entendimento feminino na discreta cumplicidade moral. Este é um filme que tinha tudo para ser lamechas, mas não é! Tudo para ser feminista, mas não é? Tudo para ser dogmaticamente político, chauvinista até, mas não é? Apenas demonstra a realidade comum (e universal) do ser complexo feminino (e maternal), um ser que, de certo modo, faz parte integrante de todos nós.

Pode dizer-se que é um belíssimo filme, terno e ecuménico, que terá o difícil mérito de reunir o aplauso dos críticos e do público, caso este resolva tirar as pantufas do covid e ir até ao cinema contemplar a Metade do Céu.


jef, agosto 2020


«Adam» de Maryam Touzani. Com Lubna Azabal, Nisrin Erradi, Douae Belkhaouda, Aziz Hattab, Hasnaa Tamtaoui. Fotografia: Virginie Surdej. Marrocos, Bélgica / França, 2019, Cores, 100 min.

 

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Sobre o filme «A Doce Vida» de Federico Fellini, 1960










Em 1960 estreavam em Itália «A Doce Vida» de Federico Fellini, «Rocco e os seus Irmãos» de Luchino Visconti e «A Aventura» de Michelangelo Antonioni. E o cinema nunca mais foi igual. 

Ao rever agora, em cópia e som restaurados, grande ecrã, sala cheia e respeitosa, surge-me a ideia de que principalmente Fellini reinventou a tristeza ao desencantar-lhe a sua profundidade nostálgica, onde o presente se dá mal com o passado e evita, a todo o custo, olhar em frente. A noite é longa, o dia aparece repentinamente, acusador, fazendo sobrevoar a figura brilhante de Cristo acima dos escombros construídos da cidade. Marcello Rubini (M. Mastoianni) não consegue ouvir o que dizem as jovens que no terraço apanham banhos de sol, pede-lhes por sinais os números de telefone mas elas recusam.

Fellini vai contado histórias sobre figuras desenraizadas, apesar de tudo imparáveis, que correm e percorrem episódios e lapsos de uma sociedade burguesa que deseja esquecer a guerra e o fascismo mas que vai mergulhar na Fontana di Trevi para esquecer as paredes decrépitas de uma Roma clássica trucidada pelo império do catolicismo. 

Todas essas personagens são pasto dessa infelicidade, dessa indefinida e infinita angústia melancólica: a ‘suicida’ Emma (Yvonne Furneaux), a ‘desapaixonada’ Maddalena (Anouk Aimée), a ‘deslumbrada’ Sylvia (Anita Ekberg), o ‘paternal’ (Alain Cuny), até o pai de Marcello (Annibale Ninchi), o palhaço Polidor, Nadia (Nadia Gray), Fanny (Magali Noel), Nico, o pequeno gatinho branco, a raia monstruosa e fétida que é trazida nas redes até à praia, no final da festa, entre o ensurdecedor barulho do mar. Do outro lado do braço de mar, surge a jovem empregada de mesa de Perugia (Valeria Ciangottini) que lhe suplica em pura inocência. Mas o envelhecido Marcello não a consegue ouvir e volta para trás. E a melancolia do futuro perdido para sempre fica a vibrar no interior do espectador… tanto quanto essas outras cenas finais, também inesquecíveis, de «A Morte em Veneza» de Luchino Visconti (1971) ou de «A Noite» de Michalangelo Antonioni (1971).

Ah, beleza tamanha!


jef, agosto 2020


«A Doce Vida» (La Dolce Vita) de Federico Fellini. Com Marcello Mastroianni, Anita Ekberg, Anouk Aimée, Yvonne Furneaux, Walter Santesso, Adriana Moneto, Lex Baxter, Alan Dijon, Alain Cuny, Valeria Giangottini, Magali Noel, Nadia Gray, Annibale Ninchi, Polidor, Nico, Valeria Ciangottini. Fotografia: Otello Martelli. Música: Nino Rota. Produção: Giuseppe Amato, Angelo Rizzoli. Itália, 1960, P/B, 178 min.

 


terça-feira, 18 de agosto de 2020

Sobre o filme «A Estrada» de Federico Fellini, 1954

 







Ao unirmos a sintomática cena inicial com Gelsomina (Giulietta Massina) a chegar à beira-mar, de gravetos às costas, e a ser chamada pelo bando de miúdos que a avisam que deve ir a correr pois a sua irmã Rosa morreu e a mãe acaba de a vender ao viúvo e saltimbanco Zampanó (Anthony Quinn) por 10.000 liras, devendo seguir viagem de imediato; sim, se unirmos esta cena com a final, a mais poética e deslumbrante, em que Zampanó se enrosca e se perde nas mesmas areias da beira-mar, percebemos que a intenção primeira de Fellini não é, certamente, a mobilização da sociedade para alterar a sua crassa injustiça social mas a de criar um plano emocional que espelhe o profundo interior trágico das personagens. Uma tragédia que está latente, suspensa no ar até que surge um funâmbulo na corda bamba, louco ternurento ou bobo desastrado (Richard Basehart). Nessa altura, o espectador sabe que nada ficará a salvo, deve preparar-se para o pior. Porém, Gelsomina (e essa é o fulcro da tragédia) é amada por todos, acarinhada por todos, miúdos, graúdos, espectadores, comensais, freiras; gratidão recebida com uma espécie de ingenuidade santificada. Gelsomina é amada até por Zampanó.

Deste modo, o cinema regressava do programático neo-realismo ao mais puro e desprezado romantismo. Os acólitos cineastas e cinéfilos não o perdoaram. O público, pelo contrário.

Fellini criou, aqui, o seu futuro mundo circense, dramático, operático. Nunca mais largou Giuletta Massina ou Nino Rota. Nunca mais deixou de colocar os actores, quantas vezes não-actores, no centro da rua e a rua como cenário realista. Nunca mais prescindiu de colocar decores, cenas e falas inexplicados, mas cenicamente poéticas, labirinticamente oníricas.

Talvez seja aqui que Federico Fellini tenha averbado no dicionário o seu adjectivo. “Felliniano”.


jef, agosto 2020

«A Estrada» (La Strada) de Federico Fellini. Com Giulietta Massina, Anthony Quinn, Richard Basehart, Aldo Silvani, Marcella Rovere, Mario Passante. Argumento: Federico Fellini, Ennio Flaiano, Tulio Pinelli. Fotografia: Otello Martelli. Música: Nino Rota. Produção: Dino De Laurentiis. Itália, 1954, P/B, 94 min.

 


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Sobre o livro «Epítome de Pecados e Tentações» de Mário de Carvalho, Porto Editora 2020











Parecem ser os contos um incisivo e mordaz sublinhado àquelas obras de Ovídio que dão pelo nome de «Amores» ou «Arte de Amar». Tudo nestas duas vem esclarecido, tudo naqueles onze parece ser um modo de, sorrindo, desdizer na mais pura narrativa os ditos compêndios com vinte séculos de existência.

Também este livro sugere um vaguíssimo ciclo, tal como Ovídio realizara antes: Um livro deles, um livro de ambos, um terceiro livro delas. Neste caso: a ‘Ronda’, os ‘Burgueses’, agora o ‘Epítome’… Vá lá, no conjunto, a reunião conciliatória! No presente volume, os textos têm o olhar da mulher vivida, sabida ou por saber, mas de férrea personalidade sobre as titubeações, a falácia, a puerilidade e a inoperância amorosa deles. São elas que, não mandando ou arrogando, aqui ditam.

São textos de uma versatilidade exegética única de um autor que olha a raio x os que tem à sua volta também de modo único. Transforma a realidade, os costumes e os tiques, num apuro ficcional deleitoso. Ou seja, resume o androceu lusitano num epítome de grácil sarcasmo, sagaz fleuma, recôndita ternura.

E se o último conto, «O auditor», vem isolado numa III secção será pela razão conclusiva de que é um texto que (me) ficará indelével na memória como um dos mais belos contos de Mário de Carvalho.


jef, agosto 2020

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Conversas à parte










Conversas à parte.

Todas as conversas são terapêuticas porque todas as palavras são insubstituíveis. Não têm sinónimo absoluto. Contudo, mais do que terapêutica, a palavra partilhada faz jus à origem do homem, este que se aproxima mais do diálogo do chimpanzé do que do monólogo do orangotango. O homem nasceu para falar com os outros, seja na missa, no quiosque ou no café. Paradoxalmente, à medida que multiplicou os meios de comunicação foi abandonando a missa, o quiosque, o café. Adoeceu. Perdeu a capacidade de discursar para se fazer ouvir, de ouvir para saber, de voltar a pedir a palavra para a entregar ao outro, entre silêncios ponderados, cúmplices ou sisudos.

Palavra do Senhor (Antunes).

 

jef, agosto 2020


quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Sobre o livro «Requiem» de Antonio Tabucchi, Dom Quixote, 2007 (1991)

 







Decorridos vinte e nove anos, «Requiem» continua limpo, vigoroso, desavergonhado, acima de tudo, libertário. Aliás, a liberdade é talvez o símbolo, a essência, que subtrai o livro a qualquer data cultural. A liberdade linguística aqui assumida faz Tabucchi entrar no limbo universal dos escritores apátridas. A realidade “alucinada” apresenta-se firme, calma, racional, entregue de alma e corpo ao sonho e aos mortos. A vida morre e renasce numa contínua alegria pagã, concretizada em doze horas sufocantes e lisboetas, fazendo o espaço e o tempo coincidir e confundir-se logicamente. A topografia onírica da capital adquire um brilho difícil de encontrar no tórrido mês de Julho, através de uma narrativa que abraça a mais velha trama literária – a viagem delirante. Deste modo, com gosto reafirmamos, uma vez mais, que o autor de «Jogo do Reverso» é um dos mais lúcidos escritores contemporâneos da língua portuguesa. E se os livros são de quem os lê, o presente requiem ficará para sempre associado a José Cardoso Pires e aos pinheiros mansos que antes verdejavam em torno do Camões. O livro termina com a tradução de Pedro Tamen para o revelador texto “Um universo numa sílaba – vagabundagem à volta de um romance” (1999).

 jef, junho 2007