terça-feira, 25 de julho de 2023

Sobre o filme «20 000 Espécies de Abelhas» de Estibaliz Urresola Solaguren, 2022















Não nos preocupemos demasiado com a coerência narrativa neste filme porque o mais sugestivo nele é, exactamente, oquase frenético deambular da câmara, de cena para cena, tentando captar as dissonâncias que existem sempre dentro de uma família que parte apressadamente da cidade para passar férias na terra natal dos avós. De Bayonne para o País Basco.

Desde o início a tensão é constante. Compreendemos que quase tudo está incerto, periclitante, ansioso, que existem muitas verdades escondidas e algumas mentiras piedosas.

Porém, todo o filme vive do confronto da personagem Aitor, depois Côco, depois Lucía (Sofía Otero), um miúdo de oito anos que se esconde de si próprio e dos outros por rejeitar o próprio género, com a mãe, Ane (Patricia López Arnaiz) que vive no impasse do próprio casamento, do trabalho, da educação dos filhos e do confronto com a austeridade da sua mãe e a pesada carga vinda da memória do pai, também ele artista e escultor.

A instabilidade é constante e universal, mas a bondade e a ternura vai sempre vencendo os espinhos e as permanentes "ferroadas" da duríssima vida familiar.

A actriz-criança Sofía Otero faz um verdadeiro papelão, mas quem domina o ecrã, iluminando-o absolutamente do princípio ao fim, de modo quase bergmaniano, expressionista, tenso, silencioso, caridoso, é a bela actriz Patricia López Arnaiz.

Da vida na colmeia. 20.000 espécies de abelhas e o Homo sapiens é uma delas.

 

jef, julho 2023

«20 000 Espécies de Abelhas» (20.000 especies de abejas) de Estibaliz Urresola Solaguren. Com Sofía Otero, Patricia López Arnaiz, Ane Gabarain, Itziar Lazkano, Martxelo Rubio, Sara Cozar, Miguel Garcés, Unax Hayden, Andere Garabieta, Julene Puente Nafarrate, Mariñe Ibarretxe Frade, Aintziñe Rey Zurimendi, Julián Urkiola, Manex Fuchs, Rafael Martín, Fernando Ustarroz, Goize Blanco, Teresa Ibáñez. Argumento: Estibaliz Urresola Solaguren. Produção: Valérie Delpierre e Lara Izagirre. Fotografia: Gina Ferrer. Espanha, 2023, Cores, 129 min.

 

domingo, 23 de julho de 2023

Sobre o livro «A Consciência de Zeno» de Italo Svevo. Dom Quixote, 2009 (1923). Tradução de Maria Franco e Cabral do Nascimento.


 









Será que um livro sobrevive a uma tradução heterodoxa, com princípios sintácticos e vocabulário vindos do outro lado do Atlântico, e uma revisão apressada, mal-amanhada (mesmo com a advertência inicial de que foi efectuada “uma mera actualização ortográfica”)? Certamente que um mau livro acabaria absolutamente obliterado mas «A Consciência de Zeno» de Italo Svevo sobrevive a todas as tropelias, mesmo com a nossa leitura interrompida nas 434 páginas por constantes “quebras de rede” ou com o “sistema a ir abaixo” de cinco em cinco linhas. Por que é um livro soberbo, de um humor tão fino, quase de escárnio aristocrático, de uma pureza de estilo e consideração social e política que remonta ao mais entusiasmante catálogo oitocentista pós-romântico, obtém esta sumária consideração editorial? Avancemos.

Dir-se-ia que Zeno Cosini vive desafogadamente e sem grandes preocupações em Trieste, naquela cidade na esquina da Península de Ístria do Adriático, esquina também dos conflitos bélicos e geográficos mais confusos da Europa. Porém, Zeno vive angustiado com a própria consciência dos actos praticados, actos por praticar ou simplesmente sugeridos. Vive entre a decisão racional de desejar eternamente deixar de fumar; de seguir o curso de Química ou o de Direito, ou nenhum deles; de ter o firme propósito de casar e pertencer à família Malfenti; de ser um comerciante de sucesso como o seu patrono Olivi; de estar consciente de que a doença é um ser endógeno ao próprio corpo e que lhe dá a dimensão, por oposição, da felicidade e da alegria que devem ser atingidas a cada dia que passa. Mas devemos sempre optar por uma boa doença bem reconhecida e categórica. Zeno também deve ter uma amante, como manda a lei da viril compita no porto de Trieste. Também deve praticar a bondade e apoiar comercialmente Guido que lhe roubou o coração de Adelina.

Eis um romance que faz parte de um conjunto de obras maiores que poderia dar o título de livros sobre os “homens sem qualidades” (Copyright Robert Musil), aqueles que tentam cair de novo mas de um modo cada vez mais elegante. Uma estante de obras onde posso incluir «Um, Ninguém e Cem Mil» de Luigi Pirandello, «O Crime de Lorde Arthur Savile» de Oscar Wilde, «A Noite do Professor Andersen» Dag Solstad ou «Bartleby de Herman Melville.

Este livro tem a particularidade de se apresentar de um modo amplo, eclético e futurista. Não é por acaso que Zeno começa a escrever as memórias por sugestão do médico que lhe prescreve amiúde consultas de Psicanálise. Zeno detesta o médico e odeia o método mas continua a escrever as memórias (falsas) para o psicanalista se consolar. Até que a guerra estala. E ele tem de contornar a colina para ir ter com a família que está de veraneio em Lucinico, precisamente aquela fronteira perversa entre a Itália e o império Austro-húngaro. Que fazer… ele que passeava, que nem trazia chapéu e não tomara aindao seu leite com café?

Entre a Psicanálise e a Consciência, entre o Remorso, a Intuição, o Instinto e o Erro, eis um monumento de prosa inteligente e satírica, a que com um sorriso diria ser um romance “anti-Madame Bovary”!

(Vou ter de investigar a recente edição deste romance da Penguin (2023), com tradução de Ana Cláudia Santos e introdução do grande Gonçalo M. Tavares.)


jef, junho 2023)

Sobre o filme «A Cortina Rasgada» de Alfred Hitchcock, 1966



 


















Como é bom ver um filme de Hitchcock num ecrã grande e em silêncio de telemóveis. Pelos vistos, não se fala muito do filme apesar de ter como protagonistas Paul Newman (Michael Armstrong) e Julie Andrew (Sarah Sherman) no auge das suas carreira e beleza. Apesar de ser um filme tão louco e lúdico como o mais estapafúrdio conto dos Irmãos Grimm. Apesar de Alfred Hitchcock apostar nas suas mais altas e velhas noções de comédia e suspense: não passa, ele próprio, no átrio do hotel, o bebé de uma perna para a outra, limpando depois a mão nas calças da possível urina derramada? Não coloca ele, inicialmente, os dois cientistas (e ainda noivos!) na cama aos beijos e em grande plano, debaixo de um montão de cobertores, casacos e sobretudos por causa da falta de aquecimento do navio? Não repetirá ele a cena, no final, mas agora encharcados e cobertos por um cobertor para se esconderem de um fotojornalista indiscreto? Não colocará o realizador todos os esforços para nos fazer crer na inverosímil história daquela louca fuga de volta à Suécia? Como, se o rosto dos espiões ocidentais está estampado na televisão e nos jornais? Como escapam eles assim pelas ruas de Berlim? E não é que nós acreditamos mesmo em tudo, na diabólica bailarina (Tamara Toumanova) a quem o Professor Michael Armstrong insiste em roubar o protagonismo fotográfico nas chegadas de avião; na pungente e teatral Condessa Kuchinska (Lila Kedrova) que lhes pede ajuda para a sua emigração para a América; no longo e hercúleo esforço da mulher do lavrador (Carolyn Conwell) contra o peso-morto do esbirro Gromek (Wolfgang Kieling)? Não serão as mulheres todas um pouco bruxas, desde a Dr.ª Koska (Gisela Fischer) até à mulher alemã da resistência que vocifera na camioneta salvadora? Não será Michael Armstrong, aquele cientista americano que até a meio do filme parece ser um esquivo e malévolo colaboracionista? E o professor alemão do nuclear, Gustav Lindt (Ludwig Donath), não é a personagem mais doce do filme?

Realmente estamos perante uma extraordinária e empolgante aventura Grimm por trás dos sombrios corredores da cortina de ferro e da antiga guerra fria, dirigida pela mão férrea do mestre do suspense teatral e da comédia quase burlesca.

Um motivo maior para rever dois belos actores.

Motivo ainda para reler o belo texto de João Bénard da Costa para as Folhas da Cinemateca.


jef, julho 2023

«A Cortina Rasgada» (Torn Curtain) de Alfred Hitchcock. Com Paul Newman, Julie Andrews, Lila Kedrova, Hansjörg Felmy, Tamara Toumanova, Ludwig Donath, Wolfgang Kieling, Günter Strack, David Opatoshu, Gisela Fischer, Mort Mills, Carolyn Conwell, Arthur Gould-Porter, Gloria Govrin, David Opatoshu, Norbert Schiller, Peter Bourne. Argumento: Brian Moore, Keith Waterhouse e Willis Hall. Produção: Jack Corrick. Fotografia: John Warren. Música: John Addison. EUA, 1966, Cores, 125 min.

 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Sobre o disco «Cãs» de Balla, Balla 2022

 


«Cãs» não tem medo do futuro. Sequer da tradição da Pop. Sequer da electrónica que permanece inscrita no código genético de um certo músico chamado Armando Teixeira.

Balla é um ser plástico e mutante, que dispensa organização ou definições. Os quatro temas do Lado A (Contramão, Xeque-Mate, Motim e Segredos) e outros tantos no lado B (A Noite, Coração Desarrumado, Ardor e Dias Felizes) do long playing fazem jus ao lado descomprometido, lúdico, quase pueril de uma música para ser ouvida na radio de um automóvel em direcção a alguma praia próxima distante.

Contudo, os temas citados fazem igualmente uma piscadela de olho nostálgica, uma declaração singela ao porvir, um compromisso de honra de alguém que reconhece os vinte anos passados sobre a edição do álbum «Le Jeu» (2003). Ao amor surgem xeques-mate, motins, segredos, ardores e desarrumos, mas nunca cãs.

Por isso, este disco sorri ao privilegiar um certo gozo invisível de brincar aos subterrâneos dos seus próprios clássicos. A pop-pop de «Segredos», o romantismo de «Coração Desarrumado», o sinfónico de «Motim».

Por isso a inicial abstracção de «Contramão». Salivada, urbana e modular.

E, por fim, essa piscadela de olho nostálgica, reconciliação quase easy-listening de «Dias Felizes». No fundo, no fundo, porque eles existem e nos são imprescindíveis!

jef, julho 2023

terça-feira, 18 de julho de 2023

Sobre o filme «A Outra Margem» de Luís Filipe Rocha, 2007


 













Luís Filipe Rocha tem um particular condão narrativo de contar uma história à moda antiga mas tratando temas que, anos mais tarde, entrarão na moda. «A Outra Margem» é um exemplo particular.

Sem ferir orgulhos ressabiados nem ostentar preciosismos demagógicos ou pretensões apologéticas conta a história simples de um tio, Ricardo (Filipe Duarte), que sai de Amarante para Lisboa, fugindo à família, para poder seguir a sua vida como homossexual e travesti. Porém, após o suicídio do companheiro, regressará à terra natal. Aí, encontrar o sobrinho Vasco (Tomás Almeida), com síndrome de Down e que deseja ser actor.

Uma história de ligações impossíveis e remates improváveis como eram as novelas românticas de outros séculos. Nada a objectar: a ficção teatral é feita dessas improbabilidades diegéticas para compreendermos melhor a realidade que nos atinge.

O actor Filipe Duarte é particularmente genial na contracena com a irmã Maria, a extraordinária Maria d´Aires, ou com o sobrinho Vasco ou o pai (Horácio Manuel) ou mesmo a noiva abandonada, Luísa (Sara Graça).

Um filme que merece ser revisitado, como o fez agora a RTP 2, também para conhecermos melhor a história do cinema contemporâneo em Portugal.


jef, julho 2023

«A Outra Margem» de Luís Filipe Rocha. Com Filipe Duarte, Maria d'Aires, Tomás Almeida, Horácio Manuel, Sara Graça, Eduardo Silva, João Pedro Vaz, Pompeu José, Teresa Faria, João Tempera, Fernando Santos, Luís Viegas, André Branco, Francisco Brás, Paula Sabino, Gil Alves. Argumento: Luís Filipe Rocha. Produção: Paulo Branco. Música: Pedro Teixeira Silva. Fotografia: Edgar Moura. Guarda-roupa: Isabel Branco. Portugal, 2007, Cores, 106 min.