quinta-feira, 30 de março de 2023

Sobre o filme «Nostalgia» de Mario Martone, 2022

 






















Mario Martone é um realizador que percebe muito bem que um filme pode chamar-se Nostalgia sem o deixar cair na previsível estratégia da lágrima. Pode até fornecer dados ao espectador para que este entenda de imediato que vai assistir a uma história sobre um passado fugitivo e a memória dessa fronteira iniciática entre a adolescência encantada e a vida adulta bruta.

Felice Lasco (Pierfrancesco Favino) chega para visitar a sua velha mãe Teresa (Aurora Quattrocchi) que não vê há muitos anos, tendo vivido grande parte da vida no Cairo. Regressa a Nápoles e parece que a cidade apenas o reconhece vagamente apesar de se assemelhar àquela que ele há muito deixou. É um homem rico, circunspecto, amável, deixa no Egipto uma mulher que ama para voltar a uma cidade que contém uma marca, ou um segredo, que ele evita, esconde mas cada vez tem mais necessidade de encontrar. Deseja, acima de tudo, rever o seu melhor amigo, Oreste Spasiano (Tommaso Ragno). Para isso vai ter de pedir ajuda ao padre Luigi Rega (Francesco Di Leva) que com energia e afecto tenta organizar e ajudar os moradores do bairro de Sanità, apesar da miséria e da Camorra.

A história parece simples e talvez o seja, mas o realizador pega em belos actores e, certamente muitos figurantes e actores-não-actores locais, e vai oferecendo progressiva densidade dramática a um tema que poderia já se ter tornado enfadonho. Antes pelo contrário, o que assistimos é a uma tensão crescente de um verdadeiro filme de acção, sustentado num outro nível pelo carinho emocional com que caracteriza as diversas personagens, todas em busca de um certo equilíbrio numa sociedade violenta e cega.

Muita atenção aos cenários e à fotografia de Paolo Carnera.

Um excelente filme de suspense. À antiga.

 

jef, janeiro 2023

«Nostalgia» de Mario Martone. Com Pierfrancesco Favino, Francesco Di Leva, Tommaso Ragno, Aurora Quattrocchi, Sofia Essaïdi, Nello Mascia, Emanuele Palumbo, Artem, Salvatore Striano, Virginia Apicella, Daniela Ioia, Luciana Zazzera, Giuseppe D'Ambrosio. Argumento: Mario Martone e Ippolita Di Majo baseado no romance de Ermanno Rea. Produção: Roberto Sessa. Fotografia: Paolo Carnera. Guarda-roupa: Ursula Patzak. Itália / França, 2022, Cores, 118 min.

 

segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre o filme «Great Yarmouth: Provisional Figures» de Marco Martins, 2022





















Marco Martins («Alice», 2005 ou «São Jorge», 2016) coloca a sociedade deprimida na degradada colónia balnear de Great Yarmouth, no Leste de Inglaterra. É o cenário onde se movem as câmaras de filmar. No centro desta, a exploração dos emigrantes portugueses que eram exportados no final de 2019, o Brexit vinha aí, como carne de peru para serem explorados nos matadouros-fábrica de processamento de carne daquelas aves. O núcleo é ocupado por Tânia, a controleira e exploradora-mor daquelas hordas de miseráveis que mal sobrevivem entre os prédios infectos onde dormem e o sangue e fezes das aves que chegam para serem mortas e depenadas em condições extremas. A alma de Tânia é a actriz Beatriz Batarda. A verdadeira alma da actriz como que é sugada numa interpretação para a história do teatro. Acredito que tenha sido inesquecível para os actores com quem contracenou (tal como o é para os espectadores!) essa arrebatadora entrega corporal e do ânimo de Beatriz Batarda que, em crescendo de exaustão, é finalmente dilacerada e exterminada pela paixão por Carlos (Nuno Lopes), um dos emigrantes que chega questionando o paradeiro do seu irmão Cardoso (Hugo Bentes), que anda a ser perseguido pelos usurários. Paixão ainda manchada mais a negro pela chantagem da esposa grávida de Cardoso.

Tudo envolto na luz lúgubre dos corredores e dos quartos onde se amontoam deploráveis os emigrantes, na solidão das sombras, das paredes e tectos deteriorados, em imagens de abstracção plástica lembrando os painéis criados pelo pintor catalão Tàpies, na composição estética com os galgos de Raúl (Romeu Runa) a recordar o impacto cénico de um dos grandes filmes de Mike Leigh, «Nu», 1993.

Contudo, o filme, em certa medida, parece depois soçobrar, perdendo energia dramática, perante a genialidade de Beatriz Batarda (e tanto se fala de Kate Blanchet no hollywoodesco «Tár»!); perante a força bruta das interpretações de Nuno Lopes, Rita Cabaço ou Romeu Runa; face a um certo deslumbramento estilizado da fotografia de João Ribeiro; do sofrimento agonizante das pobres aves; da poética alegórica das aves que migram sobre um sapal que vai perdendo a densidade cosmopolita e ornitológica.

Um excesso estético que, todavia, não retira a necessidade de se ir ao cinema ver um dos importantes filmes da forte e crescente cinematografia portuguesa.

 

jef, março 2023

«Great Yarmouth: Provisional Figures» de Marco Martins. Com Beatriz Batarda, Nuno Lopes, Kris Hitchen, Romeu Runa, Rita Cabaço, Hugo Bentes, Robert Elliot, Michael Rawson, Joseph Ross, Eve Woods, Félix Magar Phibbs, Craig Smith, Kerry Gedge, Anna Frostic. Argumento: Marco Martins e Ricardo Adolfo. Produção: Kamilla Hodol, Filipa Reis. Fotografia: João Ribeiro. Música: Jim Williams. Guarda-roupa: Isabel Carmona. Portugal / França, 2022, Cores, 113 min.

 

terça-feira, 21 de março de 2023

Sobre o filme «Regresso a Seul» de Davy Chou, 2022


 












Este filme centra-se na hiper-realidade teatral de Freddie, uma jovem francesa de origem coreana que sem saber muito bem como viaja até Seul para “involuntariamente” conhecer a sua história antes da adopção e contactar com os pais biológicos. Sabemo-lo nas cenas iniciais.

Esse dramatismo cénico é centrado totalmente na grande actriz que é Park Ji-min que expõe a cada minuto a tentativa de procurar uma origem e um destino relativamente àquela viagem e, no fundo, ao interior do seu inconstante e provocador modo de olhar o mundo que a sustém. Freddie procura mas não tem a certeza de que deseja mesmo encontrar o que busca. Ela move-se num certo modo de transgredir, tenta encontrar alicerces mas as raízes com que se depara são, para ela, nova forma de limitação. Rejeita o velho e amargurado pai que não se conforma com a adopção da filha obrigado pelas condições miseráveis do país após a guerra que originou a separação das Coreias. 

Freddie permanece na Coreia aguardando o contacto da mãe biológica. Afasta-se dos pais adoptivos. Vive apenas por ela própria, tateando a cultura coreana e vai progredindo com tenacidade. Move-se num mundo social que não é bem o dela mas também, agora, já não deixa de o ser.

A rejeição sinónimo de dor e desenraizamento. O choque de culturas como modo personificado de aculturação e fuga de identidade.

Sem dúvida um filme consciente, inteligente e belo.


jef, fevereiro 2023

«Regresso a Seul» (Retour à Séoul) de Davy Chou. Com Park Ji-min, Oh Kwang-rok, Guka Han, Kim Sun-young, Yoann Zimmer, Louis-Do de Lencquesaing, Jin Heo, Hur Ouk-Sook, Son Seung-Beom, Dong Seok Kim, Emeline Briffaud, Lim Cheol-Hyun, Régine Vial, Cho-woo Choi, Ioana Luculescu. Argumento: Davy Chou, Laure Badufle. Produção: Graham Broadbent, Peter Czernin, Martin McDonagh. Fotografia: Thomas Favel. Música: Jérémie Arcache, Christophe Musset. Guarda-roupa: Claire Dubien, Choong-Yun Yi. França, Alemanha, Bélgica, 2022, Cores, 119 min.

 

sábado, 18 de março de 2023

Sobre o livro «O Plantador de Abóboras» de Luís Cardoso. Abysmo, 2020

 

 

O livro é apresentado pelo autor como uma “sonata para uma neblina” com três andamentos. E quem o lê apercebe-se que contém uma certa alegoria musical que deve ser cantada. Ou contada. Alguém que chega e retém nas suas mãos as mãos de quem canta (ou conta) esta partitura sobre neblinas, guerras e fronteiras. Três gerações, duas, três ou mais guerras, outras tantas revoltas. Quatro continentes, muitas cores de pele, duas repúblicas: a de Manu-mutin, mas primeiro a de Manu-metan, reduzida a cinzas. Um crocodilo, ancestral, que espreita na ribeira, o petróleo que aguarda no fundo do mar. Galo preto Galo branco, lutadores, pomba depenada, pavões pintados. Um ganso dominador Sun Tzu, um feitor com várias caras, Américo Borromeu. Os cafezais e o café «Insulíndia». As abóboras cucurbita que não se plantam antes semeiam. Raimundo Chibanga, depois o comendador Raimundo, seu filho, depois a noiva que conta (ou canta) eternamente, que eternamente espera e repete a mesma pergunta com a resposta no silêncio do olhar do outro. Irmãos extraordinários unidos por Don Quijote e pelo fiel escudeiro Sancho Pança. Enquanto a Tia Benedita ouve na grafonola Doris Day cantar o «Que Sera Sera».

História densa, fatídica, complexa que narra o percurso turbulento e dividido de uma ilha traçada por uma fronteira que não impediu (ou talvez tenha promovido) a confluência de tantas línguas, povos e lutas pela resistência.

Luís Cardoso opta estrategicamente por envolver a aventura em modo de saga familiar no tom épico das grandes narrativas epopeicas que, ouvidas muito antes de serem lidas, repetiam versos e estrofes, por sistema e ritmo, para que os ouvintes, aqui os leitores, apreendam, memorizem e sigam o compasso da sonata. 

E fá-lo muito bem.


jef, março 2023

terça-feira, 14 de março de 2023

Sobre o filme «Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo» de Daniel Kwan e Daniel Scheinert, 2022







Então e o filme de Steven Spielberg «Os Fabelmans» não recebeu nenhum óscar? E «Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo» leva sete de uma assentada? Por onde anda o critério cinematográfico dos votantes da Academia de Hollywood?

Este é um filme que, bem vistas as coisas, poderia ser explicado em meia hora como prolongado por mais de cinco… Bastava construir mais cenários, costurar mais guarda-roupa, contratar mas figurantes e mais técnicos em arte-digital. Tem uns longuíssimos 139 minutos!

Existe aqui um falso exagero, um presunçoso piscar de olho ao fantástico surrealista, ao burlesco, ao disparate ‘mel-brooks’, à coboiada oriental kung-fu ‘jackie-chan’, à comédia desbragada sobre temas fracturantes, à produção e rapidez dos jogos-vídeo exibidos em fractais simultâneos e planos sobrepostos, onde se ganham vidas acabando com vidas, próprias e alheias, à estética sul-coreana das garotas-palhaço, uma vaidade de que fazer humor vale tudo e um par de botas desde que no final se polvilhe com a moral lacrimejante à ‘condessa-de-ségur’.

Salve-se Michelle Yeoh que com mestria consegue ultrapassar tudo e dar corpo e densidade emocional à mãe-star-up-multi-task Evelyn Wang. Salve-se ainda a seriedade de Jamie Lee Curtis por nos fazer recordar eternamente «Um Peixe Chamado Wanda» (Charles Crichton, 1988).

Volta Quentin Tarantino («Pulp Fiction» 2019, «Kill Bill 1 e 2» 2003-2004, «À Prova de Morte» 2007). Voltem rápido Akira Kurosawa («Os Sete Samurais», 1954) e John Sturges («Os Sete Magníficos», 1960).

Óscares, para que vos quero!


jef, março 2023

«Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo» (Everything Everywhere All at Once) de Daniel Kwan e Daniel Scheinert. Com Michelle Yeoh, Stephanie Hsu, Jamie Lee Curtis, Ke Huy Quan, James Hong, Tallie Medel, Jenny Slate, Harry Shum Jr., Biff Wiff. Argumento: Daniel Kwan e Daniel Scheinert. Produção: Virginie Besson-Silla, Daniel Kwan, Mike Larocca. Fotografia: Larkin Seiple. Música: Son Lux. Guarda-roupa: Shirley Kurata. EUA, 2022, Cores, 139 min.


quarta-feira, 8 de março de 2023

Sobre o filme «EO» de Jerzy Skolimowski, 2022

 



É um filme que exacerba a componente estética, tanto no que respeita à imagem (Michal Dymek) como à manipulação sonora (Radoslaw Ochnio), um facto que se sobrepõe à música original (Pawel Mykietyn) – ouvem-se as patinhas das formigas e os morcegos batem as asas como pombos.

No final, o realizador polaco tranquiliza-nos dizendo que os animais não foram maltratados e que o filme é feito sob a égide do seu amor pelos animais. Nem os seis lindos burrinhos que fazem de EO, nem os dromedários, o camelo do circo. Nem os cavalos traficados para carne. (Ai «Os Inadaptados» de John Huston, 1961!) Nem o lobo atingido pela calada da noite, nem os canídeos abatidos ilegalmente para extracção das peles. (Confesso que sobre este aspecto já vinha traumatizado de «Os Espíritos de Inisherin» – Martin McDonagh, 2022).

Por outro lado, diz ainda o realizador, que se baseou num filme do mago Robert Bresson, o realizador de Deus e da culpa, do herói e da redenção – «Peregrinação Exemplar» (Au Hasard Balthazar), 1966. Não conheço.

«EO» divide-se por episódios sequenciais e aventurosos, uns dramáticos outros de leve toada humorística, seguindo a dita e a desdita do burrinho EO no encontro com bons e maus humanos. A câmara e a captação do som sugerem ser o que os olhos negros captam, ou como as longas orelhas felpudas do animal apreendem a realidade. Sugerem ainda que o amor da jovem circense Kasandra por EO é que que fica na memória deste e, por vezes, o faz ultrapassar as baias que o prendem. Surgem episódios como fractais absctractos, surrealistas ou fantasiosos. Ternos ou assustadores. Falando das diversas formas de uso e maus tratos aos animais. Até o asinino chegar ao palacete italiano da condessa (Isabelle Huppert) onde a história centra-se na relação desta com o seu filho ou enteado, religioso e fugitivo.

Chegando aí, quase no fim deste curto filme, apeteceu-me rever «O Fantasma da Liberdade» (Luis Buñuel, 1974), também com muitos bichos e muitos padres.

Quando cheguei a casa fui buscar o livro «Platero e Eu» de Juan Ramón Jiménez!

Interessante, sim… Angustiante, certamente… Pretensioso, talvez... Seria necessário tanto barulho, tantas imagens, tantas histórias? 

Sobre o ciclo natural dos animais e dos homens recordo um filme único: «As Quatro Voltas» de Michelangelo Frammartino (2010).


jef, março 2023

«EO» de Jerzy Skolimowski. Com Sandra Drzymalska, Lorenzo Zurzolo, Mateusz Kosciukiewicz, Isabelle Huppert, Tomasz Organek, Lolita Chammah, Anna Rokita, Michal Przybyslawski. Argumento e Produção: Ewa Piaskowska, Jerzy Skolimowski. Fotografia: Michal Dymek. Música: Pawel Mykietyn. Som: Radoslaw Ochnio. Polónia, Itália, 2022, Cores, 88 min.

 

quinta-feira, 2 de março de 2023

Sobre o filme «Os Espíritos de Inisherin» de Martin McDonagh, 2022




















Soa-me a que este filme, na origem da ideia do realizador, deveria ser uma comédia negra sobre as consequências psicológicas da insularidade, do isolamento, da solidão e das características culturais tão particulares e obscuras que envolvem a Irlanda e a sua história política e social. 

Contrata dois grandes actores para fazerem os difíceis papéis de dois amigos abstractamente desavindos: Colin Farrell que encarna o meio-néscio pastor Pádraic Súilleabháin e Brendan Gleeson para o papel do músico violinista meio-bronco Colm Doherty, e envolve-os numa sociedade asfixiada como numa placa de petri e ultra-policiada, supersticiosa e claustrofóbica como um rochedo atirado para o fundo do mar. 

Coloca tudo em contraponto com uma mulher educada e crítica, a irmã de Pádraic, Siobhán Súilleabháin (Kerry Condon), que deve fugir da ilha. Veste-os com um extraordinário guarda-roupa de passerelle (Eimer Ni Mhaoldomhnaigh), envolve-os numa paisagem milimétrica fabricada por uma fotografia talentosa (Ben Davis) que em certos enquadramentos fez-me revisitar Bodega Bay de Hitchcock. Coloca as personagens a falar com diálogos circulares e minimalistas, ameaçando a popular teatralidade. Tudo cercado por belos e ternurentos animais domésticos.

Contudo, no universo tenso, ansioso, angustiado e bélico em que actualmente o espectador vive, e sabendo que uma obra de arte deve assumir o seu papel fundamental, não de moralizar, mas de tornar inteligível e estético, respeitando o universo que abraça, parece-me que o filme se afasta de qualquer assomo de ironia, sarcasmo ou comicidade para tornar-se somente uma piada de mau gosto.

E se este mundo estivesse nas mãos e nos amáveis argumentos de Jim Jarmusch, Tim Burton ou Aki Kaurismäki?

Ou serei eu que, por estes dias, ando muito sensível e a ver os filmes de Abbas Kiarostami e Ingmar Bergman.


jef, fevereiro 2023

«Os Espíritos de Inisherin» (The Banshees of Inisherin) de Martin McDonagh. Com Colin Farrell, Brendan Gleeson, Kerry Condon Pat Shortt, Gary Lydon, Jon Kenny, Barry Keoghan, Sheila Flitton, John Carty, Oliver Farrelly, Lasaírfhiona Ní Chonaola, David Pearse, Bríd Ní Neachtain, Aaron Monaghan. Argumento: Martin McDonagh. Produção: Graham Broadbent, Peter Czernin, Martin McDonagh. Fotografia: Ben Davis. Música: Carter Burwell. Guarda-roupa: Eimer Ni Mhaoldomhnaigh. Irlanda, Reino Unido, 2022, Cores, 114 min.