terça-feira, 30 de junho de 2020

Sobre o filme «O Fantasma da Liberdade» de Luis Buñuel, 1974

 














É muito divertido lembrar como este filme deu brado quando estreou no mesmo ano de realização no cinema Londres, em Lisboa. Eu não o vi, era para adultos, mas os nossos pais fartaram-se de falar dele. O 25 de Abril tinha chegado há seis meses.

Parece ser uma brincadeira de Buñuel a fazer de Buñuel, imaginando-se por fora, compondo e revendo o seu léxico, em jeito de episódios escritos com Jean-Claude Carrière, a duas mãos, em sequência desconexa, um personagem sai da história anterior, inicia a sua e deixamos para trás a memória da anterior. Consecutivamente, saltando de enredo para enredo, sem saber bem o seu fim. Um «cadáver esquisito» diriam os surrealistas. A lembrar, os encadeados contos bíblicos e de «As Mil e Uma Noites». Recordo eu, agora, «Se numa Noite de Inverno um Viajante» de Italo Calvino (1979) ou «Manuscrito Encontrado em Saragoça» de Jan Potocky (1810).

Talvez por se cingir a uma norma estética este não será o filme mais inovador e criativo de Buñuel, mas é sem dúvida onde o absurdo é levado ao extremo tal como depois fizeram os Monty Phyton. O professor ensina à mais insubordinada turma de polícias do mundo que as leis seguem o comportamento humano e este está permanentemente em mudança, mas não consegue concluir o raciocínio. O pedófilo no parque mostra à socapa fotografias de monumentos parisienses a duas meninas e os pais ficam chocados. É muito má educação falar de comida enquanto se está à mesa a defecar. As perversões sexuais são quase abençoadas. O assassino em série é ovacionado e distribui autógrafos. O jardim zoológico está em polvorosa…

«O Fantasma da Liberdade» pode não ser o melhor filme de Buñuel mas foi realizado em 1974, Portugal revolucionário mas ainda a braços com a imoralidade e a Europa em aguerrida convulsão, social, política, cultural. Nele, agora, ainda vemos a turbulência causada pela sua aguda irreverência, nesse hilariante jogo libertário, quase infantil, de Buñuel brincar a Buñuel e se autodestruir no que seria o penúltimo filme da sua carreira.


jef, junho 2020

 

«O Fantasma da Liberdade» (Le Fantôme de la Liberté) de Luis Buñuel. Com Adriana Asti, Julien Bertheau, Jean-Claude Brialy, Adolfo Celi, Paul Frankeur, Michael Lonsdale, Pierre Maguelon, François Maistre, Hélène Perdrière, Michel Piccoli, Claude Piéplu, Jean Rochefort, Bernard Verley, Milena Vukotic, Monica Vitti, Jenny Astruc, Pascale Audret, Ellen Bahl, Philippe Brigaud, Philippe Brigaud, Philippe Brizard, Agnès Capri, Jean Champion, Jacques Debary, Anne-Marie Deschodt, Jean-Michel Dhermay, Philippe Lancelot, Paul Le Person, Pierre Lary, Marius Laurey. Argumento: Luis Buñuel e Jean-Claude Carrière. Produção: Serge Silberman. Fotografia: Edmond Richard. França, 1974, Cores, 105 min.                                                     


domingo, 28 de junho de 2020

Sobre o livro «Sleuth Hound Song (A Canção do Cão Raivoso)» de André Ruivo. The Inspector Cheese Adventures (colecção 7“), 1998







«Seminal...»,

diria o crítico, curador, manager, marchand de artes que assim se prezasse. Monóculo ao revirar do sobrolho, lenço de seda a sair do colarinho ou do bolsinho do blazer de linho amarrotado, poucas falas, cenho façanhudo, barriga oitocentista, charuto na ponta dos dedos, cofiando a bigodaça encerada.

Mas eu apenas vos digo desta obra, das primeiras de André Ruivo, 50 exemplares, 44 páginas, 18x18 centímetros, que ele sempre teve tendência para a numeração e os rectângulos de lados iguais, papel kraft a alternar com IOR, colagem do titulo e agrafos manuais, avulso no corte das margens, a solicitar a sujidade das mãos e do tempo, a gordura dos dedos, a cinza do cigarro, tão fora de moda que pede leitura 22 anos depois:

«Musical! Apenas tão musical, tão literário, tão predestinado!»


«Jack plays trombone at the underground station».

O Jack toca trombone na estação de metropolitano. «Os cães estão fartos de me morder as canelas» resmungou. Abandonou a rua e desceu escadas abaixo.

«Só sei tocar esta» disse. A cara iluminou-se a laranja quando acendeu o cigarro, e a corente de ar colou-lhe cinza à pele suada.


Começa o livro de todas as histórias futuras de André Ruivo...


jef, junho 2020

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Sobre o livro «A Educação dos Gafanhotos» de David Machado. Dom Quixote, 2020










Este é um livro que é publicado na altura errada.

Marco e David são amigos inseparáveis desde que se encontraram, em Génova, numa estadia académica sobre literatura comparada. Resolvem fazer uma pausa e percorrer os Estados Unidos de mochilas às costas e literatura no bolso. A vida e a ficção, para eles, dividem-se em dois hemisférios: o mundo olhado do lado psicológico, interior, onde o leitor é convocado a refazer o espaço através das indefinidas premissas delineadas por William Faulkner; ou, então, visto pelo lado viril e circunstancial, directo, centrado na paixão pelo acto de viver, ao mesmo tempo expansivo mas egocêntrico, de Ernest Hemingway.

Discutem muito enquanto avançam, estado após estado, cerveja após cerveja, vendo de modo mais ou menos superior e arrogante, entre as gentes estranhas de um enorme país estranho. David critica Marco por ter deixado uma namorada em Londres. Aquela viagem devia ser tão liberta de laços afectivos como de preconceitos turísticos ou princípios sociais. Tinham de avançar livres como, afinal, não o terá feito John Steinbeck em «Viagens com o Charley».

Contudo, visitam o Disney World e as Cataratas do Niagara.

Até que desaguam na Bourbon Street do French Quarter. Nova Orleães está festiva após o Mardi Gras e engole-os no encanto do movimento, obrigando-os a voltarem lá, mais tarde. Aí bebem ainda mais e confundem-se no clima tropical da cidade, desorientando-os dessa arrogância que assumem perante os estereótipos tão diversos que a grande nação apresenta. Miami, Palm Beach aproxima-se. Ligam o radio e a notícia fatal leva-os ao rápido desejo de regresso, segurando-os ao desprezado termo da saudade.

Na linguagem narrativa ágil, sempre em corrida “estrada fora”, (aqui até um pouco apressada demais), de David Machado, os dois amigos precipitam-se numa série de peripécias desequilibradas e gagues grotescos, tendo como pano de fundo a sistemática presunção superior perante a cultura e o povo americanos.

Numa altura que estamos a ver crescer no mundo a onda hedionda do racismo e da intolerância. Quando vemos o país de Hemingway, Faulkner e Steinbeck (também de Saroyan ou Bradbury) ser destroçado por um mitómano mentiroso mentecapto Donald Trump. Eu preferia não ter lido este livro agora.


jef, junho 2020


Sobre o filme «A Via Láctea» de Luis Buñuel, 1969.










Filme teórico, erótico, louco e livre. Tudo o que aqui se diz e se olha está inscrito nas sagradas escrituras ou no seu contrário: as heresias, os anátemas, as maldições, os milagres, a devoção, a repugnância, o corpo, a alma, o sexo, a excomunhão. Temos de seguir João (Laurent Terzieff) e Pedro (Paul Frankeur) que vão em peregrinação de Paris a Compostela, em homenagem ao apóstolo Tiago que pode nem estar ali enterrado. Falam Cristo (Bernard Verley) que se prepara para rapar a barba, impedido pela Virgem Maria (Edith Scob) que se revela com um rosário no alto de uma árvore a uns estudantes jacobinos atónitos e convertidos (Denis Manuel, Daniel Pilon). Fala o diabo (Pierre Clémenti) que promove desastres rodoviários. Fala o devoto Marquês de Sade (Michel Picolli), a prostituta acolhedora (Delphine Seyring) e o padre do albergue espanhol ávido pelo divino voyeurismo (Julien Guiomar).

É uma espécie de testemunho religioso de Luis Buñuel a partir da sua própria leitura tão atenta das sagradas escrituras e de tudo o que elas provocam de confusão, interpretação, negação, olhado através de uma sucessão de quadros que aparecem sem regra geográfica ou temporal aos olhos dos peregrinos Pedro e João (e dos espectadores). Tal como as estrelas que parecem caóticas a quem as olha mas organizadas numa galáxia láctea e que levava os devotos pelas estradas até São Tiago, em Compostela.

Este filme é o absoluto oposto de «A Vida de Brian» dos Monty Phyton (1979).


jef, junho 2020

«A Via Láctea» (La Voie Lacteé) de Luis Buñuel. Com Paul Frankeur, Laurent Terzieff, Pierre Clémenti, Bernard Verley, Edith Scob, Denis Manuel, Daniel Pilon, Alain Cuny, François Maistre, Julien Bertheau, Michel Picolli, George Marchal, Jean Piat, Muni, Agnès Capri, Claudio Brook, Jean-Claude Carrière, Marcel Pérès, Delphine Seyring, Michel Eichéverry, Julien Guiomar. Argumento: Luis Bñuel e Jean-Claude Carrière. Fotografia: Christian Matras. França / Itália, 1969, Cores, 102 min.

 


quarta-feira, 24 de junho de 2020

Sobre o filme «O Anjo Exterminador» de Luis Buñuel, 1962





 






Talvez ainda mais livre que «Veridiana», realizado um ano antes, por corromper os códigos narrativos. Ainda mais “surrealista” que «Um Cão Andaluz» (1929) ou «A Idade do Ouro» (1930) por ausência de regras impostas previamente, esta é uma fábula que contém todas as virtudes de uma parábola bíblica que se repete, de uma história infantil que se conta, várias noitesseguidas, para adormecer. E para amedrontar.

Um grupo de comensais da alta sociedade é convidado para uma ceia na casa de um dos casais, após uma noite na ópera. Tudo parece correr de feição quando os criados sentem, nessa noite, uma irreprimível necessidade de se ausentarem à socapa. O urso parece estar contente. Os carneiros devem sair imediatamente debaixo da mesa e ir para o quintal. A ceia será servida do fim para o princípio. O problema surge quando, por um acto de boa disposição, de má educação, ou impedimento não factual, os convivas resolvem ficar, todos, a pernoitar no salão nessa noite. E na noite seguinte. E na noite seguinte… Não há volta a dar, estão encarcerados. Ninguém pode também lá entrar.

O absurdo aqui é levado por essa linha de história onírica que ninguém parece dominar, excepto se usar a repetição inicial. Os convivas entram duas vezes em cena, os amigos cumprimentam-se várias vezes como se fosse a primeira. O palco prepara-se para receber a sonata de Paradisi. O palco está pronto para o confinamento e para a morte. Porém, tudo pode regressar ao bem final. Igualmente, tudo pode regressar ao mal inicial. E os carneiros entrarão, de novo, na igreja pelo adro.

jef, junho 2020


 «O Anjo Exterminador» (El Ángel Exterminador) de Luis Buñuel. Com Silvia Pinal, Jacqueline Andere, José Baviera, Augusto Benedico, Luis Beristáin, Antonio Bravo, Claudio Brook, César del Campo, Rosa Elena Durgel, Lucy Gallardo, Enrique García Álvarez, Alberto Roc, Ofelia Guilmáin, Juana Avila, Nadia Haro Oliva, Tito Junco, Xavier Loyá, Xavier Massé, Ofelia Montesco, Patricia Morán, Patricia de Morelos, Bertha Moss, Enrique Rambal, Pancho Córdova, Ángel Merino, Luis Lomelí. Argumento: Luis Buñuel e Luis Alcoriza baseado na obra de José Bergamin “Los Naufragos de la Calla Providencia”. Produção: Gustavo Alatriste. México, 1962, P/B, 93 min.


terça-feira, 23 de junho de 2020

Vespa-asiática, vespa-de-patas-amarelas Vespa velutina Lepeletier, 1836









A história da vespa-asiática é comum a tantas outras espécies exóticas que se tornaram invasoras ao serem transportadas, voluntária ou involuntariamente, do seu ecossistema, escapando-se e desenvolvendo as suas populações, depois, de modo exponencial, no novo meio, favorável e, ainda, na ausência do controlo dos seus predadores naturais. O facto de ser um animal não solitário torna ainda mais preocupante a sua presença.

Das várias subespécies deste himenóptero da família Vespidae, a Vespa velutina nigrithorax foi assinalada oficialmente pela primeira vez em França em 2004. Provavelmente, importada acidentalmente numa mercadoria de bens alimentares vinda da Ásia. A sua distribuição asiática estende-se pelas regiões tropicais e subtropicais do Norte da Índia e do Leste da China, Indochina e Indonésia, por zonas montanhosas de clima ameno, adaptando-se assim, com facilidade, ao clima temperado do Sul da Europa.

A partir da região de Lot-et-Garonne, entre Bordéus e Toulouse, ocupou rapidamente o Sudoeste de França. Em 2010 surgiu no Nordeste de Espanha. Em 2011 chegou à catalã Girona e, no ano seguinte, à Galiza.

A vespa-asiática é bem distinta da vespa-europeia Vespa crabro Lineu, 1758. É um insecto bastante escuro e um pouco maior do que a congénere autóctone. As obreiras medem entre 17 e 32 mm conforme as características do alimento disponível, enquanto a rainha chegará aos 35 mm de comprimento. O corpo é aveludado e sombrio, assim como os dois pares de asas e as patas castanhas cujas extremidades são amarelo vivo, facto que a nomeia e distingue. Cor que também apresenta em alguns segmentos gástricos e numa banda dorsal do quarto segmento do abdómen. A cabeça é preta com faces amarelo-alaranjado.

Em Setembro de 2011, na região de Viana do Castelo, a espécie invasora foi confirmada pela primeira vez em Portugal por entomólogos e apicultores. O investigador José Manuel Grosso-Silva e o apicultor Miguel Maia (Associação Apícola Entre Minho e Lima) confirmaram que dali os núcleos se expandiram pelo Noroeste e Centro de Portugal. Actualmente, apenas o Baixo Alentejo e o Algarve ainda não foram atingidos mas a sua ocupação será, muito provavelmente, inevitável. Pretende evitar-se que os arquipélagos dos Açores e da Madeira sejam atingidos.

Como as outras vespas, o seu ciclo de vida é anual e inicia-se na Primavera, quando a rainha jovem acorda da hibernação, escondida ao abrigo do mau tempo mas fora do ninho, em árvores, no solo ou em fissuras de rochas. Em Fevereiro-Março, a rainha fundadora e fecundada irá em busca de alimento nutritivo à base de açúcares com que se alimenta, procurando abrigo numa árvore oca ou numa construção onde iniciará a postura, fundando a colónia, alimentando as larvas, entretanto nascidas, com alimento proteico vindo das incursões de caça a colmeias de abelhas domésticas Apis mellifera Lineu, 1758, mas também de outras vespas, moscas e demais artrópodes (em meio urbano, é frequente o relato das suas visitas a talhos.) É, deste modo, iniciado o ninho primário à base de fibras de celulose mastigadas, esférico e de tamanho maior do que uma bola de ténis.

A partir de Abril-Maio com o nascimento das fêmeas obreiras a colónia recrudesce e mover-se-á para um ninho definitivo, geralmente suspenso de ramos de uma árvore alta, podendo superar os 80 cm. Estes ninhos são claros e têm uma forma arredondada, como uma gota, possuindo uma abertura lateral como saída.

Em Setembro-Outubro, a colónia atinge o número máximo de indivíduos que pode ir até 13.000 onde se incluem as potenciais rainhas fundadoras, que poderão chegar a algumas centenas. Em média, cada colónia pode gerar seis novos núcleos. Nascem os machos (um pouco maiores que as obreiras) e as fêmeas sexuadas. Realiza-se a fecundação. Outono avançado, as futuras rainhas deixam o ninho que será abandonado, no Inverno, por morte da rainha fundadora, dos zangãos e das obreiras. Nessa altura, as novas rainhas hibernarão. Em Portugal, constatou-se que o vespeiro, se a temperatura assim o permitir, poderá continuar activo até à Primavera seguinte. Degradando-se com as intempéries, o ninho não volta a ser ocupado.

A vespa-asiática não será mais agressiva quando isolada, nem será possuidora de um veneno mais activo do que o da vespa-europeia; mas será mais agressiva na defesa do ninho, o que obriga a cuidado redobrado. A subespécie que ocorre em Portugal parece ser menos agressiva do que as outras 14 subespécies. Contudo, ainda sem predadores naturais como certas aves insectívoras, as suas características vorazes de predação de abelhas domésticas e de outros polinizadores essenciais, principalmente durante o Verão, colocam em risco, para além da apicultura, de pomares e das culturas agrícolas, a diversidade biológica dos invertebrados nos diversos ecossistemas. Como nota, pode-se dizer que já existem referências de algum controlo por bútio-abelheiro Pernis apivorus, na Galiza.

Foi criada oficialmente em Portugal uma estrutura bastante alargada, denominada “Comissão de Acompanhamento para a Vigilância, Prevenção e Controlo da Vespa velutina” onde participam o ICNF, o INIAV e a DGAV (veterinária), a GNR-SEPNA, a Proteção Civil, a Direcção-Geral de Saúde, também as autarquias e os apicultores. Esta Comissão acompanha a implementação do "Plano de Ação para a Vigilância e Controlo da Vespa velutina em Portugal", que estabelece as acções a executar para alertar e minimizar os danos da invasão, das quais se destaca a recolha de avistamentos de vespas e ninhos em todo o território. As ocorrências devem ser reportadas a qualquer entidade de segurança ou autarquia, podendo também ser directamente registadas em STOPvespa (stopvespa.icnf.pt). Acima de tudo, a sequente destruição dos ninhos não deve ser feita de modo autónomo por quem os avista pois a sua perturbação ineficaz pode gerar um ataque por parte das vespas e a posterior disseminação. Assim, estas acções, em princípio nocturnas já que esta vespa é diurna e recolhe ao ninho pela noite, devem ser sempre executadas por profissionais (bombeiros, GNR-SEPNA, Protecção Civil).

É importante proteger as abelhas domésticas até que surjam predadores naturais para a vespa-asiática ou até aquelas aprenderem a proteger-se em redor da colmeia. Foi referido que familiares asiáticas envolvem o predador com diversos indivíduos batendo as asas energicamente provocando-lhe a morte pelo aumento radical de temperatura.

 

jef, junho 2020


* zoologia

domingo, 21 de junho de 2020

Sobre o livro «O Medo» de Stefan Zweig. Tradução: Alice Ogando. Livraria Civilização, 1951

 











Aqui se reúnem quatro das novelas de Stefan Zweig: «O Medo», «Revelação Inesperada de uma Profissão», «Leporella» e «O Alfarrabista Mendel». Em todas está contida a escrita daquele observador, filigranista de gema, que não deixa nada longe do escalpelo: as emoções, a cidade, a moral, o tempo e o modo da sociedade. Stefan Zweig, pan-europeu desinibido, culto e perspicaz, sensível e mordaz, a sua vida e a sua obra centralizam nostalgicamente tudo o que a Europa devia ser e, obviamente, hoje em dia não é. Um mundo culto, burguês, diletante, dir-se-ia despreocupado, talvez distraído ou pouco mobilizado, que se viu destroçado pelo vírus do holocausto que o nazismo disseminou.

Esse universo ideal e sem barreiras para a cultura e depois destruído de modo implacável, está descrito na comovente história do alfarrabista Jacob Mendel que se vê, pelo seu preciosismo amoroso às edições raras, vindas de toda a Europa, espoliado de toda a vida, dos livros, da memória:

«Depois parti, sentindo vergonha diante dessa pobre velha que ficara fiel àquele morto, tão simplesmente, tão humanamente. Pois ela, na sua candura, conservara piedosamente um livro para melhor se lembrar dele, enquanto eu havia esquecido Mendel durante anos, eu, que devia saber que os livros são feitos para unir os homens para além da morte e para nos defender contra o inimigo mais implacável da vida – o esquecimento.»

Em «Leporella» a história vai ao encontro da devoção e da entrega, quase irracionais, quase caninas, de um ser humano por outro. Uma paixão tão fatal e incompreendida que parece apenas receber a compaixão do narrador e, por via deste, de nós, leitores.

No segundo conto é a cidade de Paris que brilha de modo estonteante e despreocupado, fazendo-nos correr atrás de um observador recém-chegado à cidade e que, por passatempo, segue no encalço de alguém que luta contra a miséria. Segue-o para o compreender.

Interessante, em «O Medo», a diferença abismal da visão que Stefan Zweig nos dá da vida mimada de Irene Wagner, familiarmente microscópica, socialmente sem propósito, dissecada passo a passo, diria psicologicamente impressionista, dessa adaptação cinematográfica que Roberto Rosselini fará do texto, em 1954. Aqui desaparecem os laivos oitocentistas e moralmente compensadores e reaparece um ambiente germânico moderno, austero, quase conflituoso, impregnado de sombras e mistério, de silêncios e sombras expressionistas.

Nos textos de Stefan Zweig ressalta sempre uma acuidade narrativa no interior da sua grande humanidade, diria mesmo amabilidade, crucial. Essas são duas das razões que fazem dele um dos meus autores preferidos.


jef, junho 2020

 

 


sábado, 20 de junho de 2020

Sobre o livro «Deixa-te de Mentiras» de Philippe Besson. Sextante Editora, 2020 / (2017)

 









Pouco importa se o livro vem classificado como “autobiográfico” e se o autor dedica o livro a alguém com o mesmo nome do segundo personagem principal. Esta é a história contada por três datas: 1984, 2007, 2016, e contém uma arquitectura narrativa que transforma qualquer “história comum” num belo e emocional acto de leitura.

Realmente, é a história “comum” da atracção amorosa entre dois rapazes e que não pode (ou não quer) ser contada. Estamos na França rural, em 1984. De um lado, Philippe Besson, filho de professor, tímido mas dotado, entediado e convicto; do outro Thomas Andrieu, filho de agricultor, bela figura e fugidio, voluntarioso mas reprimido.

A páginas tantas um personagem revê num álbum as fotografias do casamento da mãe, que as vê regularmente, e diz: “deve gostar de se lembrar da sua juventude”, ao que o narrador omnisciente corrige entre parêntesis “ou então confunde juventude com felicidade; é uma confusão frequente.” Esta frase parece ser o corolário, tantas vezes repensado, de outra frase que lhe ficou gravada nas células, desde 1984: “Porque tu um dia hás-de partir e nós vamos ficar.”

Thomas prevê o futuro: Philippe tornar-se-á escritor famoso e completo, através dessa criação realista que é a ficção literária, a que a sua mãe objecta dizendo-lhe: “Deixa-te de mentiras!”. Thomas partirá.

Realmente, é a história “comum” de amor entre jovens homossexuais nos anos 80, antes do VIH surgir como alavanca de morte e transformação social.

Esta é a história “tão comum” de um primeiro amor.


jef, junho 2020


terça-feira, 16 de junho de 2020

Sobre o livro «O Atalho dos Ninhos de Aranha» de Italo Calvino. Portugália Editora, ? / (1947)



 








«O menino ri até às lágrimas, alegre e excitado: está como quer, no meio dos grandes, gente simultaneamente amiga e inimiga, gente com quem brinca até afogar aquele ódio que sente por eles. Não sente piedade: seria capaz de ferir sem misericórdia.»

 

O primeiro romance de Italo Calvino (1947) conta a história de Pin, o menino que vive entre as ruas e os becos de uma aldeia do Norte de Itália, perdida de si própria, entre os alemães invasores e as brigadas negras fascistas. Nas montanhas, um destacamento de partigiani está prestes a ser desmantelado por inoperacionalidade. Pin ver-se-á sozinho, novamente, e procurará a sua pistola P.38 roubada ao marinheiro alemão Frick e ainda escondida, pensa ele, lá onde as aranhas fazem ninho.

É inútil classificar este romance de “neo-realista”, apesar de revelar todo o empenho que Calvino devotou à resistência armada como partigiano. Seria tão neo-realista quanto «O Principezinho» de Antoine Saint Exupery (1943), «Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos» de Alves Redol (1962) ou «Vem e Vê», o filme de Elem Klimov (1985). Este romance contém esse cruzamento de grotesco filosófico, de desconcentração ficcional, de compreensiva incompreensão do género humano, que fazem seres únicos autores como Italo Calvino, Franz Kafka, Albert Camus ou Gonçalo M. Tavares.

Não se procure doutrina, placebos ou paliativos. Aqui condensa-se apenas a verdade sublinhada como fazia o coro grego quando exacerbava ou reprimia a acção por ver em palco. «O Atalho dos Ninhos de Aranha» contém o génio literário e a vocação, quase infantil, de Italo Calvino para escalpelizar a filosofia, a psicologia e o mundo do corpo humano.


«Isto é diferente do que se passa com todos os outros homens: ter inimigos, uma sensação nova e desconhecida para Pin. No beco havia gritos, discussões e injúrias entre homens e mulheres, dia e noite, mas não aquela amarga necessidade de inimigos, aquele desejo que não deixa dormir de noite. Pin ainda não sabe o que significa ter inimigos. Para ele, todos os seres humanos possuem algo de nojento como vermes e algo de bom e terno que atrai a companhia.»


jef, junho 2020


«O Atalho dos Ninhos de Aranha» (Il Sentiero dei Nidi di Ragno) de Italo Calvino. Tradução de José Manuel Calafate. Capa de Octávio Clérigo. O Livro de Bolso nº 3, Portugália Editora (1947) / ?. 248 pp.

 


quinta-feira, 4 de junho de 2020

Lobo-ibérico Canis lupus signatus Cabrera, 1907





(a fotografia vem do Grupo Lobo)


Lobo-ibérico Canis lupus signatus Cabrera, 1907


Este é um dos carnívoros com maior dimensão cultural. Temido, amado e, por isso, mítico. Esopo falava de um pastor que gritava falsamente por ajuda. La Fontaine colocava políticos a falar pelo animal, retóricos e matreiros. Os irmãos Grimm adoçaram a assustadora ira popular por um animal que representava a predação de rebanhos e a fantasia medrosa de uma floresta europeia e inóspita. Jack London admirava a sua obstinada capacidade de resistência.

Figura possante, membros altos, cabeça larga, focinho comprido, orelhas atentas, longa cauda, vivendo em alcateia, tem, de facto, um cariz literário e uma presença gregária de aristocrata. É um resistente porque se adaptou às condições mais agrestes da montanha para onde foi empurrado pela perseguição humana; também por ser um oportunista quanto à dieta alimentar.

Em Portugal, as alcateias foram recenseadas pela última vez em 2002/2003, localizando-se essencialmente a norte do rio Douro. A sul do Douro, sobreviviam menos de 10 alcateias.

Para a conservação das suas populações é premente atualizar o conhecimento do número e da situação das alcateias, pelo que está a realizar-se de um novo Censo Nacional que decorrerá até 2021 sob coordenação do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. Seis equipas foram selecionadas para fazer o levantamento da espécie nas possíveis áreas de ocupação: duas a sul do rio Douro, quatro a norte (Noroeste, Centro Norte, Nordeste e Terra Quente). Esta ação será financiada comunitariamente pelo Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (POSEUR).

O conhecimento atualizado é fundamental para assegurar a conservação deste grande carnívoro e do seu importante valor ecológico e cultural.

 

jef, maio 2020

*  zoologia


quarta-feira, 3 de junho de 2020

cavalos-marinhos Hippocampus sp.










Cavalo-marinho-de-focinho-comprido Hippocampus guttulatus Cuvier 1829

Cavalo-marinho-de-focinho-curto H. hippocampus Linnaeus, 1758


Cerca de cinquenta espécies de cavalos-marinhos da família Syngnathidae habitam os oceanos do planeta. Seres de aspeto pouco comum que a mitologia clássica logo associou aos imponentes Hipocampos, corpo de cavalo e cauda de peixe, transportando o deus dos mares, Posídon.

Não existe história infantil passada no mar que não coloque estes animais reais como figuras de fantasia. Realmente, são peixes sem escamas, de movimentos lentos e verticais, monogâmicos em cada ciclo reprodutor, olhar e mimetismo de camaleão, bolsa «marsupial» nos machos onde a fêmea deposita os ovos para que sejam fertilizados, expulsando-os depois, como juvenis (ou alevins). São muito fáceis de capturar e, por vezes, acabam envernizados, como amuleto ou bibelô.

Na Ria Formosa, segundo contagens de 2000, existia uma considerável comunidade das duas espécies fazendo invejar cientistas de outras paragens. Entre marés, canais de baixa profundidade e sapais, estes animais encontravam tranquilidade, refúgio e alimento, que muito comilões são de pequenos crustáceos. Mas em poucos anos as condições alteraram-se e as duas espécies viram as populações severamente reduzidas. A captura em massa para fins medicinais nos mercados asiáticos, a poluição sonora subaquática, o excesso da atividade turística, a sobre-exploração dos recursos, alterando os fundos marinhos dinâmicos e degradando as comunidades de plantas aquáticas, são fatores que contribuem para uma situação que exige fortes medidas de conservação.

Apesar da pesca dos cavalos-marinhos estar há muito proibida na área do Parque Natural da Ria Formosa, os seus técnicos e cientistas de outras instituições propuseram recentemente reservas específicas, entre outras medidas para a sua conservação. Acima de tudo, os cavalos-marinhos da Ria Formosa necessitam da consciência ambiental de todos os que desejam preservar um ecossistema tão rico mas tão vulnerável.


jef, 2020

*  zoologia


terça-feira, 2 de junho de 2020

Salamandra-lusitânica Chioglossa lusitanica Bocage, 1864







Salamandra-lusitânica, quioglossa Chioglossa lusitanica Bocage, 1864


Mais um caso da fauna autóctone e endémica que se tornou emblemática por ter características ímpares, por representar um ambiente ou um habitat restrito, por ser frágil e ameaçada tanto quanto o meio onde habita.

Dos anfíbios urodelos (com cauda), este surge sempre na primeira página dos compêndios da herpetofauna portuguesa. Com apenas uma espécie para o seu género, há muito que se distanciou da sua parente mais próxima que vive no Cáucaso e Ásia Menor, Mertensiella caucasica.

A longa cauda, que corresponde sensivelmente a dois terços dos seus 12 a 15 cm de comprimento, quando adulta, tem múltiplas funções: armazena nutrientes para a época de carência, variando a sua fisionomia ao longo do ano; ajuda na locomoção aquática e chama a atenção para os predadores, cobras-de-água, lontras ou sapos grandes, desprendendo-se para depois lentamente se regenerar (autotomia), como sucede em muitos lagartos.

Habitante do Noroeste da Península Ibérica, Astúrias, Galiza, Noroeste de Portugal, também do vale do rio Mondego com as serras do Buçaco, Lousã, Estrela e Açor, é nesses frágeis ambientes, pluviosos, oxigenados e frescos, até 1500 metros de altitude, perto de cursos de água ou minas musgosas, rodeados de vegetação ripícola e floresta autóctone, que encontra refúgio e local para a reprodução.


jef, junho 2020

* zoologia