sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Sobre o filme «A Caça» de William Friedkin, 1980


 


















 

Em William Friedkin é tão ou mais importante o que fica calado do que aquilo que é olhado, mesmo que as suas imagens sejam impossíveis de esquecer. Aqui, os diálogos parecem estar mais preocupados em ceder o protagonismo ao visual nocturno dos bares gay leather-bondage. As falas, à luz do dia, são entrecortadas por centésimos de segundo parafraseando os policiais americanos da série B ou C, em que o campo-contra-campo parecia ser uma questão exclusiva dos filmes de estilo. Os membros decepados na câmara frigorífica são risíveis. Contudo à noite, no parque, tudo se transforma visualmente, entre a contra-luz e sombras vegetais. Os planos são poéticos.

Steve (Al Pacino) é chamado à brigada de homicídios para descobrir o serial killer que tem vindo a atacar nesse meio, já que possui uma fisionomia próxima da das vítimas. Deixa a namorada Nancy (Karen Allen), sai de casa, muda de identidade e passa a vestir-se de cabedal. E vai tentando obter informações enquanto se apercebe dos códigos existentes naquela comunidade. Talvez até os vá compreendendo. Al Pacino pouco diz mas as imagens sobre as suas expressões ao longo do filme vão fazendo transferir a força das imagens leather-bondage para a eterna dúvida calada que é arrastada por cada ser humano.

Um filme único (à William Friedkin) com um actor extraordinário e que motivou a realização de um outro, «Interior. Leather Bar.» (2013), onde os  realizadores James Franco e Travis Mathews tentam encontrar, enquadrar e reinventar os cerca de 40 minutos de película que Hollywood censurou no filme de Friedkin. Talvez este um trabalho fracassado ou inglório, meio ficção meio reportagem, por vir talvez devassar um filme que não precisa de mais explicações além dos silêncios que Friedkin colocou na personagem de Al Pacino.

 

jef, setembro 2023

«A Caça» (Cruising) de William Friedkin. Com Al Pacino, Paul Sorvino, Karen Allen, Richard Cox, Don Scardino, Joe Spinell, Jay Acovone, Randy Jurgensen, Barton Heyman, Gene Davis, Arnaldo Santana, Larry Atlas, Allan Miller, Sonny Grosso, Ed O'Neill, Michael Aronin, James Remar, William Russ, Mike Starr, Steve Inwood, Keith Prentice, Leland Starnes. Argumento: William Friedkin segundo o romance de Gerald Walker Produção: Jerry Weintraub. Fotografia: James A. Contner. Música: Jack Nitzsche e Egberto Gismonti EUA, 1980, Cores, 102 min.


quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Sobre o filme «Debaixo das Figueiras» de Erige Sehiri, 2021

 


























Este filme tem três ou quatro características que maravilham. A primeira é a de falar sobre a condição feminina em paralelo com a condição masculina num país de tradição muçulmana, a Tunísia, transformando-as na génese social e política, económica e de direitos laborais da Condição Humana universal. Um intenso “romance-reportagem-documentário”.

A segunda é a de colocar todos os personagens a circular por baixo de um pomar de figueiras, aproximando a câmara da fotogenia daquelas raparigas e rapazes, deixando-os (nos) num limbo claustrofóbico mas em pleno ar livre. O cenário não oprime mas restringe. E é belo.

A terceira será o modo difícil de ir cruzando histórias, problemas, circunstâncias laborais e culturais, sem nunca fingir que está a educar ou elucidar. É uma espécie de peça teatral à Harold Pinter onde tudo está lá sem nunca ser explicitado.

Por último, o jeito de lançar os laivos da tragédia para, no entanto, tudo terminar no mais contemporâneo tom lúdico e livre com as protagonistas a cantar de regresso a casa, cabelos descobertos ao vento, após se maquiarem em conjunto alegremente.

Que bela surpresa!

 

jef, setembro 2023

«Debaixo das Figueiras» (Under the Fig Trees) de Erige Sehiri. Com Ameni Fdhili, Fide Fdhili, Feten Fdhili, Samar Sifi, Abdelhak Mrabti, Fedi Ben Achour, Firas Amri, Gaith Mendassi, Hneya Ben Elhedi Sbahi, Leila Ouhebi. Argumento: Erige Sehiri, Ghalya Lacroix e Peggy Hamann Produção: Palmyre Badinier, Didar Domehri, Erige Sehiri. Fotografia: Frida Marzouk. Música: Amin Bouhafa Tunísia / Suíça, 2021, Cores, 92 min.

 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Sobre o filme «O Crime é Meu» de François Ozon, 2023





















Sobre o assunto em epígrafe, podemos dizer que através do filme «O Veneno» de Sacha Guitry (1951) está tudo e melhor dito. A mais ácida comédia sobre o crime e o seu julgamento social e judicial, executada pela elevadíssima mestria da cinematografia francesa.

Sem dúvida, agora, o filme de François Ozon diverte, faz sorrir, delicia os olhos com belas mulheres e bons actores, e os ouvidos com cuidada banda sonora, apresenta decores no ponto para um filme que se passa por volta de 1935, além de um guarda-roupa de época e estilo. Talvez mesmo as cenas mais subtis tenham no centro esse magnifico actor Fabrice Luchini a fazer de juiz burocrata, Gustave Rabusset, de senso um tanto lerdo mas deslumbrado pelo próprio estatuto. Claro que também temos as actrizes Nadia Tereszkiewicz, representando Madeleine Verdier, uma, actriz de baixo recorte, e Rebecca Marder, a advogada Pauline Mauléon de causas menores, que partilham um modesto apartamento e vivem a tinir sem dinheiro. E também, Isabelle Huppert, uma híper-caricaturada vedeta expressionista do cinema mudo pouco adaptada ao sonoro, Odette Chaumette.

Tudo parece ir no bom sentido, tudo parece estar bem encadeado e divertido quando, à beira do final, as coisas perdem folego, ficam sem brilho, as personagens vão desaparecendo do filme. Uma pena!

Muita e bela parra para tão pouca e desenxabida uva.


jef, julho 2023

«O Crime é Meu» (Mon crime) de François Ozon. Com Nadia Tereszkiewicz, Rebecca Marder, Isabelle Huppert, Fabrice Luchini, Dany Boon, André Dussollier, Édouard Sulpice, Régis Laspalès, Olivier Broche, Félix Lefebvre, Franck de la Personne, Evelyne Buyle, Michel Fau, Daniel Prévost, Myriam Boyer, Jean-Christophe Bouvet. Argumento: François Ozon. Produção: Eric e Nicolas Altmayer. Fotografia: Manuel Dacosse. Música: Philippe Rombi. Guarda-roupa: Pascaline Chavanne. França, 2023, Cores, 102 min.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Sobre o filme «Um Amor na Escócia» de Bouli Lanners, 2022
























Não sei quantos espectadores terão assistido a este filme, em ecrã grande e sala colectiva. Cheira-me que é dos que passam perfeitamente incólumes apesar da presença radical das duas personagens principais: Millie MacPherson, a tia, irmã e filha solteirona, delicada e reprimida “rainha do gelo”, e Philippe Haubin, de passado obscuro, um grande e poderoso trabalhador nas propriedades da família MacPherson, detentora de um rebanho de ovelhas em certa ilha escocesa. Um AVC faz perder a memória ao solitário Philippe e Millie, solitária e solidária, aproxima-se para o ajudar.

Um filme terno e compreensivo que coloca em confronto permanente o poderoso actor (e realizador) Bouli Lanners com a ténue Michelle Fairley, num filme talvez demasiado rápido, sem dar tempo a que a história se espraia e o espectador desfrute. Demasiado centrado nas duas figuras. Mas dois bons actores, personagens carismáticas (quase caricaturais), uma bela fotografia não bastam.

Contudo, logo no início e, mais tarde, quase no final, duas peças de diálogo fazem crescer o filme. Primeiro, discute-se (em voz off) a dificuldade da missa ao domingo que contrapõe o vento do costume à improbabilidade dos chapéus que, ali, as mulheres usam por hábito. Depois, uma belíssima declaração de amor à mentira mais piedosa e sofisticada.

Só por estes pormenores vale a pena ir espreitar um filme que tem (e já nos tínhamos desabituado ao lirismo dos títulos vertidos para português) uma das versões portuguesas mais delicodoces de sempre.


jef, setembro 2023

«Um Amor na Escócia» (Nobody Has to Know) de Bouli Lanners. Com Michelle Fairley, Bouli Lanners, Andrew Still, Julian Glover, Cal MacAninch, Ainsley Jordan, Clovis Cornillac, Anne Kidd, Donald Douglas, Therese Bradley, Paul Amed. Argumento: Bouli Lanners, Stéphane Malandrin. Produção: Jacques-Henri Bronckart. Fotografia: Frank van den Eeden. Música: Pascal Humbert, Sébastien Willemyns. Guarda-roupa: Elise Ancion. Escócia / Bélgica / França, 2021, Cores, 100 min.

         

sábado, 2 de setembro de 2023

Sobre o filme «A Infância Nua» de Maurice Pialat, 1968



 

























O que impressiona nesta obra-prima, a primeira longa-metragem de Maurice Pialat, é a capacidade de construir um documento único sobre a realidade, portanto inclassificável, utilizando todos os métodos do drama clássico. Maurice Pialat mostra-nos uma história real através de uma extraordinária matéria narrativa a que, se fosse um discurso, poderíamos chamar pathos, esse objecto que faz certo tema aproximar-se da consciência através do nosso coração. (A minha memória traiçoeira lembra-se de Manoel de Oliveira, John Cassavetes, Abbas Kiarostami ou Abdellatif Kechiche, nesse modo tão sintomático de nos mostrar o lado ternamente obscuro da infância, da juventude e da família.)

Sim! Acima de tudo comovente a história do menino de dez anos, François (Michel Terrazon) condicionado pelo método de adopção temporária (por oposição da mãe relativamente à adopção definitiva) que o deixa à mercê da violência do próprio rancor e da maldade mais crua. Até ser adoptado pelo terno e velho casal Minguet (Marie-Louise Thierry e René Thierry), onde também vive uma avó, Mémère la Vieille (Marie Marc), com a qual François descobre uma amizade mais forte do que a sua intrínseca revolta.

Ainda toda a história da France contemporânea parece estar aqui a ser contada.

Tudo neste filme é teatral mas custa a crer que o seja. Por ali existe um realizador invisível, uma câmara de filma inexistente, mas todos se colocam em cena como um palco ou uma tragédia grega.

Mas sem oferecer no final o deus ex-machina !


jef, setembro 2023

«A Infância Nua» (L'Enfance-Nue) de Maurice Pialat. Com Michel Terrazon, Linda Gutenberg, Raoul Billerey, Pierrette Deplanque, Marie-Louise Thierry, René Thierry, Henri Puff, Marie Marc, Maurice Coussonneau. Argumento: Arlette Langmann e Maurice Pialat Produção: Vera Belmont, François Truffaut e Claude Berri. Fotografia: Claude Beausoleil. Música: Gabriel Chwojnik. França, 1968, Cores, 83 min.

 

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Sobre o livro «O Hóspede de Job»» de José Cardoso Pires. Moraes Editores, 1975 (1963).










Esta é uma história simples, uma história sobre um Alentejo longínquo, talvez um Alentejo ainda hoje lonquínquo. Uma terra onde diversas pessoas sobrevivem num cenário que é, o próprio, o personagem determinante, condicionante que obriga as gentes a longos percursos ao sol a pique ou ao luar e sombras, que os obriga aos pensamentos e ao silêncio. Diversos contos, como parábolas bíblicas ou episódios quixotescos, cruzam-se, mais próximos ou mais afastados do polígono militar de Cercal Novo. Também rondando Cimadas com a revolta das mulheres, a taberna ou o poço onde a Guarda prende os cavalos e vigia os suspeitos que os vigiam; rondando o Lavre, Montemor, Beja, onde o espectro dos malteses famintos, em demanda por trabalho, se cruza com o dos ciganos. Aqui são todos nómadas. Seguimos os passos de Aníbal que segue ele a fraqueza do Portela. Aníbal deseja ir reclamar a pensão por sustento já que lhe levaram Abílio, o filho-soldado. O Portela talvez um dia se decida a vender os folhetos de Abílio com as lendas e narrativas de reis, fidalgos e corcundas…

Tudo escrito com a beleza e o rigor de frases sumárias, de diálogos cortantes, infalíveis. Acima de tudo, a história de uma amizade sustentada apenas na ternura respeitosa que vem obrigada de tal solidão maior.

Um romance talvez mais naturalista do que neorrealista.

Um romance de uma candura maravilhosa, sob a escrita milimétrica do escritor. Do eterno José Cardoso Pires.


jef, setembro 2023