segunda-feira, 18 de março de 2024

Sobre a peça «A Beleza das Empregadas Domésticas» de Manuel Jerónimo, 2024



















Na peça existe uma latente inquietude, uma estratégia da aranha por definir. Porém, uma inquietação estratégica há muito definida, talvez mesmo vinda dos tempos homéricos ou bíblicos. Será que a suspeição e a desconfiança nasce do próprio útero da família? Caim e Abel não eram propriamente amigos. Será que a estrutura carnívora da sociedade capitalista (talvez da sociedade comercial de todos os tempos) não vem lucrar com essa espécie de doença familiar? Não se prontificou logo Abraão, o obediente chefe de todas as tribos, a encostar a navalha à carótida do seu amado filho, Isaac?

Afinal, que Anjo Caído (Manuel Jerónimo) poderá impor a justiça capitalista, qual Salomão, no negócio das duas irmãs: Marta (Juana Pereira da Silva) e Maria (Diana Costa e Silva)? Será ele mesmo o rei do lazer e da limpeza, o patrono das empregadas domésticas?

E nós espectadores como iremos compreender tal discrepância moral, melhor, como poderemos saber: quem nasceu primeiro o ovo ou a serpente?

Uma figura desce, Deus ex-maquina, D. Ana (Leonilde Melo), e conta-nos o reverso da medalha, o interior do ovo, a estrutura afectivamente amarga da dita sociedade.

Tudo parece estar contido no interior desta peça. Simples e complexa. Poderosa. Agarrada por três valentes actores!


jef, janeiro 2024

«A Beleza das Empregadas Domésticas». Texto e Encenação: Manuel Jerónimo. Com Diana Costa e Silva, Juana Pereira da Silva, Leonilde Melo e Manuel Jerónimo. Desenho de Luz e Operação Técnica: João Rafael da Silva. Produção: Vanessa Moreira. Promotor: Boutique da Cultura. 90 minutos

 

sexta-feira, 15 de março de 2024

Sobre o filme «Culpado–Inocente–Monstro» de Hirokazu Kore-eda, 2023

 



















Hirokazu Kore-eda, o realizador de «Ninguém Sabe» (2004) ou «Andando» (2008) e desse sentimento (ou noção) de família a um passo da queda entre a inquietude, o abandono e a morte, surge agora com uma espécie de trilogia onde a história é olhada por três diferente ângulos: o da mãe-viúva, Saori (Sakura Ando), o do professor, Hori (Eita Nagayama) e o do miúdo, Minato (Soya Kurokawa). 

No início permanece o incêndio num prédio onde funcionava uma casa de alterne e surge uma suspeita que se vai adensando e desvanecendo durante o filme, por entre uma violência iminente mas de certo modo contida por respeito e tradição. Contudo, a explicação só a teremos na derradeira cena do terceiro capítulo. Uma história onde se cruza o sistema de ensino primário japonês com a permanente busca de uma tranquilidade num universo transformado. Aqui, a aproximação de duas crianças que se procuram na busca de um conforto que não encontram nas suas famílias incompletas. Uma procura que inclui talvez o ainda incipiente desejo-rejeição da proximidade física.

Muito interessante é o lema narrativo de contar os factos pela visão diversa dos três protagonistas, pelo meio da qual se completa ainda o percurso dos personagens que os rodeiam.

Menos interessante é a excessiva complexidade de pormenores (trejeitos) que parece aparecerem somente para adensar a intriga, retirando a atenção do essencial. Também seria preferível não explicar tudo. Cada um de nós, espectadores, então completaríamos a história à sua maneira.

No fundo, todos serão violentamente inocentes.


jef, março 2024

«Culpado–Inocente–Monstro» (Kaibutsu) de Hirokazu Kore-eda. Com Sakura Ando, Eita Nagayama, Soya Kurokawa, Hinata Hiiragi, Mitsuki Takahata, Akihiro Kakuta, Shido Nakamura, Yuko Tanaka. Argumento: Yûji Sakamoto. Produção: Megumi Banse, Minami Ichikawa. Fotografia: Ryuto Kondo. Música: Ryuichi Sakamoto. Japão, 2023, Cores, 127 min.

 

quarta-feira, 13 de março de 2024

Sobre a peça «Girafas» de Pau Miró, 2024. Artista Unidos. Teatro da Politécnica





















Será que podemos comparar esta peça àquela outra de Tennessee Williams «Jardim Zoológico de Cristal (ou de Vidro)» não apenas pela fragilidade zoológica? Também por uma sociedade encerrada psicologicamente dentro de uma família que se consome a si própria entre demências, silêncio e tristeza em projecções de sonhos por consumar? 

Um véu encobre eternamente o desejo de futuro e a metáfora pura das girafas que é deixada para o espectador definir – animais altivos, difíceis de predar, mas psicologicamente permanecendo no dilema de serem presas prontas para serem capturadas. Ou abandonadas pelo desejo que vão calando.

Uma novíssima máquina de lavar roupa é esse futuro projectado num holograma de sedução por cima da pacata vida familiar. O vendedor quer vender, a mulher quer esse espaço de liberdade, o irmão quer evadir-se e conquistar um espaço aéreo que seja apenas seu e para a sua memória maternal, o hóspede vive na esperança de se transformar numa Edith Piaf parisiense em busca encantada do seu “Milord”. O marido insiste na falsa e medíocre noção de estabilidade centrada na sua prepotência. Um filho chegará. É obrigatório tentar de novo.

A ditadura franquista (a ditadura salazarista), os anos 50 e o pós-guerra, a depressão económica das famílias, a invasão pelo plano Marshall e pela nova tecnologia americana que chegaria para abrilhantar os lares europeus libertando as donas de casa da tirania doméstica. 

Falsa promessa. Falsa libertação. As girafas continuaram a ser predadas.


jef, janeiro 2024

«Girafas» Texto: Pau Miró. Tradução: Joana Frasão. Encenação: Nuno Gonçalo Rodrigues. Com: Eduarda Arriaga (a mulher), Gonçalo Norton (o irmão), João Vicente (o hóspede), Pedro Caeiro (o marido) e Vicente Wallenstein (o vendedor de máquinas de lavar roupa). Cenografia e Figurios: Rita Lopes Alves. Desenho de Luz: Pedro Domingos. Desenho de Som: André Pires. Produção: Artistas Unidos / Teatro da Politécnica. 90 minutos

 Teatro da Politécnica de 7 a 30 de Março de 2024

3ª a 5ª às 19h00 | 6ª às 21h00 | Sáb às 16h00 e às 21h00

sexta-feira, 8 de março de 2024

Sobre o livro «Clarissa» de Erico Veríssimo, Livros do Brasil – 5.ª edição (? / 1933)










Os livros esquecidos não são propriamente livros perdidos. Numa conversa com um amigo meu brasileiro veio à baila um livro que estava esquecido entre bastantes outros do autor na segunda fila de uma das prateleiras da estante. Um livro encontrado. Um velho livro nunca lido mas que a minha mãe assegurava ser um dos seus livros preferidos. Eu nunca o havia lido talvez pela simples razão dos livros se atrapalharem uns aos outros infinitamente, quando a escolha múltipla chega ao caos da leitura.

Por uma razão afectiva peguei nele de imediato, agora que já não posso discutir com a minha mãe as razões da sua escolha. Li-o com a paixão que o livro transporta reconhecendo nele um dos temas primeiros, senão mesmo o primeiro, da literatura de todos os tempos – A viagem iniciática da criança que chega à adolescência e, nesta, se confronta com o mundo adulto.

Li-o acima de tudo com o vigor e a comoção de agora melhor entender o íntimo da minha mãe nesse possível retrato de Clarissa, uma criança de treze anos à beira de poder calçar sapatos de salto quando chegar aos catorze, apartada, porque estuda, da casa de seus pais, da liberdade da fazenda, da sua vaca de estimação, dos banhos no rio. Contudo, na pensão da Tia Zina, em Porto Alegre, vai encontrar novos e ternos motivos de alegria e descoberta, em descrições tão pormenorizadas e enfáticas que nos deixam a um breve passo real do crepúsculo sobre o jardim da pensão, situada esta entre um casarão vistoso de ricos e a casa da pobre viúva Dona Tatá que mora com o seu filho único Tonico que arrasta a sua deficiência numa cadeira de rodas.

Clarissa olha esse mundo com espanto, alegria e inocência e entre aquelas duas casas, na sala de refeições da pensão juntam-se todos os hóspedes e comensais discutindo o Brasil e o Mundo dos anos trinta do século passado. Convocam a sociedade inteira, brandindo argumentos sobre todos os conflitos contemporâneos, toda a religião, todo o cinema, toda a solidão, todo o desejo inicial e reprimido. Em modo luminoso, humorístico, descritivo, comovente, intuitivo.

De imediato, lembrei-me visualmente da estrutura e do silêncio observador dos filmes de Jacques Tati, apesar do permanente, intenso e circunstanciado diálogo que ocupa grande parte do livro. Jacques Tati era outros dos artistas que a minha mãe quase venerava.

E depois existe aqui um apreço maravilhoso pelo minúsculo, pela partícula, pelo infinitesimal que ocupa (ou também devia ocupar) estrategicamente o nosso dia-a-dia. O grito do papagaio Mandarim. As voltas no brilho aquoso do peixinho Pirolito. O perpétuo andar no silêncio do gato Micefufe. Sem contar com as formigas no canteiro das margaridas e dos craveiros. (Os malmequeres eram as flores preferidas da minha mãe, a que mais tarde se juntaram certos cravos vermelhos.)

Este é o dom dos livros e o mistério de «Clarissa». Um dom misterioso que só através da nossa memória lida e do afecto por ela construído pode ser revelado.

«Clarissa» de Erico Veríssimo será um grande livro esquecido mas nunca perdido.


jef, março 2024

quinta-feira, 7 de março de 2024

Sobre o disco «Fetch The Bolt Cutters» de Fiona Apple, Epic, Clean Slate/ Sony, 2020

 











Nos discos de Fiona Apple temos a certeza de que encontraremos as palavras que identificam a eternidade de uma compositora: Liberdade, Rebeldia, Simplicidade, Independência, Improvisação, Intuição, Absurdo. Ou, então, Vocação para a Cantiga Inclassificável do Dia-a-Dia.

Lembro-me, assim de repente, de mulheres suas congéneres, mulheres-monumento: Meredith Monk, Karen Mantler, Patti Smith, PJ Harvey, Leyla McCalla.

Os discos de Fiona Apple são para serem usados, não apenas para serem ouvidos. Este em particular. 

As 13 canções de «Fetch The Bolt Cutters» foram idealizadas e gravadas durante o confinamento da COVID 19, num acto de pura libertação enclausurada. A percussão é imediata, caseira, sincopada, interrompida pelo ladrar dos cães e dos sons improváveis. Um disco feito com a prata da casa, que parece saído de algum estúdio independente, jovem e africano, onde a desafinação e a palavra dita fazem parte da força como a de um trovão que é assumidamente percutido. Um ritmo forte e doméstico onde todos participam: Fiona, Sebastian Steinberg, David Garza, Amy Aileen Wood.

Fiona Apple tem o dom de transformar a experiência em canção, numa canção mascarada de trajes tradicionais, quase folk, quase rock, quase jazz, quase soul, quase country, quase spoken word, quase canção feminista para despertar a criança que se pretendeu embalar. 

Afinal, acredito, um disco que as crianças gostarão muito de o ouvir.

Um disco que se gosta ainda mais se, além de o usarmos, o dançarmos.

Atenção à oitava faixa “Ladies”.


«Ladies, ladies, ladies, ladies

Ruminations on the looming effect and the parallax view

And the figure and the form and the revolving door that keeps

Turning out more and more good women like you

Yet another woman to whom I won't get through

Ladies, ladies, ladies, ladies, take it easy

When he leaves me, please be my guest

To whatever I might've left in his kitchen cupboards

In the back of his bathroom cabinets

And oh yes, oh yes, oh yes

There's a dress in the closet

Don't get rid of it, you'd look good in it

I didn't fit in it, it was never mine

It belonged to the ex-wife of another ex of mine

She left it behind with a note, one line, it said

"I don't know if I'm coming across, but I'm really trying"

She was very kind»


jef, março 2024

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Sobre o filme «Os Excluídos» de Alexander Payne, 2023

 
















Ver um filme de Natal em tempos de Quaresma é coisa muito interessante. 

Por outro lado, é bom ver um filme de Natal verdadeiramente clássico, daqueles que misturam a comédia e a lágrima de modo muito assertivo, onde se confrontam os tradicionais valores americanos (e do Ocidente e do Mundo) com esse modo dramático de os colocar em confronto com a situação psicológica e social de uma América do início dos anos 70 do século passado: uma mãe negra, gorda, cozinheira-chefe num colégio interno, que perdeu o filho na guerra do Vietnam, Mary Lamb. Uma bela mulheraça interpretada por Da'Vine Joy Randolph. Um aluno rebelde, magro, depressivo e angustiado, Angus Tully, que, por razões provocadas pela sua nova família, fica retido nas férias de Natal naquele inóspito colégio, interpretado pelo magnífico Dominic Sessa, que para seu maior azar, fica sozinho sob a vigilância do não menos inóspito professor de História Clássica, Paul Hunham. Quem dá corpo a esse terceiro ser rejeitado, entre o rancor, o álcool e a defesa pela justiça no Mundo, é o maravilhoso Paul Giamatti.

Ver um óptimo filme americano de Natal fora de época é bom! Faz pensar nos filmes de Frank Capra que são vistos por toda a família, que fazem lagrimejar e entusiasmar, onde a discriminação, a solidão, o abandono (ou a doença ou a guerra), lá aparecem mas dentro de uma comédia para os fazer sublinhar e melhor os compreendermos.

Fez-me relembrar que os filmes podem ser belos, éticos e inteligentes, realizados com subtileza e mestria, sem terem de nos massacrar com litros de sangue e ignomínia barata. Aqueles que eram vistos por todos com alegria. Vem-me logo à memória «O Milagre da Rua 8» (Matthew Robbins, 1987), «Always» (Steven Spielberg, 1989) ou «Os Ricos e os Pobres» (John Landis, 1983). 

Enfim, gosto de ver filmes de Natal em época de Paixão.


jef, fevereiro 2024

«Os Excluídos» (The Holdovers) de Alexander Payne. Com Paul Giamatti, Da’Vine Joy Randolph, Dominic Sessa, Carrie Preston, Brady Hepner, Ian Dolley, Jim Kaplan, Michael Provost, Andrew Garman, Naheem Garcia, Stephen Thorne, Gillian Vigman, Tate Donovan, Darby Lee-Stack, Bill Mootos, Dustin Tucker, Juanita Pearl. Argumento: David Hemingson. Produção: Bill Block e David Hemingson. Fotografia: Eigil Bryld. Música: Mark Orton. Montagem: Kevin Tent. EUA, 2023, Cores, 133 min.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Sobre o disco «Multitudes» de Feist, Polydor / Universal, 2023


 


















Após «Pleasure» (2017), essa espécie de abraço à pop lançada sobre o rock, as longas faixas conceptuais, de espírito sinfónico, e os coros a prolongarem-se pelo fim das canções, ao fundo dos estúdio-palco, Leslie Feist aterra na balada mais pop quase folk, ou vice-versa, (não esquecer as colaborações que a cantora tem tido com os noruegueses Kings of Convenience).

São 12 canções quase lineares a tocar o passado e o reflexo que ele tem constantemente no presente. Nós e o outro num lugar onde a presunção de mantermos o equilíbrio, exactamente com o outro, é posto diariamente em causa:

«How can I know what to do?

What´s harder that finding my place in the truth

Is to keep it a secret once I do

‘Cause it might hurt someone more than I would want to».

A Terra, a Mulher, os Amigos Tristes, a Solidão, a Tentativa Reiterada, o Amor Fugitivo, a Morte, o Futuro e a Esperança numa produção muito simples, quase acústica, a lembrar a bela, híbrida e melódica transgressão feminina de Leyla McCalla, Haley Heynderickx, Fiona Apple ou das irmãs Ibeyi.

Tudo está aqui a descoberto e encantado nas canções de Feist no interior de um álbum íntegro e adulto.


jef, fevereiro 2024