Um dos aspectos imprevistos na leitura é esse fio conductor,
quantas vezes fantasioso, que a memória exibe quando confrontada com o silogismo
comparativo de uma sequência de livros lidos.
O facto é que, por acaso ou sugestão literária, li «Hotel
Savoy» de Joseph Roth logo a seguir a «Clarissa» de Erico Veríssimo. Enquanto
Clarissa, treze anos, quase catorze, vai residir na pensão da tia Eufrasina
para estudar em Porto Alegre, no Brasil, Gabriel Dan, judeu vienense, libertado
de um campo onde esteve prisioneiro nos confins da Rússia, pelo fim da primeira
guerra mundial, pretende regressar a casa e, em trânsito, reside no Hotel Savoy.
O livro do autor brasileiro é de 1933 enquanto o de Joseph
Roth é de 1924. Ambos colocam todas as cores da sociedade, entre o vislumbre
da esperança e o do desalento, dentro da campânula asséptica que é a estadia temporária
num hotel. Daí tudo pode ser observado sem que essa observação nos devolva a sua
crítica, tudo pode ser comentado porque o futuro virá mas já estaremos num
lugar diverso.
Gabriel Dan vai descansar e verificar como os ricos vivem nos
quartos dos pisos inferiores e os pobres e emigrantes mal se acomodam nos
andares superiores, muitos dos quais empenhando as bagagens a Ignatz para ali poderem
pernoitar. Existem greves e revolucionários, burgueses e magnates americanos
que prometem mundos e fundos mas são descobertos a visitar locais longínquos no
cemitério. São também encontrados uns triplos gémeos que procuram financiamento
para trazerem para a cidade a produção de objectos de diversão. Existe ainda o
bar da senhora Jetti Kupfer, onde os donos das fábricas brindam com raparigas
nuas, mas a bela Stasia, que entra na Sala das Cinco da Tarde, não presta
atenção a Gabriel, nem amor. No teatro Variedades há um número gratuito de
sucesso: no centro está August, o
burro de Santschin, que é animal inteligente e sensível. A toda a
volta do Hotel existe um imenso bairro de lata com grevistas miseráveis prontos
para a revolução.
Ainda há uma particular atenção às cores das luvas e ao modelo dos sapatos.
Uma escrita directa, poética, descritiva, sarcástica, alegre
e triste ao mesmo tempo. Crónica do mundo real contada com toda a fantasia
possível.
Como se Gabriel Dan visse tudo, sentisse tudo mas não se
importasse com nada pois o mundo não se importa com ele. Como o anjo, vinha
da guerra e só queria partir. Como um certo Hans Castorp, que ia para a guerra,
colocado dentro de uma certa «Montanha Mágica» (Thomas Mann, 1924), calcorreando
os corredores de «Shining» (Stanley Kubrick, 1980) ou os esconsos sem fim de «Twin
Peaks» (David Lynch, 1992), atrás das horas perdidas do coelho de Alice.
jef, abril 2024
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