domingo, 31 de maio de 2020

Sobre o filme «Chapéu Alto» de Mark Sandrich, 1935.










Não é preciso muito para descobrir que «Chapéu Alto» contém toda a alma de Fred Astaire. Esse lado de dançarino estratosférico que faz invadir o palco e os cenários de ternura e galhardia, comédia e teatro, afastando-se desses musicais “populistas” e “megalómanos”, onde surgiam exércitos de bailarinos “marchando” como se quisessem chegar mais depressa à Segunda Guerra sem quererem, todavia, contar história alguma.

Não. Com Fred Astaire (Jerry Travers) a coreografia não é louca nem ausente de emotividade e teatralidade. A história começa logo com ele a reparar o erro de acordar a hóspede do andar de baixo Ginger Rogers (Dale Tremont) fazendo um suave sapateado sobre serradura para a adormecer – «No Strings (I’m Fancy Free)». Depois conduz Miss Tremont de caleche até ao parque, onde rebenta a trovoada chuvosa , ela assusta-se, cai-lhe sem querer nos braços, envergonhada, ele surpreendido e tímido – «Isn´t This a Lovely Day». Depois a comédia desenvolve-se nessa deliciosa troca de identidades onde o «Cheek to Cheek» é executado numa sincronizada suavidade, acrobática e deslumbrante, com Gingers Rogers envolta numa nuvem de plumas brancas.

Para não falar do mordomo Bates (Eric Blore): «We are Bates!», nem da guerra com o seu patrão Horace Hardwick (Edward Everett Horton) sobre a conveniente inconveniência de usar ou não gravata, nem da sua deliciosa esposa Madge Hardwick (Helen Broderick): «Na minha idade conserva-se o que se apanha, quando se apanha», nem do magnífico estilista dos vestidos da putativa noiva: «For the woman the kiss, for the man the sword!»

Fred Astaire e Gingers Rogers neste filme colocam um enorme dilema ao espectador: se deve este concentrar-se mais na secção inferior ou na secção superior do ecrã.

Enfim, um dilema maravilhoso.


jef, maio 2020


«Chapéu Alto» (Top Hat) de Mark Sandrich. Com Fred Astaire, Ginger Rogers, Edward Everett Horton, Erik Rhodes, Eric Blore, Helen Broderick. Argumento de Dwight Taylor e Allan Scott, segundo a peça «The Girl Who Dared» de Alexander Farago e Laszlo Aladar. Fotografia: David Abel. Direcção Musical: Max Steiner. Música e letras de Irving Berlin. Coreografia: Hermes Pan e Fred Astaire. EUA, 1935, P/B, 101 min.

 

sábado, 30 de maio de 2020

Sobre o livro «A Condição Humana» de André Malraux. Livros do Brasil, 1958 (?) (1933). Tradução e prefácio de Jorge de Sena. Capa de Bernardo Marques.











O livro situa-se, principalmente, na cidade de Xangai, entre a meia-noite e meia-hora do dia 21 de Março de 1927 e as horas que se seguem ao início do dia 11 de Abril. Até chegar Julho a Paris e a Kobe, no Japão.

O livro contém, como num livro de atendimento espiritual, tudo o que significa o impulso humano, tudo o que move a resolução consciente de uma ideia nova para a sociedade, do motivo para a sua radical alteração, digamos “revolução”. Mas também esse modo tão definitivo do ser solitário na decisão maior do ser solidário, como motor (em comum) que transporta uma cidade para o seu futuro mas deixa no indivíduo a carga máxima da responsabilidade e do silêncio. Lembrei-me muito dessa esperança desesperançosa que senti quando vi por duas ou três vezes o espectáculo de José Mário Branco «Ser Solitário / Ser Solidário», no Teatro Aberto. Lembrei-me igualmente desse transtorno emocional provocado pela revolta que a literatura deixa no interior do leitor, como quando li «Os Subterrâneos da Liberdade» de Jorge Amado ou «Levantado do Chão» de José Saramago.

E não falo de neo-realismo. Falo mesmo da consciência absoluta de que o caminho da solidão é absoluto, irrevogável, irreversível, e de que, no final, esbarra no grosso muro do esquecimento e da morte.

Contudo, e porque este livro é uma extraordinária obra-prima, não terminaria sem advogar que a ternura (muito mais do que o amor) é, apesar da consciência, da solidão e da morte, a trave-mestra do frágil edifício, íntimo ou colectivo, dentro do qual se instala a condição humana.


jef, maio 2020

 


As abelhas bem que apreciam a companhia do Aparício





As abelhas bem que apreciam a companhia do Aparício

 

As abelhas gostam de ter o Aparício por perto. Quero dizer, o Aparício é um rapaz que estima esse labor permanente e hexagonal das asas e do querer sem quererem das abelhas. Elas são assim, ele assim é. A pedra onde o avô, logo depois o pai, se sentavam, lá está para ele também ficar a contemplar o voo fisgado dos insectos. A geologia das pedras é tão antiga quanto a cera macia a opercular os favos. Guardam os ovos, aguardam as larvas, indistintas, o momento da fecunda proteína identificadora. Geleia real. Depois, a próxima rainha sairá impante levando atrás de si a duplicação do enxame.

O Aparício questiona-se se receberá os novos habitantes desdobrando a colmeia. Sabe que o tempo passa sem passar, pela Aboboreira, por Mação, sobre a pedra do avô e do pai, dele. Mas desconhece se o tempo que não passou, incendiará este Verão o néctar e o pólen da floresta. Pensa na varroa parasitando as pupas das abelhas, na vespa velutina, grande e carnívora, apavorando as trabalhadoras que hesitam em sair da régua da colmeia. O Aparício hesita também sobre o tempo que, nesse instante, cristalizou no silêncio voador dos zumbidos.

Tudo depois recomeçará, ele sabe. O calor dentro do escafandro branco, não vá uma das amigas deixar definitivamente de o ser. A cresta, o mel nos frascos, os amigos. A memória e a eternidade futura das abelhas. O Aparício sabe que tudo tem mesmo de recomeçar.

 

jef, maio 2020

 

* perífrases e quarentena

 


sexta-feira, 29 de maio de 2020

Sobreiro Quercus suber L.







Sobreiro Quercus suber L.

Família Fagaceae


Interessante o facto de ser visto como símbolo primeiro de uma região de Portugal, de uma cultura agro-silvo-pastoril, de uma paisagem humanizada e natural, de um determinado ambiente edafoclimático, de uma cultura socio-etnográfica. Do cante alentejano ao vinho engarrafado. Certíssimo: o montado de sobro não é bem uma floresta! O facto é curioso pois ao passarmos os olhos por esse tratado único, «Subericultura» de Joaquim Vieira Natividade (1950), logo se verifica que este carvalho de folha persistente, folhas coriáceas e ligeiramente cerradas, verdes na página superior e acinzentadas por um velo de pelos na inferior, cobria grandes áreas por todo o território continental. E ainda ocorre porque se adapta. Árvore que tem por fruto uma bolota de sabor menos doce que a da azinheira mas que não é desdenhada por animais selvagens e porcos de montanheira. Árvore que resiste aos tratos do descortiçamento e se regenera nove anos depois, que resiste à seca, menos ao encharcamento prolongado do solo. Uma árvore que resistiu quando o homem a desprezava em termos económicos mas se impôs na indústria mundial pelas características do seu ritidoma suberoso – isolamento, impermeabilidade, elasticidade, resistência.


jef, maio 2020


* botânica

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Paineira Ceiba speciosa (A. St.-Hil.) Ravenna




as fotografias são (quase todas) do meu querido colega e amigo José Carlos Figueiredo
















Paineira Ceiba speciosa (A. St.-Hil.) Ravenna (= Chorisia speciosa)

Família Malvaceae

 

Em tempos, teve o nome genérico de Chorisia, dedicado ao pintor germano-ucraniano Ludwig Choris (1795-1828) que seguia nas expedições europeias à América do Sul e lhe registava a beleza exuberante. É parente dos imponentes imbondeiros africanos de troncos bojudos, mas também das tílias. Acompanha ainda as flores dos hibiscos e das malvas.

Caducifólia, até 30 metros de altura, é originária do Brasil, do Nordeste da Argentina e da Bolívia, e possui algumas características que a torna tão vistosa nos jardins onde está plantada. Como os imbondeiros, tem um fuste volumoso que alarga na base como uma garrafa cravejado de acúleos aguçados quando jovem. O ritidoma é rugoso. A copa é ampla e arredondada formada por ramos com folhas de 5 a 7 folíolos, lanceolados e pontiagudos, verdes lustrosos, unidos pelos longos pecíolos num segundo pecíolo, formando como dedos de uma mão. As flores hermafroditas surgem no Outono ou Inverno, desfasadas das folhas, apresentando-se assim, garridas, com as suas cinco pétalas rosadas, de interior branco amarelado, em campânula aberta dentro do cálice tubular, com as anteras e os estames solidários. Flores solitárias que parecem as dos hibiscos. O fruto é uma cápsula grande, lenhosa, ovoide-fusiforme, com sementes em jeito de ervilhas, ricas em óleo de proveito alimentar e envoltas em fibras algodoadas, a que, nos lugares de origem, dão o nome de kapok. Servem estas para o enchimento de almofadas – a sumaúma. A madeira é das mais brancas, brandas e porosas, tão usada no modelismo ou nas maquetes de arquitectura, tal como a balsa da sua parente Ochroma pyramidale.

São muitas particularidades botânicas cuja estética logo encheu de gáudio a avidez dos exploradores, a curiosidade dos jardineiros, o deslumbramento dos pintores e o coleccionismo dos enciclopedistas.

 

jef, maio 2020

 

* botânica


quarta-feira, 27 de maio de 2020

Freixo Fraxinus angustifolia Vahl






Freixo Fraxinus angustifolia Vahl

Família Oleaceae


Da família das oliveiras. Quem o estiver a observar certamente não se encontrará numa floresta ou bosque cerrado de uma espécie única. Mais provável, andará pelas margens umbrosas de um rio, de permeio com amieiros ou carvalhos e vegetação das galerias ripícolas. Ou andará perto de um lameiro ou prado húmido, em solos mesotróficos. Verá um tronco amplo de ritidoma fendilhado, oferecendo copa frondosa e folhas opostas, compostas, de folíolos ímpares, lanceolados e ligeiramente serrilhados. Isto, claro, se não passear durante o Inverno, que é árvore caducifólia em que as flores sem pétalas ou sépalas surgem antes das folhas originando frutos que são sâmaras, aladas, longilíneas, reunidas numa espécie de cacho. A diversidade biológica estará sempre associada à paisagem, ao habitat ou a imagem de uma árvore que pode atingir altura imponente de 20 metros e, ainda, oferecer madeira clara de grandes resistência e elasticidade para que o homem construa os seus utensílios.

 jef, maio 2020

*botânica

terça-feira, 26 de maio de 2020

Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa.












Se uma gaivota viesse trazer-me o céu de Lisboa.
Da família Laridae ou a sombra do homem.


«Uma gaivota pousou na praia, duma espiral de asas que rondavam em pairo vagaroso e calado, e começou a marchar, perto de nós, marcando na superfície húmida silhuetas cuneiformes. Duas, três, mais gaivotas, saltaram, parecia que a espiral se ia desenrolando, de cima, vertendo-se para o solo. Asas enclavinhadas, toque em terra, asas recolhidas, passeio grave e peitudo, observação suspeitosa.»
Apuros de um Pessimista em Fuga de Mário de Carvalho


Não será necessário recordar o caso cinematográfico, pré-psicótico, de «Os Pássaros» (Alfred Hitchcock, 1963), ou a delicodoce espiritualidade de «Fernão Capelo Gaivota» (Richard Bach, 1970), nem a data da canção «Somos Livres» de Ermelinda Duarte (1974). Basta debruçarmo-nos sobre o círculo perfeito que Alexandre O’Neill compôs para a voz de Amália sob o som de Alain Oulman (1969), para avaliarmos a projecção psicológica que a gaivota tem, em termos semióticos, no bicho-homem e no povo português em particular. Falamos dessa ave de porte médio a grande, patas amarelas, pinta encarnada na mandíbula inferior, peito claro, dorso e asas de um cinzento mais ou menos escuro, as últimas primárias negras pintalgadas de branco. Gritam aos céus enevoados de Lisboa de modo enigmático, sempre angustiado. Talvez urgente, sim, por nos lembrar que, afinal, existe vida além da rotina urbana. A conspícua, gregária, destemida, mesmo aguerrida ave tão presente aos olhos do homem por a ele se dirigir, até perseguir, junto aos portos, cais de embarque dos cacilheiros, rumo ao soturno das traineiras, ao apetite de lixeiras e aterros sanitários.

Falar de gaivotas é falar de um certo romantismo comportamental, ora do onírico, ora da viva saudade, essa dor terna com que a beira-mar impede o homem de ir além-mar, além-o-outro, talvez além-ele-próprio. A saudade que do enlevo na observação circunvagante da gaivota se afigura em inveja pelo seu voo libertário.

Penso até que os ornitólogos se toldam por essa sinantropia, quase simbiose lírica, lágrima no canto do olho pela baixa luz do sol invernante, ao perscrutar o horizonte, tentando descobrir se a migradora gaivota-d’asa-escura Larus fuscus já mais se habituou a criar no lar português. Muito discutem tais olheiros científicos, vendo para lá do gesto da ave e do cinzento difuso das asas, em simultâneo, fenótipos e etologias, sem decidirem se o genoma vem mais ou menos cruzado pelo da gaivota-argêntea Larus michahellis, outrora gaivota-de-patas-amarelas, que o animal sempre assim as teve, ou pelo Larus argentatus, a gaivota-prateada, ou pela velha nomenclatura da do Cáspio, a Larus chachinnans… Pobres observadores, confundidos que andam pelos bancos da academia, queimando pestanas na cega voragem do curricular. Gaivotas… todas diferentes, todas iguais, de Lineu.

Melhor fora se lessem Mário de Carvalho, que tão bem observa o voar gregário pelos ares ou sobre as areias de Tróia, envolvendo a memória tristonha do “Pessimista em Fuga”. As recordações resvalam, no exacto momento narrativo, para o lado pungente de uma notícia que traz próxima a morte de Marília, adensando a tragédia do sofrimento e da solidão do auto-desconfiante personagem da novela. Refere o escritor uma espécie de vórtice descendo e poisando, para ali ficarem depois, agoirentas, «olhos parados, bicos curvos, penas pontiagudas», em torno do casal que em breve deixará de o ser, como se circulassem em multidão ansiosa, temente, faminta, à volta do cubo negro e proibido de Meca.

Sinceramente, eu vos digo. Se desejam a mais cabal e científica descrição de um caso, ou de uma aurora, ou de uma nuvem, ou de uma gaivota, passem a palavra ao ficcionista poeta.

João Eduardo Ferreira

Nota importante.
Este texto foi carinhosamente solicitado pelo projecto Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental
e publicado em Abril de 2020 na revista ambiental on line Wilder

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Bétula Betula celtiberica Rothm. & Vasc.
















Bétula, bidoeiro, vidoeiro Betula celtiberica Rothm. & Vasc.
Família Betulaceae

Tal como no género Alnus, do amieiro, neste, também os amentilhos femininos, menos expressivos, derivam numa espécie de pinha de estrutura característica onde, entre as brácteas lenhosas, trilobadas, se encontram os frutos, sâmaras, munidos como que de duas pequenas asas. Dizem que esta particularidade, naturalmente, está associada à fácil regeneração natural em zonas de altitude e ventos fortes – Estrela, Marão, Gerês e Montesinho –, formando bosquetes sobre solos profundos e húmidos, aluvionares, de preferência siliciosos, também em prados, turfeiras, junto a cursos de água.

Confere ao espaço onde se encontra um certo ar arcádico ou bucólico, certamente pela tonalidade quase branca do seu ritidoma e pela silhueta singela e flexível. Caducifólia, frequentemente não ultrapassa os 20 metros de altura, com a idade o revestimento branco do tronco vai sendo fendido horizontalmente por linhas escuras devido ao aparecimento das lentículas. As folhas de 2 a 5 cm, romboides a triangulares, ápice agudo, margem serrada, possuem um pecíolo flexível. Os raminhos novos apresentam pelos e glândulas gumosas. Não desprezada em parques e jardins urbanos, a sua madeira é clara, fina e resistente, boa para trabalhos de marcenaria e artefactos domésticos. A casca possui substâncias medicinais diuréticas e anti-inflamatórias. A seiva quando fermentada produz “cerveja”. Antigamente, o interior do ritidoma servia de suporte à escrita como sucedâneo do papiro.

Talvez os botânicos discutam sinonímias e derivações com a espécie sua parente Betula pubescens, de muito mais vasta geografia euroasiática e símbolo nacional da Rússia; talvez os florestais tenham até utilizado alguns híbridos mais eficientes em plantações de outrora; mas todos concordam que esta espécie é endémica da Península Ibérica.

jef, 2020

* botânica

sábado, 23 de maio de 2020

A Teresa tem queda para os doces









A Teresa tem queda para os doces

A Teresa tem muita queda para as compotas. Reflicto melhor, a Teresa é uma rapariga que gosta de ir até ao fogão e, com cuidado, ver o ponto de açúcar dos seus doces. Conhece muito bem a curiosa ligação que existe entre a fruta e o açúcar, ligação natural, de cheiros coloridos, que tanto atrai os insectos e os pássaros, ladrões que antes já polinizaram o que agora tomam como seu.

Sabe que são fundamentais as voltas da colher de pau sobre a massa informe, escaldante, borbulhosa, não vá pegar e desfazer esse outro instante futuro em que ela pensa “Está pronto!” e apaga o lume. Um instante único e tão precioso como o instinto de reconhecer a exactidão do ponto açucarado sobre os marmelos, os alperces, os pêssegos, os morangos, as amoras. Um instinto, uma espécie de amor, melhor dizendo, uma ternura que faz com que insectos e pássaros saibam sem saber que já principiou a época frutuosa do açúcar.

Teresa sente o mesmo instinto que inicia a época dos dias longos e ensolarados e que, mal arrefeçam os frascos, devidamente etiquetados com o nome da fruta e o ano correspondentes, a faz pensar nessa dádiva ternurenta que os outros confiarão depois a uma torrada em luminosa manhã de Verão.

jef, maio 2020

* perífrases e quarentena

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Carrasco-arbóreo Quercus rivasmartinezii J. Capelo & J.C. Costa



 as fotografias são do querido amigo Jorge Capelo









Carrasco-arbóreo, carrasco da Arrábida Quercus rivasmartinezii (J. Capelo & J.C. Costa) J. Capelo & J.C. Costa
Família Fagaceae

O endemismo português gosta do calor, é termófilo, e não desdenha os solos calcários provenientes de estratos dolomíticos, também solos profundos sobre xistos e antigas dunas. Acompanha, entre loureiros, medronheiros, alfarrobeiras, lentiscos, camarinhas e aroeiras, as paisagens mediterrânicas debruçadas sobre o Atlântico. Tem um tronco único e direito coberto por um ritidoma escuro e fendido em pequenas placas. A copa é arredondada, formada de pequenas folhas até 10 cm, persistentes e glabras nas duas páginas, verde vivo, com um contorno ligeiramente dentado e espinhoso e um grande número de nervuras. As flores são amentilhos e o fruto, a glande, é fusiforme e comprido, envolvido por uma taça suportada por um pedúnculo lenhoso, coberta por escamas um pouco levantadas, triangular-lanceoladas.

Anteriormente, permanecia indistinto entre bosques e matos habitados por um outro carrasco, aquele seu parente muito próximo nomeado por Lineu como Quercus coccifera. Parecido, sim, mas tomando progressivamente, sob o olhar comparativo e colecionista dos botânicos, características díspares daquele, ocupando núcleos específicos entre a área mais vasta do primeiro. A serra da Arrábida. Ali, era mesmo uma árvore, distinta do outro carrasco, de tronco firme e fendilhado, bolota mais oblonga com escamas ainda mais eriçadas, as nervuras nas folhas sobressaíam… Assim, esses filatelistas classificadores da Nova Flora foram-se aproximando de uma entidade diferente, primeiro como Quercus coccifera L. subsp. rivasmartinezii J. Capelo & J.C. Costa (2001), mais tarde, assumindo já a nomenclatura específica como “carrasco de Rivas Martínez”, em 2005. As análises genéticas (a que Lineu ainda não podia deitar mão) confirmaram a nova espécie das encostas da Arrábida. Com o seu nome, os novos classificadores dirigiram a atenção dos amantes do universo vegetal para o decano fito-sociólogo Salvador Rivas Martínez, nascido em Madrid em 1935, conhecedor profundo das comunidades vegetais de uma Península Ibérica que percorreu de lés-a-lés. Especialmente, um andarilho de bosques regidos pelos tão distintos carvalhos.

Deste modo, a serra da Arrábida acolheu, neste século, uma nova espécie de árvore que foi reconhecida também em Pataias, junto da Mata Nacional de Leiria, e ainda na área olissiponense, nas serras de Grândola e no Sudoeste Alentejano.

jef, maio 2020


* botânica

terça-feira, 19 de maio de 2020

Ulmeiro Ulmus minor Miller














Ulmeiro Ulmus minor Miller (= U. procera)
Família Ulmaceae

Conhecido também por olmo, negrilho ou mosqueiro, apresenta uma madeira de tom escuro, resistente, boa para a construção de artefactos na casa agrícola. As folhas abundantes tem elevado valor nutritivo como forragem e o ritidoma contém taninos e diversos compostos com utilidade terapêutica. Distribuía-se por todo o território continental, nas matas ribeirinhas, em solos frescos e profundos da várzea. Contudo, a famosa árvore que projectava sombra sobre os túmulos dos heróis gregos e as culturas agrícolas dos romanos, e até nomeou uma clássica entidade livreira portuguesa, não tem resistido à grafiose, doença provocada pelas várias estirpes do fungo Ophiostoma novo-ulmi, associado à presença do escaravelho curculionídeo Scolytus scolytus.

Caducifólia de porte robusto e copa imponente, podendo atingir 30 metros de altura, caso os animais selvagens ou domésticos não a forem podando naturalmente pelo seu apetite. Tem uma densidade de copa grande e característica, já que as folhas de curto pecíolo são sustentadas sem transição dos ramos finos e estes logo para os mais grossos. Essas folhas, muito nervadas, são alternas, orladas de dupla serrilha, ovaladas e pontiagudas, ostentando na base uma nítida assimetria. Tal como as flores, os frutos, de curto pedúnculo, nascem quase diretamente dos ramos. Estas sâmaras, achatadas e com uma asa periférica paleácea, são precoces, amadurecendo mesmo antes das folhas concluírem a sua formação.

Vários híbridos vão sendo testados para que este género pioneiro, aparecendo muitas vezes associado a diferente árvores, tanto folhosas como resinosas, não desapareça dos povoamentos florestais, da compartimentação da paisagem, também da memória.

jef, maio 2020

* botânica

domingo, 17 de maio de 2020

Sobre o filme «Eduardo Mãos de Tesoura» de Tim Burton, 1990















Se existe um filme que melhor representa, simultaneamente, o universo onírico das marionetas sentimentais de Tim Burton; a importância da fantasia como máscara da humanidade; e ainda a real contradição que dá pelo nome de “Estados Unidos da América”, ele é «Eduardo Mãos de Tesoura».

Tudo está aqui condensado num mundo habitado por quatro seres representados, em estado de graça, por Jonnhy Depp (Edward Scissorhands), Winona Ryder (Kim), Dianne Wiest (Peg) e Anthony Michael Hall (Jim), um mundo perfeito e desinfectado, colorido e intocado, sonorizado pela música de Danny Elfman e envolvido simetricamente por um bairro de onde partem e chegam automóveis a horas certas, e cheio de donas de casa inoperantes, fúteis e coscuvilheiras. Todos os que rodeiam a família adoptiva de Eduardo Mãos de Tesoura são crédulos, ingénuos e preconceituosos. Mereciam ter como presidente um imaginário homem perigoso e estúpido, cabelo postiço amarelo de ‘roberto’, gravata vermelha até aos pés, mãos agitadas de acordeonista cego. The Muppet Show.

Tudo isto consegue Tim Burton numa história que une, com laivos de genialidade, a cinematografia de Walt Disney, Jacques Tati, Frank Capra, Elia Kazan, Douglas Sirk ou Billy Wilder. A grande diegese ficcional está aqui relatada: simples, dramática, triunfal. Tão infantil e fácil de escutar como as histórias, emocionalmente angustiadas, que são ouvidas, nocturnas, desde a época clássica.

«Eduardo Mãos de Tesoura» contém em dicionário de A a Z, a síntese plástica, afectiva, musical e narrativa, de um dos mais inclassificáveis realizadores de sempre.

jef, abril 2020

«Eduardo Mãos de Tesoura» (Edward Scissorhands) de Tim Burton. Com Jonnhy Depp, Winona Ryder, Dianne Wiest, Anthony Michael Hall, Kathy Baber, Vincent Price, Robert Oliveri, Conchata Ferrell, Caroline Aaron, Dick Anthony Williams, O-Lan Jones, Alan Arkin, Susan Blommaert, Linda Perri, John Davidson. Música: Danny Elfman. Argumento: Caroline Thompson segundo história de Tim Burton e Caroline Thompson. Fotografia: Stefan Czapsky. Som: Petur  Hliddal. EUA, 1990, Cores, 103 min.

sábado, 16 de maio de 2020

A Gabriela vai ao café















A Gabriela vai ao café

A Gabriela gosta muito de ir ao café. Quero dizer, a Gabriela é uma rapariga que sente que um dos lugares que melhor a acolhe é esse onde está presente com os outros mas sem prescindir do alegre sossego de tomar uma bica normal, nem curta nem cheia, acompanhada de um belo pastel de nata. O café. Estar, assim, só sem estar só, à frente do movimento das conversas, da direcção dos olhares, do cheiro dos bolos, do entrar de quem depois sai cumprimentando o empregado com uma graça sem grande graça mas tomada pelo afecto do convívio.

À Gabriela sabe-lhe bem o caminho que a traz de casa à mesa do café, a viagem de comboio sobre o rio de larga foz e margens próximas. Conforta-a o burburinho das ruas paralelas aos carris do eléctrico, chiando. Ruas luminosas de Verão, por vezes chuvosas e brilhantes, que fazem molhados os vidros dos autocarros. Ruas que dirigem o som dos sinos nas igrejas da baixa e dos concertos em desconcerto de quem toca para os turistas, para os distraídos.

A Gabriela gosta desse eco sem som que se prende às paredes e que fica suspenso nos candeeiros que já se acendem, formando sombras distintas e reflexos engraçados, e também nostálgicos, no caminho de volta a casa. Quem lhe dera a cidade!

jef, maio 2020

* perífrases e quarentena

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Saramugo Anaecypris hispanica (Steindachner,1866)









Saramugo Anaecypris hispanica  (Steindachner, 1866)
Família Cyprinidae

A questão é simples de equacionar – conservar uma espécie significa conservar também o seu habitat (conservação in situ). Contudo, quando se trata de um endemismo que apenas ocorre, a nível mundial, na bacia do rio Guadiana e, nesta, somente em cinco sub-bacias de entre os seus inúmeros afluentes: Ardila, Chança, Vascão, Foupana e Odeleite, o controlo dos fatores que limitam a sua sobrevivência no meio natural, revela-se, afinal, bem complexo e urgente.

Da família dos Ciprinídeos, é o peixe mais pequeno da nossa fauna autóctone dulciaquícola, não ultrapassando, em adulto e em média, os 7 cm de comprimento. Sendo uma espécie que tem uma baixa taxa de reprodução, dependente e, por isso, indicadora da qualidade da água, deslocando-se na época reprodutiva (reofílica), é fácil entender como é sensível às alterações do curso e do leito das ribeiras, também às suas descontinuidades – construção de açudes, captação de água, descargas de poluentes ou extracção de inertes. Também a introdução de espécies exóticas como o achigã, o acesso de gado aos locais adjacentes aos pegos onde se refugiam durante os períodos de menor torrente ou a alteração de vegetação nas margens, constituem outros fatores fortemente perturbadores.

Se afirmamos que o pequeno peixe é tão vulnerável quanto o meio onde habita, verificamos igualmente que a maior parte das ameaças resultam da atividade humana. Daí a nossa maior responsabilidade. Por isso, a obrigação de colocar em prática o «Plano de Acção do Saramugo» (projecto financiado pela união europeia LIFE 13/NAT/PT786) onde se encontram definidos os termos para o licenciamento e para a fiscalização do usufruto dos cursos de água, a integrar urgentemente no Plano da Região Hidrográfica da Bacia do Guadiana, e o envolvimento consciente de todos os que devem zelar pela manutenção da biodiversidade de uma bacia hidrográfica tão singular como a deste rio.

jef, maio 2020