terça-feira, 31 de julho de 2018

Sobre o filme «A Gaivota» de Michael Mayer, 2018















Anton Tchekov.
«A Gaivota» de Anton Tchekov parece ser à prova de bala.
É uma peça única no centro da arte de Tchekov. Um autor único que transborda de afecto e rigor sobre quem envelhece, quem por tão jovem deseja ser mais velho, quem inveja, que sofre de ciúmes, quem ama sem ser amado, quem entristece, quem profundamente ama e a todo o custo mantém esse laço genético à família, à terra-mãe, ao mundo rural que quase desdenha da urbe, à esperança de um dia seguinte… Ou talvez nem tanto.

Relembro o cuidado quase ecológico, impressionista e terno, com que Nikita Mikhalkov traduz para o cinema «Platonov» em «Peça Inacabada para Piano Mecânico» (1977).

Por isso, fico desiludido. Não há razão para o realizador Michael Mayer (o guião apressado é de Stephen Karam) multiplicar as cenas curtas em carrocel, as sucessivas subidas e descidas de escadas, as fugas através da janela em direcção ao lago, as presunçosas e histéricas aproximações sobre os actores que apenas querem representar e não exibir trejeitos, jóias ou guarda-roupa. Tchevok é o dramaturgo do tempo que passa. Lentamente.

Actores como Annette Bening (Irina Arkadina), Brian Dennehy (Sorin), Saoirse Ronan (Nina) Mare Winningham (Polina) não precisariam de artefactos de cena para tão bem representar. (Tanto que gostaria de ver Woody Allen com estes actores e com esta peça de teatro maravilhosa).

Contudo a câmara pára reverente sobre a negra sombra de Masha para que tomemos o peso do seu maior sofrimento. Elisabeth Moss é fantástica no acto maior de resignação. A única personagem paradigmática a assumir de corpo e alma a pura resignação face a uma escolha menor.

Contudo, «A Gaivota» de Anton Tchekov é mesmo à prova de bala. Vale o tempo de ir ao cinema e rever esse Tempo que vai passando… segundo Tchekov.

jef, julho 2018

«A Gaivota» (The Seagull) de Michael Mayer. Com Elisabeth Moss, Saoirse Ronan, Annette Bening, Corey Stoll, Mare Winningham, Michael Zegen, Brian Dennehy, Billy Howle, Jon Tenney. EUA, 2018, Cores, 98 min.


segunda-feira, 30 de julho de 2018

Sobre o filme « Happy End» de Michael Haneke, 2017












Michael Haneke é o realizador das famílias feridas, das suas soluções precárias, desse ponto extremo em que a angústia e a ansiedade libertam o veneno sobre a paz negociada além do suportável.

«Happy End» usa o tema de «Amor» (2012) e prolonga-o no tempo buscando a solução ofensiva no interior de uma família descentrada de si própria. George Laurent (Jean-Louis Trintignant) encontra a sua alma gémea agressiva-passiva, talvez demente, numa recém-chegada neta, Ève (Fantine Harduin), provocando no ecrã uma tal empatia que custa a acreditar na ligação dramática-corporal de dois actores de primeira água mas separados por tanta idade.

Aliás, a ligação é tão perfeita que torna o que lhe rodeia um pouco desconexo, um tanto ausente, perdido na narrativa, exigindo constantemente que a cola avô-neta regresse com urgência.

De qualquer modo, este filme demonstra, uma vez mais, como Michael Haneke é exímio em transportar para o espectador a agonia de uma sociedade perdida, feita de casos complexos e casas a desmoronar. Aqui, dentro da família Laurent em que tudo giraria em torno dos irmãos Anne (Isabelle Huppert) e Thomas (Mathieu Kassovitz). Anteriormente já o tínhamos assistido no insuperável «Código Desconhecido» (2000), que conta a história de todas as histórias de um grande boulevard parisiense. O público e o privado, a xenofobia, a violência doméstica, a imigração, esse paradoxo de sobrevivermos a uma sociedade autopunitiva.

«Happy End» estuda, com cenas de um silêncio assustador e cenas aparentemente inexplicadas cronologicamente, a velhice, a adolescência e tudo o que permanece entre elas, através de uma escrita cinéfila que utiliza laboratorialmente a lupa e o bisturi para, simultaneamente, dissecar o medo paradoxal inculcado no coração do espectador.

jef, julho 2018

«Happy End» de Michael Haneke. Com Isabelle Huppert, Jean-Louis Trintignant, Mathieu Kassovitz, Fantine Harduin, Franz Rogowski, Laura Verlinden . Alemanha / França /Áustria, 2017, Cores, 107 min.


domingo, 29 de julho de 2018

Sobre o filme «Madame De…» de Max Ophuls, 1953












Resumo. Poder-se-ia dizer que este filme tem por centro a mentira.
A belíssima longa cena inicial, extravagante, mostra as mãos enluvadas de uma senhora que percorre todas as suas jóias, os casacos de peles, os vestidos de baile. Gosta muito de todos mas tem de se desfazer de um, vá lá saber-se porquê. Louise (Danielle Varrieux) opta tristemente por uns brincos que vai revender, em segredo, ao joalheiro (Jean Debucourt) que os vendeu ao General, Monsieur De… (Charles Boyer), marido de Louise, que acaba por recomprá-los para oferecer a Lola, sua amante, que está de partida para Istambul (Lia Di Leo)…. Até que o barão Fabrizio Donati (Vittorio de Sica) viaja de Istambul para Paris.

E assim começa a história das mentiras que se vão dizendo sobre a viagem da citada jóia, tal como é anunciado no início do filme por uma legenda misteriosa…
A comédia de costumes está lançada sublinhando a frivolidade e a superficialidade de quem vive num certo «mundo à parte». E esta comédia até parece ser como aquelas de Marivaux e Beaumarchais que, séculos atrás, anunciavam a Bastilha e a Revolução Francesa. Apenas parece. Aliás, existe uma frase eternamente repetida nos textos escritos sobre o filme e sobre a obra do realizador que, citando-o, diz que «a superficialidade só o é à superfície».

Note-se pois as reviravoltas da câmara para notar a posição subalterna dos porteiros de libré que, cansados, abrem e fecham as portas dos camarotes na Ópera; o violinista que se recusa a tocar mais após uma noite inteira a trabalhar para o casal de amantes que não parou de dançar; o filho do joalheiro que sobe a escada várias vezes a mando do pai, tudo por causa dos tais brincos; o desespero visível da criada de Louise (Mireille Perry) contra os desmandos do patrão.

Contudo, Max Ophuls não pretende fazer uma comédia. Nem declarações socio-políticas. Nem sequer uma tragédia… Aí está o principal e genial truque do filme. Porque, no final, os brincos surgem num altar onde ficam depositados como paga adiantada a Nossa Senhora de um possível milagre... Na vida nada é de graça! A devoção é o primeiro exemplo disso. Afinal, O Amor como o Humor (já alguém o disse sobre este último) apenas têm o dom de aprofundar e não de aligeirar.

O realizador pretende apenas contar uma história, apenas isso, com a agilidade de mestre, com uma luz magnífica, com a serena vivacidade narrativa, com diálogos literários, com um guarda-roupa deslumbrante, com cenas de baile só comparáveis com as de «O Leopardo» (Luchino Visconti, 1963), …

Max Ophuls (e eu não esqueço «Lola Montès», 1955) tem a sublime tarefa de mostrar a realidade através de uma mentirosa linha dramática que diz somente que o teatro não é real mas apenas nos faz compreender o lugar exacto onde se esconde a verdade.

jef, julho 2018

«Madame De…» de Max Ophuls. Com Danielle Varrieux, Charles Boyer, Vittorio de Sica, Mireille Perry, Jean Debucourt, Serge Lecointe, Jean Galland, Jean Degrave, Hubert Noël, Paul Azais, Josselin, Lia Di Leo. Argumento Max Ophüls, Anette Wadamont e Marcel Achard baseado na novela de Louise de Vilmorin. Diálogos: Christian Matras; Música: Oscar Strauss, Georges Van Parys. França / Itália, 1953, P/B, 105 min.


sábado, 28 de julho de 2018

Sobre o filme «No Coração da Escuridão» de Paul Schrader, 2017















Ernst Toller (Ethan Hawke) é padre e dirige uma antiga igreja luterana de uma pequena comunidade a norte do estado de Nova Iorque. First Reformed. Perde um filho na guerra do Iraque. Vive de modo asceta. A igreja está prestes a comemorar um importante aniversário mas o órgão está avariado. Faz visitas guiadas a turistas e grupos escolares. Celebra missas mais ou menos desertas. Resolve escrever um diário. Manuscrito num caderno pautado. Diz-nos que vai escrevê-lo por um ano. As letras sucedem-se maiúsculas na pausa crescente da voz-off. Os espectadores vão tendo tempo para tomar consciência de uma tragédia que ainda não foi anunciada. Como uma homilia nefasta antevendo a crueldade futura dos dias presentes. Ernst Toller não se conforma mas sublinha que a vida está permanentemente entre a esperança e o desespero. Tenta dar esperança a um casal de activistas ambientais em desespero de causa: Michael (Philip Ettinger) e Mary (Amanda Seyfried).


O grande Ethan Hawke dá corpo sublime a um personagem em crescente vigília sobre si próprio e sobre um Mundo que não é compreensível, que não está visível apesar de ser o nosso, um universo à beira de um desmoronar colossal mas no interior da vacuidade. Ernst Toller faz parte desse conjunto de personagem-íman, que tudo atrai como tudo repele na angústia de uma crença em permanente dialéctica. E no vago do silêncio. Um personagem difícil de esquecer que torna a causa religiosa na mais iniciática demanda profana pelo sacrifício em prol da verdade.

O realizador Paul Schrader cita Albert Camus ao jornalista Vasco Câmara: «Eu não acredito, eu escolhi acreditar.» E nessa frase está tudo contido: a consciência desesperada de que a esperança pode apenas significar alienação.

«No Coração da Escuridão / First Reformed» recebe o título português mais tolo e inadequado. Se existe filme que torna claro e dá crédito ao caminho da decisão e da eterna dúvida é este.

Talvez o melhor filme do ano.


jef, julho 2018

«No Coração da Escuridão» (First Reformed) de Paul Schrader. Com Amanda Seyfried, Ethan Hawke, Cedric the Entertainer, Philip Ettinger; Victoria Hill. EUA, 2017, Cores, 133 min.



terça-feira, 24 de julho de 2018

Sobre o filme «À Distância» de Lorenzo Vigas, 2015













O melhor do filme é o cenário real, conclusivo, opressor, fechado sobre os personagens. A casa de família. Onde Armando (Alfredo Castro) vive só, rodeado de objectos e de poeira e da cor desmaiada de uma família desaparecida. É aí que recebe rapazes jovens a quem paga para se despirem para, depois, se masturbar à distância, sem lhes tocar. Uma atracção pela distância irreprimível, impulsiva, para cumprir a sua difícil sexualidade. Até encontrar Elder (Luis Silva), bate-chapas numa oficina de automóveis de quarta categoria em Caracas, Venezuela. A casa de Elder sem chave, a oficina, as ruas onde o grupo de adolescentes delinquentes se juntam, são de um realismo ficcional que merece toda a nossa atenção, quase devoção. A beleza da fealdade!

As ruas de Caracas são de uma opressão desmesurada perante a inconsequência dos personagens, acompanhando tão bem o silêncio distante de Armando ou a agitação meio-estéril de Elder. Os actores Alfredo Castro e Luis Silva são magníficos, o tempo de acção inflexível.

O pior do filme é o tentar impor uma conclusão-explicação para tudo, constrangedora, restritiva, dizendo que Armando é assim pois tivera um pai opressor que a tudo o terá obrigado, dizendo que Elder é assim pois é filho das ervas, espécie de delinquente, filho da ingratidão e de uma sociedade venezuelana em cacos… Suspeito que tal tradição justificativa, deveras novelesca, tenha algo a ver com o produtor Michel Franco («As Filhas de Abril», 2017).

Nem a sexualidade, nem a atracção amorosa, nem a delinquência, nem a sociedade, podem ser reduzidas a estereótipos de uma psicologia de trazer por casa!

jef, julho 2018

«À Distância» (Desde Allá) de Lorenzo Vigas. Alfredo Castro, Luis Silva, Jericó Montilla, Catherina Cardozo, Jorge Luis Bosque. Produção: Michel Franco. México / Venezuela, 2015, Cores, 93 min.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Sobre o filme «O Crime do Sr. Lange» de Jean Renoir, 1935
















Neste filme existe qualquer coisa de incoerentemente maravilhoso! Não se entende muito bem porque foi feito, para que foi feito, para quem foi feito. Temos pressa em seguir a câmara que vai à frente desaustinada. De início, não percebemos bem a conversa dos camponeses e a chegada do casal de foragidos parisienses: Valentine (Odette Florelle) e Amédée Lange (René Lefévre). Houve um crime e Valentine conta a história e pede ao povo que julgue quem atirou sobre Batala (Jules Berry), patrão prepotente, insolente, endividado, mau pagador e pior amante.

Afinal, voltamos atrás e revemos em enorme flashback toda a verdade, e a verdade gira à volta desse Batala (que fantástico é o actor Jules Berry) e das suas conquistas amorosas e das suas falcatruas e dessa cooperativa renascida que todos ajuda para que o futuro vença! O Sr. Lange é um autor de sucesso que cria histórias do faroeste: «Arizona Jim», editadas em livros de cordel pela milagrosa cooperativa! Até que surge a cena mais extravagante do filme – o jantar –, seguida das fulgurantes mudanças de campo quando Batala regressa e é confrontado no pátio junto do chafariz, por Lange. Pistola em riste….

Neste filme há tanto de poético e de belo quanto de riso. Tanto de intenção política como de psicanálise profundamente enraizada nas mudanças de paradigma revolucionário de género ou de classe ou de intelectualidade. Muito de surrealista! Muito de liberdade de improvisação! Tudo do génio de Jean Renoir ou de Jacques Prévert!

Qualquer coisa a fazer lembrar «A Canção de Lisboa» (José Cottinelli Telmo, 1933) ou «A Casa na Praça Trúbnaia» (Bris Barnet, 1928).

Um filme absolutamente maravilhoso!

jef, julho 2018

«O Crime do Sr. Lange» (Le Crime de Monsieur Lange) de Jean Renoir. Com Jules Berry, René Lefèvre, Odette Florelle, Nadia Sibirskaia, Sylvia Bataille, Henri Guisol, Maurice Baquet, Marcel, Levesque, Odette Talazac, Jean Dasté, Paul Grimault, Guy Decomble, Charbonier, Fabien Loris, Jean Brémaud, Claire Gérard, Edmond Beauchamp, Paul Demange, Sylvain Itkine, Margot Capelier, Janine Loris, Germaine Duhamel, Suzanne Magisson. Argumento: Jean Renoir e Jacques Prévert segundo a ideia de Jean Renoir e Jean Castanier. Música: Jean Wierner e a canção «Au jour le jour, à la nuit la nuit» de Joseph Kosma com letra de Jacques Prévert. França, 1935, P/B, 83 min.

sábado, 14 de julho de 2018

Sobre o filme «Dois Homens em Manhattan» de Jean-Pierre Melville, 1959











O melhor desta alta comédia de Jean-Pierre Melville é a presunção do erro, a assunção do que não é exacto, o amor ao truque como modo de adopção da realidade.

Ele, Jean-Pierre Melville é tudo. Realiza, adapta, argumenta, escreve os diálogos, interpreta, uma história policial negra, à americana, com muito jazz, muito álcool, cinzeiros a transbordar de beatas, jornalistas sem escrúpulos, mulheres lindas e suicidas que fazem delegados da ONU perderem-se num véu denso de fumarolas nova-iorquinas, planos nocturnos e cenas literalmente truncadas para parecer ainda mais o teatro simbólico que, na realidade, é.

Aqui está patente a diversão pura de Jean-Pierre Melville que faz de repórter Moreau chamado a investigar o desaparecimento súbito de um diplomata francês. Para isso pede ajuda a Delmas (Pierre Grasset), fotógrafo alcoólico e desenrasca, que tudo descobre, tudo saca à mais bela noite de Nova Iorque.

A figura de Moreau é uma espécie de Fernandel a fazer das personagens de Dashiell Hammett, repleta de reverência pelos símbolos de Nova Iorque mas com a falta de vergonha de quem sabe que os está a deturpar. Uma postura que é suplantada pela benévola e quase crente versão de realizador que deseja regressar ao papel de actor impostor. Como uma partida de um miúdo antes da representação no sarau final de ano lectivo.

Deve ver-se este filme francês no sentido oposto com que, mais tarde, se assistiu à «paixão americana» do alemão Wim Wenders: «O Amigo Americano» (1977), «Hammett» (1978-82) ou «O Estado das Coisas» (1982).

jef, julho 2018

Melville, Jean-Pierre “Dois Homens em Manhattan” (Deux Hommes dans Manhattan). Jean-Pierre Melville, Pierre Grasset, Christiane Eudes, Ginger Hall, Colette Fleury, Monique Hennessy, Glenda Leigh, Jean Darcante, Michèle Bailly, Paula Dehelly. Música: Christian Chevallier, Martial SolalFrança, 1959, P/B, 84 min.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Sobre o filme «As FIlhas de Abril» de Michel Franco, 2017














Existe qualquer coisa de incompreensível neste filme. Melhor, inexplicável.

O filme parece começar por uma história a lançar raízes na difícil maternidade quase infantil em terras do México, criando a expectativa de irmos assistir a um desses filmes-denúncia ao jeito dos  irmãos Dardenne, de Brillante Mendoza ou Stéphane Brizé. Aqueles filmes que precisamos de ver para suster a respiração e compreender como a economia anti-social transtorna o bem-estar no mundo.

Uma mãe chega Puerto Vallarta para ajudar uma quase criança de 17 anos, que vive com a meia-irmã, a ter a sua neta. Rica, amiga apesar de ausente, voluntariosa e estratégica, vai ajudar a serenar um quadro que poderia ser desastroso. Contudo…

Acabamos por assistir a uma série de peripécias rocambolescas e manhosas arquitectadas por uma Rainha Má que vai espalhando maçãs envenenadas por todos os penosos 103 minutos de exibição.

Claro que a realização é rápida e eficaz. O argumento cheio de reviravoltas. As actrizes cumprem muito bem a tarefa para que foram contratadas, principalmente as bebés que fazem de Karen, a pobre nascitura. O espectador fica em pulgas com uma criança sempre a chorar desesperada… mas e depois?

Ficamos sem dogma ou conclusão, alerta ou moral, acção política, cultural ou social. Ficamos sem a beleza de códigos. E o cinema faz-se de códigos, já dizia Deleuze, e uma telenovela não tem códigos, não tem beleza.

Uma telenovela não é cinema!

jef, julho 2018

«As Filhas de Abril» (Las Hijas de Abril) de Michel Franco. Com Emma Suarez, Ana Valéria Becerril, Enrique Arrizon, Joanna Larequi. México / Espanha, 2017, Cores, 103 min.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Vão de Escada















Profundo
O lance de escadas
Que do vão silencioso e frio
Escuro
Lança hifas de humidade
Sobre certa memória corrente.
Mi bemol agudo no piano desafinado
O rato no forro permanece atento
O gato dormita
Sob as avencas aquosas
O neto faz a sesta, o cabelo suado
Uma teia de aranha oscila ligeira
Na penumbra do verão.
Continuamos a espreitar
Lá para baixo.
O trinco não se moveu.
O carteiro continua à espera.
O envelope branco é um determinado futuro
Que afinal nos deixou de existir.

jef, julho 2018

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Sobre o filme «Na Praia de Chesil» de Dominic Cooke, 2017














Ora aqui estamos perante um melodrama muito bem narrado, à antiga, ao estilo inglês, da BBC, sobre um romance Ian McEwan, que coproduz e assina a adaptação do argumento.

Estamos em Inglaterra, 1962. Florence Ponting (Saoirse Ronan), uma jovem violinista, voluntariosa e sagaz, encontra Edward Mayhew (Billy Howle), um sensível estudante de História, numa sessão pacifista contra as armas nucleares, onde ela é activista. Aproximam-se, apaixonam-se e casam. Esta é a história do seu dia de núpcias num hotel da praia de Chesil. A história de Inglaterra e do mundo. A história do despertar dos afectos, da educação sexual, dos seus modos, medos e constrangimentos. A história da intimidade falhada.

Um prazer para os olhos e para os ouvidos numa suavidade triste, cerimoniosa, que merece ser contemplada, mesmo que a necessidade de tudo explicar após o dia fatal, tolde alguma fantasia que seria melhor deixar subentendida na imaginação do espectador. No centro está a bela Saoirse Ronan, actriz que preenche todo o filme, desenvolta e líder, como já nos havíamos apercebido em «Lady Bird» (Greta Gerwig, 2017).

jef, julho 2018

«Na Praia de Chesil» (On Chesil Beach) de Dominic Cooke. Com Saoirse Ronan, Emily Watson, Anne-Marie Duff, Billy Howle, Samuel West. Baseado no romance e argumento de Ian McEwan. Grã-Bretanha, 2017, Cores, 110 min.


sexta-feira, 6 de julho de 2018

Sobre o filme «Contos Cruéis da Juventude» de Nagisa Oshima, 1960.

















Provavelmente, a única coisa que una este filme a uma certa perspectiva «clássica» do cinema de Mizoguchi ou Ozu ou Kurosawa, seja o sentido poético do título. Ou talvez não. A crueldade com que o tempo vai negando a juventude e a sua vocação para o amor é o tema de todos eles.

A crueldade é, assim, muitas vezes citada pela jovem Mako (Miyuki Kuwanu) após apaixonar-se por Kyoshi (Yusuke Kawazu), jovem universitário que toma a rebeldia dos actos por suposta independência afectiva. Mako atrai velhos endinheirados pedindo-lhes boleia, acabando estes por ser assaltados por Kyoshi.

Mako e Kyoshi vivem na margem, desejam a margem, passam ao lado da família, da cidade, da política que se manifesta na rua. A sua pressa está no centro. E o centro desta segunda longa-metragem do realizador está, como sempre esteve depois, na proximidade do corpo, dos lábios, do suor, das lágrimas.

O ecrã é enorme, os olhos dos espectadores aproximam-se da tragédia que se apresenta veloz, urgente, quebrada, sem se preocupar muito com a narrativa cronológica. As cores são feéricas, tal como a paixão que faz aproximar o hiato amoroso da incompreensão, negando-a, tal como na ópera romântica mas com grandes sublinhados jazzísticos, cores feéricas, néons, planos estilizados sobre cigarros, telefones, tecidos. Uma maçã é devorada vorazmente mas em longuíssimo plano, tornando-se o epitáfio que anuncia a morte. Nouvelle Vague. Noberu Bagu.

Vou-me lembrando de filmes que obrigaram o mundo a transformar-se: «West Side Story / Amor sem Barreiras» Robert Wise / Jerome Robbins, 1961; «Fúria de Viver» Nicholas Ray, 1955; «Esplendor na Relva» Elia Kazan, 1961; «Gata em Telhado de Zinco Quente» Richard Brooks, 1958; «Pedro, o Louco» Jean-Luc Godard, 1965; «Rumble Fish / Juventude Inquieta» Francis Ford Coppola, 1984.

Um filme a rever de olhos e ouvidos bem abertos. Nagisa Oshima será sempre um poeta assumido do corpo e da luz.

jef, julho 2018

«Contos Cruéis da Juventude» (Seishun zankoku monogatari) de Nagisa Oshima. Com Miyuki Kuwano, Yûsuke Kawazu, Yoshiko Kuga, Fumio Watanabe. Música: Riichirô Manabe. Japão, 1960, Cores, 96 min.


quarta-feira, 4 de julho de 2018

Sobre o livro «Alguns Humanos» de Gustavo Pacheco. Tinta da China, 2018.

 


Do Ambystoma mexicanum (o tal axolotl, esse anfíbio de cauda e brânquia que nem sempre deseja a última metamorfose) até à Linepithema humile (a argentina formiga que tudo invadiu e pouco deixou às pobres formigas autóctones, himenóptero d'um raio!), temos muitos outros humanos.

Gustavo Pacheco é carioca, nascido em 1972. É antropólogo e diplomata e fala de cultura, comportamento, biologia e etologia. São onze contos em que os homens são tidos, como devem ser tidos na realidade, por bichos de pulsões, emoções e sonhos. Uma espécie de Esopo ou La Fontaine ou Aquilino Ribeiro, mas ao contrário: os animais vão ao Jardim Zoológico e divertem-se com as momices dos primatas evoluídos.

E o que é mais impressionante e que logo tanto cativa é a pureza da linguagem aliada ao modo rápido, astuto mas firme, de contar uma história, facto que, a cada conto, nos leva por um caminho desconhecido, intrigante, mas no final sempre por muito bem justificado.

Um livro fabuloso, no primeiro significado da palavra, para biólogos e todos os outros símios humanos.

jef, julho 2018

terça-feira, 3 de julho de 2018

Sobre o filme «Não Te Preocupes, Não Irá Longe a Pé» de Gus Van Sant, 2018
















Gus Van Sant tem um fito, uma política, um tema. E, segundo esse propósito, já fez filmes como «Elephant» (2003), «Paranoid Park» (2007) ou «Milk» (2008). Contudo, o seu último parece colocá-lo na posição de cumprir agenda e suprir a lacuna no calendário que Hollywood exige, dramatizando a história real de alguém que a sociedade americana desconsidera muito considerando depois. Drama infalível. John Callahan (1951-2010), um destravado e criativo personagem que nunca abandonou o álcool, a velocidade sobre rodas e a atitude provocatória, mesmo quando acabou numa cadeira de rodas a fazer cartoons sobre os assuntos mais «fracturantes» do dia-a-dia da América.

Pouco mais se aprende neste melodrama.

Joaquin Phoenix (John Callahan) é óptimo no seu eterno papel do agressivo-mimado, chorão-despudorado, deficiente-rejeitado, ficando em segundo plano quando exposto à influência de Donnie (um extraordinário Jonah Hill), o seu guia espiritual, sensível, rico e homossexual. Donnie ofusca Callahan porque é o personagem que mais interessa ao realizador.

Nem a bela Annu (Rooney Mara) consegue retirar o lado mais sentimental, para não dizer piegas do argumento.

Nem os belos cartoons têm tempo de se mostrar à compreensão gráfica do espectador.

Nem os decores e guarda-roupa são devidamente realçados. Nem a música do mestre Danny Elfman brilha.

Apenas esse género de clivagem sincopada de planos em flash-back nos levam ao longo da história desse verdadeiro resistente da ironia alcoólica que foi John Callahan. Um bom telefilme de domingo.

jef, junho 2018

«Não Te Preocupes, Não Irá Longe a Pé» (Don't Worry, He Won't Get Far on Foot) de Gus Van Sant. Com Joaquin Phoenix, Jonah Hill, Rooney Mara, Jack Black, Tony Greenhand, Beth Ditto e Kim Gordon. Música: Danny Elfman. EUA, 2018, Cores, 113 min.