segunda-feira, 24 de abril de 2023

Sobre o filme «Nação Valente» de Carlos Conceição, 2022















Este filme é mesmo muito interessante e fora do comum.

Tem um fio condutor único que é de ouro (ou assim parece) e sustém uma medalhinha da Nossa Senhora da Conceição. Essa medalha, entregue por uma freira missionária (Leonor Silveira) a uma acólita nativa Tchissola (Ulé Baldé), irá, já perto do final, passar das mãos da prostituta Apolónia (a extraordinária Anabela Moreira!) para as do soldado Zé (João Arrais). A primeira parte: Angola 1974. Surge então um curto genérico inicial. Depois, a acção de resistência armada (e de loucura) muda de sinal, muda de tempo, encontramo-nos entre eucaliptos, pinheiros-mansos e oliveiras. Um muro alto com arame farpado cerca o pelotão de jovens soldados resistentes ou insurgentes, oprimindo-os e protegendo-os da realidade, a recordar «A Vila» de M. Night Shyamalan (2004).

E o mais curioso é que a fantasia assumida como alegoria poética ou sarcasmo político e social não desvirtua, antes potencia o carácter de certa forma demoníaco da acção do filme. É impossível não recordar também «Thriller» de John Landis / Michael Jackson (1983).

Aliás, a beleza da fotografia de cores densas e saturadas (Vasco Viana), talvez renascentistas, sobreposta à definição sintética do som (Nuno Bento e Rafael Gonçalves Cardoso) transporta o espectador para um mundo irreal muitas vezes associado ao da música ou da publicidade.

Também a viagem da jangada pela noite em absolutos segredo e silêncio quase que me sugeriam as clássicas cenas de guerra filmadas em apoteose e desespero por Coppola. Só que neste caso,  a viagem é realizada para resgatar um enorme retábulo com a imagem de Brigitte Bardot.

O universo do poder insano da guerra, do medo, da morte e das sombras parece opor-se diametralmente ao do humor quando o déspota Coronel (Gustavo Sumpta), como prova de apreço pelo batalhão, oferece um caramelo que, depois é religiosamente dividido em oito ínfimas partes. Ou quando Apolónia, a prostituta, tenta abrir com um gancho de cabelo os cadeados salvando-os do passado e, logo depois, é ela que faz embater o jipe contra do portão, oferecendo-lhes a fuga para o presente.

E essa evasão, no crepúsculo sobre o Rio Tejo e a Ponte Vasco da Gama faz-se sob a única, a maravilhosa canção de Fausto «Como um sonho acordado» saído desse sintomático álbum «Por Este Rio Acima» (1982)!

E assim o filme de Carlos Conceição ganha o meu duplo aplauso comovido!


jef, abril 2023

«Nação Valente» de Carlos Conceição. Com João Arrais, Anabela Moreira, Gustavo Sumpta, Miguel Amorim, João Cachola, Ivo Arroja, Sílvio Vieira, Diogo Nobre, André Cabral, Ulé Baldé, Leonor Silveira, Meirinho Mendes, Agostinho Candongo, Madaleno Cape, Djucu Dabó. Argumento: Carlos Conceição. Produção: Leonor Noivo, João Matos, Luísa Homem, Pedro Pinho, Susana Nobre, Tiago Hespanha, Carlos Conceição. Fotografia: Vasco Viana. Som: Nuno Bento, Rafael Gonçalves Cardoso. Portugal, 2022, Cores, 119 min.

 

         

sábado, 22 de abril de 2023

Sobre o filme «Close» de Lukas Dhont, 2022


















Qual será a verdadeira estratégia do luto quando a infância se perde no interior da adolescência e a amizade, qualquer coisa de muito íntimo entre dinossauros de plástico, brincadeiras de espadas e guerreiros ou sestas sem fim, se transforma numa questão muito mais hormonal e sentida, invectivada pela observação natural mas sarcástica de uma sociedade que envolve oprimindo essa infância transfigurada?

No centro de um filme observador, o interior da amizade entre Léo e Rémi.

Uma reflexão silenciosa e pausada vertida na ternura avassaladora da perda e incorporada por dois grandes actores: Eden Dambrine (Léo) e Gustav de Waele (Rémi), acompanhados pelas excepcionais Émilie Dequenne (Sophie, mãe de Rémi) e Léa Drucker (Nathalie, mãe de Léo).

Talvez, o que perturbe a dureza narrativa, desvirtuando-a e tornando-a demasiado lírica e melíflua seja mesmo esse excesso repetido de beleza floral, de travellings acompanhando as corridas de bicicleta, a dureza branca do ringue do hóquei no gelo, os filtros, a luz-contraluz...

Contudo, um filme emocional sentido à flor da pele.


jef, abril 2023

«Close» de Lukas Dhont. Com Eden Dambrine, Gustav de Waele, Émilie Dequenne, Léa Drucke, Igor van Dessel, Kevin Janssens, Marc Weiss, Léon Bataille, Serine Ayari, Robin Keyaert, Herman van Slambrouck, Iven Deduytschaver, Jeffrey Vanhaeren, Hélène Theunissen, Baptiste Bataille. Argumento: Lukas Dhont e Angelo Tijssens. Produção: Michiel Dhont, Dirk Impens. Fotografia: Frank van de Eeden. Música: Valentin Hadjadj. Bélgica / França, 2022, Cores, 105 min.

 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Sobre o filme «O Azul do Cafetã» de Maryam Touzani, 2022



























É reconfortante, muito comovente até, reconhecer o modo como a realizadora dá espaço, tempo e serenidade à pequena alfaiataria tradicional na medina marroquina de Salé, onde o mestre Halim (Saleh Bakri) e da sua mulher Mina (Lubna Azabal) vai costurando com arte e afecto os mais ricos cafetãs. Há muito que não contemplávamos esse olhar pausado e amorável sobre tecidos, fios de ouro, botões ou alinhavos. E no centro está o olhar discreto e carinhoso, atento, quase silencioso, expectante de Mina sobre a paixão que Halim lhe devota. Uma paixão, no entanto, distante e temerosa, quase envergonhada, causada pela reprimida homossexualidade de Halim. Tudo decorre com normalidade e sucesso comercial, tudo parece estar equilibrado (e escondido) até que surge um jovem aprendiz com arte e vontade de aprender um velho ofício prestes a desaparecer, Youssef (Ayoub Missioui). Desde logo Mina vai olhando e apercebe-se do mudo e respeitoso entendimento entre os dois homens enquanto resiste à evolução da sua doença fatal. Alimenta-se de tangerinas numa sequência de quadros que adivinham as naturezas-mortas flamengas. Algumas tangerinas apodrecem e o cafetã azul e dourado vai sendo lentamente costurado.

Uma belíssima parábola sobre o silêncio do olhar, contada através da arte de costurar, do brilho dos tecidos e da assunção mútua de que o amor é coisa universal.


jef, janeiro 2023

«O Azul do Cafetã» (Le bleu du Caftan) de Maryam Touzani. Com Lubna Azabal, Saleh Bakri, Ayoub Missioui, Mounia Lamkimel, Abdelhamid Zoughi, Zakaria Atifi, Fatima Hilal, Mariam Lalouaz, Kholoud El Ouehabi, Amira Tiouli, Hanaa Laidi. Argumento: Maryam Touzani e Nabil Ayouch. Produção: Nabil Ayouch. Fotografia: Virginie Surdej. Música: Kristian Eidnes Andersen. França / Marrocos / Bélgica / Dinamarca, 2022, Cores, 118 min.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Sobre o filme «O Leopardo» de Luchino Visconti, 1963
















Um filme perfeito. Acima de tudo, por ser deslumbrante.

Quando o revejo (restaurado, na versão italiana integral) vou buscar o álbum «100 Dias 100 Filmes» que a Cinemateca editou por ocasião de Lisboa, Capital da Cultura 1994 e verifico novamente com espanto que ele não consta nos primeiros vinte melhores filmes europeus. Andará lá próximo. Claro que nem quero olhar para a vintena de maravilhas que o suplantam. Releio João Bénard da Costa. Nada melhor.

Além de deslumbrante, é um filme completo, sem fim, onde descubro sempre novos quadros, novas frases, novos olhares, consoante a idade com que o vou vendo ao longo da vida.

Reparo agora que é talvez um dos poucos filmes de Visconti em que o humor é um sinal do poder ancestral, aristocrático, finamente anti-regime, anti-norma e ostensivamente anti-clerical. Nesse aspecto, poder-se-ia dizer que ao dar dinheiro ao sobrinho Don Tancredi (Alain Delon) para que vá mais comodamente alistar-se nas fileiras de Garibaldi, Don Fabrizio (Burt Lancaster) exerce um poder sarcástico sobre a força juvenil de mudança, da qual a sua sobrevivência aristocrática também beneficiará. A tal volta de 360º que o mundo tem de dar, inscrita na frase repetida.

Nada mais anti-neo-realista! Em todo o filme a supremacia do vigente suplanta a miséria do oprimido e não lhe dá qualquer laivo de esperança de mundo novo.

Sim, mas é dito que as classes vão mudar, claro! Mas simplesmente para ocuparem refastelados o posto que contestam. Nada mais humorístico que a figura de Don Calogero Sedara (Paolo Stoppa), de fraque ridículo ou dando beijos repenicados na mão da anfitriã, um burguês provinciano que cobre de propriedades o dote da filha e tenta encontrar-lhe um título nobiliárquico à força.

Um facto é que tudo muda quando Visconti filma o deslumbramento que Angelica (Claudia Cardinale) provoca nos homens ao entrar na sala do jantar oferecido às forças vivas da povoação por Don Fabrizio. Os olhares deste repetem a chama da sua eterna vontade de juventude, de poder, de sexo e sedução. Contudo, as gargalhadas de Angelica, tão pouco recomendadas, vêm terminar com o repasto e dizer que afinal vai ficar tudo na mesma.

Visconti neste filme é o mestre da sedução. Os grandes planos expressionistas de Claudia Cardinale, Burt Lancaster, Alain Delon e da prima preterida Concetta (Lucilla Morlacchi) dirão tudo. Tudo mudou (dentro filme).

A partir dali, Don Fabrizio entregará a pasta ao sobrinho Tancredi verificando que já não poderá dançar a agitada mazurca com Angelica. Apenas uma última valsa. A cena de despojamento final do Príncipe de Salina perante os noivos e o quadro “A Morte do Justo” fará sempre parte da história do cinema. Sairá Don Frabrizio de cena, ajoelhando-se perante a extrema-unção do mais pobre dos pobres sicilianos.

Será, afinal, esta cena de contrição um acto de neo-realismo ou mais uma prova de conformismo perante a inevitabilidade do fim?

Uma obra impressionista que, como um caleidoscópio, sempre encontrará um modo diferente de voltar a seduzir-me.


jef, abril 2023

«O Leopardo» (Il Gattopardo) de Luchino Visconti. Com Burt Lancaster, Claudia Cardinale, Alain Delon, Paolo Stoppa, Rina Morelli, Romolo Valli, Terence Hill, Pierre Clémenti, Lucilla Morlacchi, Giuliano Gemma, Evelyn Stewart, Ottavia Piccolo, Carlo Valenzano, Brook Fuller, Anna Maria Bottini, Lola Braccini, Marino Masé, Howard Nelson Rubien, Tina Lattanzi, Marcella Rovena, Rina De Liguoro. Argumento: Luchino Visconti, Suso Cecchi D'Amico, Pasquale Festa Campanile segundo o romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Produção: Goffredo Lombardo e Pietro Notarianni. Fotografia: Giuseppe Rotunno. Música: Nino Rota e Giuseppe Verdi. Itália / França, 1963, Cores, 185 min.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Sobre o filme «Luís da Baviera» de Luchino Visconti, 1972


 




















Não queria falar em decadência ou nostalgia quando penso nos filmes de Visconti, apesar de serem substantivos veementes que bem os definiriam. Prefiro pensar que Visconti tinha (ou apresentava) uma soberba atracção pelo fim. Um romantismo genético, de coração e de estilo. A ruina, como princípio ou gesta. Cá em casa, havia uma espécie de veneração pelo realizador. Principalmente por «O Leopardo» (1963), o da frase repetida a partir do Príncipe de Salina “É preciso que tudo mude…”, o da cena dos bacios na varanda, esse que faz transpor o neorrealismo italiano para um campo sublime e oposto ao de si próprio.

Cá em casa, sempre que passava na televisão era um clássico. Esse e todos os outros, desde o tal “o carteiro toca sempre duas vezes” «Obsessão» (1943), «A Terra Treme» (1948), «Belíssima» (1952), «Senso» (1954) ou o terrível «O Intruso» (1976). Todos com o incrível peso da beleza suprema e o do fim inevitável e trágico.

Porém, com «Luís da Baviera» apenas me lembro de o ter visto em episódios e não o entendi lá muito bem. Era enorme, tinha entrevistas que cortavam a história e, horror!, acho que adormeci… (Diga-se que ainda não existiam aquelas caixas mágicas que permitem andar com o tempo televisivo em sentido retrógrado.)

Agora, agendei uma ida ao cinema através da programação do Nimas e instigado pelo entusiasmo do músico Nuno Vieira de Almeida. O cinema cheio de público, anacronicamente afastado por quase quatro horas das redes sociais, nesse enquadramento belíssimo, lentamente estético, cenicamente operático, profundamente político, sobre a queda das diversas famílias do império austro-húngaro e adjacentes, sobre a ascensão e o declínio do último sopro jactante da Europa central pré-Bismarck, da guerra franco-prussiana e da grande Alemanha de diversos reichs.

Um dos filmes mais belos de Visconti, talvez o mais político de todos os seus filmes políticos, onde as tais entrevistas judiciais para atestar a paranoia de Luís da Baviera o torna de uma actualidade cinematográfica inigualável. Virados para a câmara, declaram perante a justiça, como hoje em dia é comum no cinema documental ou de reportagem.

Um filme feito por ternos e sequenciais episódios: a confissão face à figura tutelar do clérigo (Gert Fröbe); a relação daquela que é a sua dilecta prima Sissi da Áustria, a belíssima Romy Schneider, uma espécie de coro grego ou bobo da corte que vem impor a verdade, a razão e o sorriso sobre o monarca; a relação vampiresca de Richard Wagner (Trevor Howard); a dramática aproximação à prima Sophie (Sonia Petrovna) e, por fim, a relação com o actor Joseph Kainz (Folker Bohnet), numa apologética visão do que viria a acontecer entre Visconti e o próprio actor Helmut Berger.

Nunca Visconti foi tão requintadamente sintomático sobre o fim da aristocracia e a relação familiar no interior da consanguínea monarquia europeia. Nunca terá sido tão frontal face à sexualidade e à respectiva importância na relação de poder. Nunca terá sido tão esteta a transportar o classicismo romântico para a sua arte. Nunca terá olhado de modo tão cruel para o fim da Europa e para a sua própria finitude como em «Luís da Baviera».

Ou seja, um filme para rever e para confrontar a Europa de hoje e do dia que lhe seguirá.


jef, abril 2023

«Luís da Baviera» (Ludwig) de Luchino Visconti. Com Helmut Berger, Romy Schneider, Trevor Howard, Silvana Mangano, Gert Fröbe, Helmut Griem, Izabella Telezynska, Umberto Orsini, John Moulder-Brown, Sonia Petrovna, Folker Bohnet, Heinz Moog, Adriana Asti, Marc Porel, Nora Ricci, Mark Burns, Maurizio Bonuglia, Alexander Allerson, Bert Bloch. Argumento: Luchino Visconti, Enrico Medioli. Produção: Ugo Santalucia, Robert Gordon Edwards, Dieter Geissler. Fotografia: Armando Nannuzzi. Guarda-roupa: Piero Tosi. Itália, França, Alemanha, 2072, Cores, 238 min.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Sobre o filme «Filhos de Ramsès» de Clément Cogitore, 2022











Gosto particularmente deste género de filmes onde o lado social e colectivo do género humano se cruza de modo crucial (e sintético) com a caracterização psicológica de um personagem. Todo o filme é centrado na intimidade de Ramsès que, com sensibilidade, bastante generosidade, mas muito pouco bom senso, muita mentira e esperteza saloia mas urbana, montou um negócio de sucesso como vidente num bairro multi-cultural parisiense. A pobreza é grande, a inveja é maior e Ramsès não tem descanso a partir do momento em que é assaltado por um bando de rapazes-crianças-bandidos que vivem nas ruas e jardins.

O actor Karim Leklou é surpreendente e dá o corpo e alma, a ansiedade e o desespero a essa personagem convictamente profissional mas cada vez mais angustiado, fazendo com que o espectador lhe siga a corrida uniformemente acelerada e o veja enredado nas consequências da sua mentira.

E se, na base da intriga, existe uma pergunta que nunca obterá resposta é certamente outras das razões que merece a atenção do público para um "argumento inacabado".


jef, janeiro 2023

«Filhos de Ramsès» (Goutte d'or) de Clément Cogitore. Com Karim Leklou, Malik Zidi, Elsa Wolliaston, Jawad Outouia, Elyes Dkhissi, Yilin Yang, Loubna Abidar, Djibril Bouhadi, Ahmed Benaïssa, Elsa Wolliaston, Chakib Mokhtari, Ayoub Lafdal, Adam Benhalla, Losseni Sanoko, Lacina Sanoko, Farida Ouchani. Argumento: Clément Cogitore. Produção: Jean-Christophe Reymond, Camille Marquet. Fotografia: Sylvain Verdet. Música: Eric Bentz. França, 2022, Cores, 98 min.

 

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Sobre o livro «Maurice» de E.M. Forster. Asa, 2021. Tradução de Elsa T.S. Vieira.

 

 

Afinal de contas, não sei se este será um grande livro. Dei comigo a voltar atrás para reatar ligações narrativas e descritivas, com a sensação de estar perante hiatos inexplicados; também para rever algumas linhas do diálogo; para entender como as personagens principais iam sendo caracterizadas com profundidade e, de tempos a tempos, abandonadas ao seu destino numa Inglaterra que perdera há tão pouco tempo uma das figuras mais importantes da sua estrutura socio-política recente: a rainha Vitória.

(Ou será uma questão de tradução?)

Dito isto e salientando o facto de, apesar de tudo, ser um romance que li com muito agrado, «Maurice» é histórico. O facto torna-se mais evidente quando o autor se revela nas notas finais que foi adicionando posteriormente.

Para além do facto relevante de E.M. Forster (1879-1970) ter dado indicação do texto apenas ser publicado postumamente, ou seja em 1971, quando ele o escreveu em 1913-14 ('dedicado a um novo ano mais feliz'), o autor teve ocasião de assistir à evolução cultural e criminal como a rejeição da homossexualidade evoluiu em Inglaterra referindo-se mesmo ao Relatório Wolfenden que, em 1957, recomendou que “o comportamento homossexual de comum acordo, entre adultos e em privado, não devia mais ser alvo de perseguição criminal”.

Além do mais, o autor assumiu um enlevo criativo a partir do seu contacto com o escritor e intelectual, na altura prestigiado, Edward Carpenter que vivia em Milthorpe com o seu companheiro George Merrill. Um ambiente florestal que influenciou emocional e cenicamente a última parte do livro.

Muito interessante é o modo como o autor “não defende” os seus personagens considerando o suburbano Maurice um homem lento, pouco perspicaz, que aceita, revoltado, as regras impostas pela sociedade familiar que rejeita, e Clive um homem culto mas teórico, insubmisso mas resignado, vindo de uma aristocracia rural em decadência. Quanto ao epílogo com o couteiro Alec Scudder, primeiro chantageador finalmente companheiro numa fuga através de uma floresta mais imaginada que arbórea, confere ao romance o colorido da felicidade e um volte-face salvador.

«– O Clive anda em campanha – continuou Anne. – Vai haver eleições no Outono. Finalmente conseguiu persuadi-los a persuadirem-no a candidatar-se. – Ela tinha o talento inato dos aristocratas para se anteciparem às críticas. – Agora a sério, será maravilhoso para os pobres se ele for eleito. Têm nele um verdadeiro amigo, só gostava que o soubessem.»

E na página seguinte:

«– Também tive de lidar com os pobres – disse Maurice, aceitando um pedaço de bolo –, mas não posso preocupar-me com eles. Temos de lhes dar um impulso para o bem do país em geral, mais nada. Eles não têm os nossos sentimentos. Não sofrem como nós sofreríamos no lugar deles.»

Mais do que a coragem de escrever sobre uma relação homossexual explícita, o que torna o livro ainda mais interessante é o seu lado de humor britânico e crítica feroz a classes dirigentes em contínua desagregação. Esse lado excepcional de uma cultura que vem de Horace Walpole, Charles Dickens ou Oscar Wilde e desagua nos Monty Python.


jef, abril 2023