sábado, 27 de novembro de 2021

Sobre o filme «O Amigo da Minha Amiga» de Éric Rohmer, 1987




























Existe no realizador uma brilhante fixação nos momentos de lazer (ou de férias), quando as suas personagens femininas, libertas de obrigações laborais, se concentram na própria solidão e nos nós que embaraçam o novelo da sua existência, tornando mais ou menos insuportáveis os becos de saída difícil a que as opções das suas fortes personalidades as levaram. Se isto acontecer à beira-mar ou à beira-lago, tanto melhor. A água parece ser o melhor espelho para reflectir os meandros feitos pelas intrigas destas suas “comédias e provérbios”. Será mesmo que amiga do meu amigo minha amiga se tornará? O diálogo final entre Blanche (Emmanuelle Chaulet) e Lea (Sophie Renoir), no qual cada uma pensa que a outra fala do enamorado, por entre perplexidade e ciúme, demonstra bem a mestria literária de Éric Rohmer. Afinal, e apesar das duas histórias coincidirem, elas falam sob uma troca sintomática já ocorrida entre Fabien (Eric Viellard) e Alexandre (François-Eric Gendron). (Entre o verde e o azul!)    

Pura, quase inocente, mas genial troca de casais enraizada na antiga comédia de costumes francesa tão teatral quanto revolucionária. Marivaux ou Beaumarchais!


jef, outubro 2021

«O Amigo da Minha Amiga» (L'Ami de mon Amie) de Éric Rohmer. Com Emmanuelle Chaulet, Sophie Renoir, Anne-Laure Meury, Eric Viellard, François-Eric Gendron. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Margaret Ménégoz. Fotografia: Bernard Lutic. Música: Jean-Louis Valéro. França, 1987, Cores, 103 min.

quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Sobre o filme «The Card Counter: O Jogador» de Paul Schrader, 2021




























Paul Schrader volta a levar a América ao radiologista e a colocar nas mãos do personagem uma caneta e um caderno pautado para que possa escrever e emergir do manto negro e viscoso da memória da guerra.

Em 2017, em «No Coração da Escuridão» (First Reformed), é o padre Ernst Toller (Ethan Hawke) que tenta sobreviver à perda de um filho na guerra do Iraque. Contudo, em voz-off, a reflexão escrita não é suficiente para reprimir a revolta subliminar.

Em 2021, quem escreve de modo asceta, quase monástico, é William Tell (Oscar Isaac), seguindo os passos desse padre inconformado. Na prisão, aprendeu a gostar de todas as rotinas, também as de ler e a de contar as cartas de jogar. Aprendeu a resignar-se à injustiça sofrida e a não sonhar com as medonhas atrocidades praticadas no centro de detenção de Abu Ghraib. Ou talvez não. Segue o circuito do jogo profissional americano, não desvendando o lado ilícito da sua memória que continua a fixar as figuras das cartas de jogar. Até que o caminho se cruza com o jovem Cirk (Tye Sheridan) que não desiste de vingar a destruição da família. Também com La Linda (Tiffany Haddish), angariadora financeira dos jogadores.

E tal como em «No Coração da Escuridão», a íntima vontade de esquecer vai soçobrando à ainda mais secreta vocação de vingança, levando William Tell até à fronteira da liderança moral, até ao combate férreo contra o crime de uma injustiça letal.

Um grande filme americano contra as atrocidades ilegais da guerra. Um grande filme de suspense físico e psicológico que se cumpre esteticamente e de modo majestático na cena final quando ficamos a contemplar os dedos que se tocariam, incrédulos ou confiantes, se um vidro não os separasse. (Até me lembrei da Capela Sistina ao E.T. me lembrei.)

Um dos grandes filmes de 2021.

 

jef, novembro 2021

«The Card Counter: O Jogador» (The Card Counter) de Paul Schrader. Com Oscar Isaac, Willem Dafoe, Tye Sheridan, Tiffany Haddish. Alexander Babara, Bryan Truong,  Ekaterina Baker. Argumento: Paul Schrader. Fotografia: Alexander Dynan. Música: Robert Levon Been, Giancarlo Vulcano. Produção: Braxton Pope, Lauren Mann, David Wulf, Martin Scorsese. Grã-Bretanha / China / EUA, 2021, Cores, 109 min.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Sobre o filme «O Bom Casamento» de Éric Rohmer, 1982

























Aparentemente, todas as personagens femininas de Rohmer são pessoas comuns, que estudam numa faculdade de arte em Paris, trabalham num antiquário, guiam uma Renault 4L, vivem com a mãe e a irmã perto de Le Mans. Como Sabine (Béatrice Romand) que resolve casar sem ainda ter qualquer noivo em vista. Não quer continuar a partilhar a vida com um homem casado com filhos e vida própria, como o pintor Simon (Féodor Atkine). Sabine leva a sua teoria avante com a ajuda da sua melhor amiga Clarisse (Arielle Dombasle).

Aparentemente, todas as casas por onde circulam as personagens de Rohmer parecem ligeiramente acanhadas, despreocupadas, com um interruptor a precisar de quem o aparafuse à parede, que faça as camas ou lhe dê uma limpeza.

Aparentemente, os bailes onde dançam as suas personagens, olhando de soslaio os parceiros, parecem simulacros teatrais onde os actores se movem, ansiando, desejando, retraindo-se, num à vontade vigiado de festa de aldeia.

Porém, Éric Rohmer coloca todas as personagens comuns a discursarem como ninguém discursa dento de um Renault 4L; circulando com perfeito à vontade em cenários exíguos para que os olhares se confrontem ou, ostensivamente, se neguem; dançando como só os grandes actores conseguem mal dançar para concentrar e sublinhar os seus desejos, a sua ansiedade.

Por ora, Sabine pode efectivamente não levar a sua avante mas o instinto permanece-lhe vigilante e um comboio sempre foi um espaço acanhado, propício que os olhares se voltem a cruzar. Acima de tudo, numa óptica filosófica.


jef, outubro 2021

«O Bom Casamento» (Le Beau Mariage) de Éric Rohmer. Com Béatrice Romand, André Dussollier, Féodor Atkine, Arielle Dombasle, Huguette Faget, Thamila Mezbah, Sophie Renoir, Hervé Duhamel, Pascal Greggory, Virginie Thévenet, Denise Bailly, Vincent Gauthier, Anne Mercier, Catherine Rethi, Patrick Lambert. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Margaret Ménégoz. Fotografia: Bernard Lutic. Música: Ronan Girre, Simon des Innocents. França, 1982, Cores, 93 min.

 


segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Sobre o filme «Três Andares» de Nanni Moretti, 2021


























O último filme de Nanni Moretti tem algumas características que o fazem único na sua carreira.

É um melodrama à antiga onde Nanni Moretti representa Vittorio, um juiz cuja personagem escapa ostensivamente à própria persona do realizador. O humor, se ele existe, é muito subterrâneo, está longe do lado de palhaço desenraizado e dramático que tantas vezes representou. Aqui, o drama é para levar a sério, no modo novelesco dos episódios oitocentistas onde as coincidências na intriga só revelam o lado literário do realizador, lembrando ainda que o filme chega através do romance do israelita Eshkol Nevo. Deixemo-nos pois levar pela história.

Nas cenas iniciais, através de um acontecimento trágico e nocturno passado à porta de um prédio, ficamos desde logo a saber que os factos se passarão unindo três andares e quatro famílias, cujas vidas conheceremos em três fases separadas por cinco anos. Nada mais clássico, ou matemático, nada melhor para verificarmos como é difícil conceber uma narrativa, assim cruzada no tempo, no espaço e nos afectos, também na sucessão estratégica das cenas emocionais.

Só um conjunto de actores maiores conseguiriam prender a nossa atenção nessa teia premente de vidas que se sucedem, entrecortadas, desfazendo a premissa que os distingue entre principais e secundários.

Só um exímio realizador como Nanni Moretti para conceder um palco tão amplo às lágrimas (e aos sorrisos) de um drama que parece tão comum quanto intimamente emocional, misturando as personagens sem categorias ou estractos (tal como faz Robert Altman ou, mais recentemente, talvez Jim Jarmusch ou Wes Anderson).

Um filme que se poderá tornar num desses raríssimos casos que conciliam a opinião do público com a da crítica.


jef, novembro 2021

«Três Andares» (Tre Piani) de Nanni Moretti. Com Margherita Buy, Riccardo Scamarcio, Alba Rohrwacher, Adriano Giannini, Elena Lietti, Alessandro Sperduti, Denise Tantucci, Nanni Moretti, Anna Bonaiuto, Paolo Graziosi, Tommaso Ragno, Stefano Dionisi, Gea Dall'Orto, Chiara Abalsamo, Giulia Coppari. Argumento: Nanni Moretti, Federica Pontremoli, Valia Santella baseado no romance “Tre Piani” de Eshkol Nevo. Fotografia: Michele D’Attanasio. Música: Franco Piersanti. Itália / França, 2021, Cores 119 min.

 

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Sobre o filme «Fátima» de Marco Pontecorvo, 2020



























O que me espanta neste filme é o permanente e credível clima de desconfiança, perseguição, opressão, medo, angústia e solidão a que estão expostas as três crianças: Lúcia (Stephanie Gil), Jacinta (Alejandra Howard) e Francisco (Jorge Lamelas) numa aldeia perdida entre a primeira guerra e uma república que, a custo, tentava erguer-se da miséria e da bancarrota. Um clima que nunca é desmentido, bem pelo contrário, fica sancionado por Lúcia, muito mais tarde e em clausura coimbrã, numa magnífica composição de Sónia Braga, mulher segura, provocadora, quase atrevida, quando é confrontada por Nichols (Harvey Keitel), escritor que investiga as famosas aparições marianas em Portugal. A todas as questões colocadas, ela contrapõe: «Só é preciso ter fé, só é preciso acreditar.» E com esta frase o caso recebe um ponto final irredutível, de modo tão coerente e pragmático quanto ilusório e alienado.

Sem dúvida um caso particular no cinema de orientação religiosa que deixará os crentes de cara à banda e os incréus com um sorriso amarelo nos lábios. Também um caso sério de representação de Lúcia Moniz, Carla Chambel, Joaquim de Almeida, João D'Ávila, Elmano Sancho, Ana Moreira, ou até, (espantemo-nos com o impressionante elenco!) de Luísa Cruz ou Isabel Ruth.


jef, agosto 2021

«Fátima» (Fatima) de Marco Pontecorvo. Com Sónia Braga, Harvey Keitel, Lúcia Moniz Joaquim de Almeida, Goran Visnjic, Stephanie Gil, Alejandra Howard, Jorge Lamelas, Marco D'Almeida, Joana Ribeiro, Carla Chambel, Elmano Sancho, João D'Ávila, Iris Cayatte, João Arrais, Simão Cayatte, Ivo Alexandre, Ana Moreira, Isabel Ruth, Luísa Cruz, Carla Bolito. Argumento: Marco Pontecorvo, Valerio D'Annunzio e Barbara Nicolosi. Produção: Stefano Buono, Rose Ganguzza, Marco Pontecorvo. Fotografia: Vincenzo Carpineta. Música: Paolo Buonvino. Portugal / EUA, 2020, Cores, 113 min.

 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Sobre o filme «Pauline na Praia» de Éric Rohmer, 1983






























As férias de Verão, junto ao mar ou à beira de um lago, no dolce far niente onde se espraiam o desejo e o ciúme, o mal-entendido e o amor primordial. O cenário propício para Éric Rohmer dar largas às suas magníficas diversões filosóficas sobre o poder sedutor e a recusa à respectiva sujeição.

O tema parece invariável mas a subtileza do realizador ao traduzir o âmago do afecto e a tendência da paixão para o efémero torna cada filme num acto de profundo prazer e de pura lógica.

Nesta comédia, confrontam-se quatro visões opostas sobre o amor à beira-mar: a irresistível divorcia Marion (Arielle Dombasle) que oferece umas férias à sua prima Pauline (Amanda Langlet), uma adolescente que parece ter uma visão mais adulta que os restantes, Pierre (Pascal Greggory) um professor de windsurf que leva muito a sério a sua paixão por Marion e Henri (Féodor Atkine), antropólogo, pai de uma menina pequenina, sedutor muito viajado e leviano. Como contraponto deste jogo surge a seriedade do adolescente Sylvain (Simon de La Brosse) e a divertida vendedora de amendoins Louisette (Rosette).

«Quem muito fala, ouve o que não quer» aparece como epígrafe no filme que apenas se distancia das comédias de enganos de Beaumarchais pois aqui existe uma menos política seriedade, fina e despudorada, que percorre todo o filme e culmina quando Marion e Pauline, no final, juram uma para a outra guardarem para si a versão que melhor lhes convém.

Sigamos os passos das suas mais francas ilusões.

jef, outubro 2021

«Pauline na Praia» (Pauline à la Plage) de Éric Rohmer. Com Amanda Langlet, Arielle Dombasle, Pascal Greggory, Féodor Atkine, Simon de La Brosse, Rosette. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Margaret Ménégoz. Fotografia: Néstor Almendros. Música: Jean-Louis Valéro. França, 1983, Cores, 95 min.

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Sobre o filme «Noites de Lua Cheia» de Éric Rohmer, 1984
























«Quem tem duas mulheres perde a alma, quem tem duas casas perde a razão», parece perorar o coro grego ou, do alto da dramaturgia, o deus ex machina chamado Éric Rohmer. Um facto é que nunca mais esqueci tal máxima e também o respectivo filme quando o vi em estreia na sala de cinema.

Na facilidade de contar uma história que até parece nem ser uma história vai costurando recados, frases, truques de narrativa, entre o vai e vem das personagens. Aqui, a figura feminina de Rohmer é Louise (Pascale Ogier) que avança na sua certeza teimosa de amar sem prisões, de ter um amigo confidente, Octave (Fabrice Luchini), viver nos arredores com o companheiro Rémi (Tchéky Karyo), decorar um estúdio em Paris onde pernoita quando perde o último comboio. Louise deseja usufruir da solidão e encontrar-se com o mundo que só a ela pertence. Digamos que a insatisfação Louise é a contrária da insatisfação de Delphine em «O Raio Verde» (1986). Louise quer reencontrar-se na solidão mantendo-se dentro do mundo, enquanto Delphine quer erradicar a solidão demostrando ao mundo que esta não é o cerne do problema.

Contudo a cidade de Paris não é uma aldeia assim tão grande e os seus caminhos podem ser muito mais simples e directos do que aparentam. Se o choro de Delphine em «O Raio Verde» é um lamento pelo desajustado universo em seu redor, as lágrimas de Louise em «Noites de Lua Cheia» são de pura melancolia pela constatação do seu próprio desalinhamento face ao dos restantes planetas.

Éric Rohmer, um mestre em contar histórias com um pudor despudorado pela intimidade das personagens que se atrevem a entrar nos seus argumentos.


jef, outubro 2021

«Noites de Lua Cheia» (Les Nuits de la Pleine Lune) de Éric Rohmer. Com Pascale Ogier, Tchéky Karyo, Fabrice Luchini, Virginie Thévenet, Christian Vadim, László Szabó, Lisa Garneri, Mathieu Schiffman, Anne-Séverine Liotard, Hervé Grandsart. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Margaret Ménégoz. Fotografia: Renato Berta. Música: Jacno Elli Medeiros. França, 1984, Cores, 101 min.