sexta-feira, 27 de maio de 2022

Sobre o disco «Get on Board» de Taj Mahal & Ry Cooder, Nonesuch / Perro Verde, 2022



 








Há discos assim.

Lá pela década de 60 do século passado, Taj Mahal e Ry Cooder andaram pelos «Rising Sons» e a partir dali (ou mesmo antes) foram reconstruindo um mundo único, lógico, sólido, criativo, repleto das diversas caras que a música popular da América (e também a música popular de todo o mundo) forneceu à fantasia universal do blues, da folk, da country, da texmex, do rhythm’ blues e por aí fora…

São sete décadas condensadas em onze canções livres, absolutamente livres, registadas em som directo, onde Taj Mahal (80 anos) e Ry Cooder (75 anos) – acompanhados pela percussão e baixo de Joachim Cooder – dão largas ao improviso sincero e leal, às ganas da alegria sentida por tantos anos de cumplicidade e busca das razões, talvez inexistentes, da música popular.

Ou me engano muito ou o meu fascínio por esta música, tão simples, cantarolável, dançável, talvez mesmo infantil, vem do génio com que lhe colocam todas as possíveis variações em cada acorde. Talvez um pouco como acontece na erudição da música barroca que vive tanto da linha melódica de base, como dos arpejos, codas e fugas com que depois a alindam. Por isso, gosto tanto de blues como de Bach.

Diz Ry Cooder que ficou fascinado pelos mistérios e possibilidades ouvidos num LP 10’’ aos 12 anos: «Get On Board: Negro Folksongs by the Folk Masters» com as canções de Sonny Terry, Brownie McGhee e Coyal McMahan. Inventivo, encriptado, movediço, livre, irreverente e, por tudo isto, tão futurista.

Diz Taj Mahal: «Brownie McGhee & Sonny Terry, Rev. Gary Davis! Um trio de Blues Rascals (blues “patifes”) – se tal coisa alguma vez existiu –, no ombro do qual agora nós nos apoiámos e construímos.»

Ouvindo bem, é tão maravilhosa a música da América!


jef, maio 2022

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Sobre o filme «Paris 13» de Jacques Audiard, 2021


























Esta parábola sexual tem por premissa a imagem de que o sexo e o amor podem salvar a cidade. Na memória surgiu-me um outro filme que argumentava igualmente que a colmeia urbana seria redimida através da reconciliação amorável dos corpos e dos sexos: essa bela peça cinematográfica, sem classificação possível, chamada «Shortbus» de John Cameron Mitchell (2006). Neste último caso, a cidade a ser salva é Nova Iorque do pós-11 de Setembro. Agora, no filme de Jacques Audiard é a cidade de Paris da actualidade.

Tudo se passa no velho 13º arrondissement enclausurado na arquitectura vertical do aço, betão e vidro, multilinguístico, jovem, estudantil, cheio de trabalho precário e descartável. Uma cidade fortuita e acelerada, com encontros e desencontros reais e virtuais, com solidão e ansiedade, contudo ainda centrada na estratégia dos corpos reunidos como consumação da proximidade emocional. Nesse aspecto, «Paris 13» é uma comédia romântica desesperada, um divertimento ou scherzo angustiado. Uma espécie de comédia triste e simbólica tentando copiar o proverbial modo cinematográfico de Éric Rohmer.

A história é simples. Camille (Makita Samba) procura um quarto para alugar em casa de Émilie (Lucie Zhang) que pretende uma rapariga mas sai-lhe assim um rapaz com nome de rapariga. Ela trabalha num call-center. Ele é professor da escola Fernand Léger (nem de propósito, pois a bela fotografia de Paul Guilhaume mostra-nos uma cidade intensamente geométrica, plana e realista). Camille pretende fazer uma pausa antes de embarcar no doutoramento mas acaba a fazer um biscate na agência imobiliária de um amigo. Reclama por ajudante e surge-lhe Nora (Noémie Merlant) que gostaria de cursar direito mas, por virtuais circunstâncias da vida, vai conhecer Amber Sweet (Jehnny Beth) que trabalha no etéreo mundo das plataformas virtuais. Só isto.

Émilie é inconstante, exigente, volúvel e apaixonada. Camille é obstinado, sério, amoroso e apaixonado. Nora deseja a mudança mas busca qualquer coisa de que não tem bem a certeza.

Um filme sobre a procura permanente da redenção de uma cidade. Uma cidade que se moderniza afectivamente a partir dos sobressaltos vindos do passado e da pulsão incerta com que o futuro a ameaça.


jef, maio 2022

«Paris 13» (Les Olympiades, Paris 13e) de Jacques Audiard. Com Lucie Zhang, Makita Samba, Noémie Merlant, Jehnny Beth, Camille Léon-Fucien, Oceane Cairaty, Anaïde Rozam, Pol White, Rong-Ying Yang, Geneviève Doang, Xing Xing Cheng. Argumento: Jacques Audiard, Céline Sciamma, Léa Mysius, Adrian Tomine, a partir de três contos deste última. Produção: Valérie Schermann e Jacques Audiard. Fotografia: Paul Guilhaume. Música: Rone. França, 2021, Cores, 105 min.

 

quinta-feira, 12 de maio de 2022

Sobre o filme «Conto de Inverno» de Éric Rohmer, 1992




















Este conto (ou fábula ou parábola) apresenta, talvez, um das mais complexas personagens femininas de Éric Rohmer: Félicie (interpretada por uma mesmo genial Charlotte Véry) que vive sem amargura para um amor passado, fixado na memória pela crença na reminiscência de um Verão encantado, e por isso eternamente juvenil e amoroso. Como âncora e produto real dessa recordação mágica, Félicie tem a seu cargo, amoroso e genético, Elise (Ava Loraschi), uma menina de cinco anos, com a qual vive em casa de sua mãe (Christiane Desbois). Mas a absoluta crença no porvir não lhe permite ligar-se em definitivo ao bibliotecário filósofo Loïc (Hervé Furic) ou ao cabeleireiro Maxence (Michel Voletti) que a amam verdadeiramente. Para ela, é tudo uma questão de tempo. Um tempo credor do próprio tempo, compensador, salvador, que faz Félicie emocionar-se até às lágrimas quando assiste à representação de «Conto de Inverno» de Shakespeare, também ele credor da eterna esperança num futuro alicerçado na vontade férrea do passado.

Sim, «Conto de Inverno» de Éric Rohmer é um filme mágico, terno e muito simples. Tão simples quanto seja acreditarmos todos os dias num futuro bom.


jef, maio 2022

«Conto de Inverno» (Conte d’Hiver) de Éric Rohmer. Com Charlotte Véry, Frédéric Van Den Driessche, Michel Voletti, Hervé Furic, Ava Loraschi, Christiane Desbois, Rosette, Jean-Luc Revol, Haydée Caillot, Jean-Claude Biette, Marie Rivière. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Margaret Ménégoz. Fotografia: Luc Pagès. Música: Sébastien Erms. França, 1992, Cores, 114 min.

               

Sobre o livro «Hot» de André Ruivo. Chili Com Carne, 2022






















O erotismo (e a pornografia) é, desde sempre, a expressão única da humanidade do que é, por natureza, o lugar mais privado (para não dizer íntimo) do homem e da mulher. Esse lugar abstracto que se constrói quando está a sós com o seu corpo ou quando está acompanhado e explora o corpo de outrem com o seu próprio corpo. Uma expressão provocatória ou de contravenção face à natureza desses actos, digamos, dérmicos. Uma rebelião contra ainda alguma sociedade moral e religiosa. Um modo claro, literário ou gráfico, de extravasar, prolongar, comungar, tornar perene, o prazer sexual que, se é constituído por preliminares, também, para males dos seus pecados, incorpora o irrevogável fim!

Mas representar a pele dos amantes em tom cor-de-rosa bebé e o seu corpo entre amáveis contornos rechonchudos, retira absolutamente a carga erótica à pulsão sexual do grafismo. É esta a maior provocação que André Ruivo faz não ao erotismo mas ao mais alto estatuto que a sociedade ocidental confere hoje à banalização da sua representação.

Esqueçamos os lençóis de cetim ou os colchões de água. Esqueçam o mestre Vilhena. Nada disso! André Ruivo deposita a sua incontornável tendência para a amabilidade das personagens nestes desenhos, acarinhando-as em lençóis ternurentos e mesmo muito cómicos.

Tal como em Quino, Sempé ou Luís Afonso, as figuras de André Ruivo fazem parte de um bairro onde as criaturas, cerimoniosamente, dirão sempre “Olá! Boa noite! Como está?» antes de praticarem qualquer acto, sexual ou de outra natureza.


jef, maio 2022

quinta-feira, 5 de maio de 2022

Sobre o disco «Shostakovich: Violin Concerto n.º 2; Schumann / Shostakovich: Violin Concerto in A minor» por Gidon Kremer e a Boston Symphony Orchestra (Seiji Ozawa), 1992. Deustche Grammophon, 1994.








Para acabar de vez com o romantismo nos Concertos.

Tomemos o Concerto n.º 2 para violino de Chostakovich pelo seu lado mais violentamente existencialista, denso, duro, psicanalítico. No centro, essa personagem principal, o virtuoso violinista, aqui o enorme Gidon Kremer, no original dedicado ao amigo do compositor, o violinista David Oistrakh, em 1963. O instrumento solista surge logo no primeiro andamento (Moderato) como um ser solitário, antecedido ou perseguido por uma orquestra que parece morder-lhe os calcanhares, lançando deixas de futuras melodias ou espicaçando-o com meios-tons que surgem como figuras mais ou menos sinistras que o envolvem em trechos tocados pelos diversos naipes isolados de instrumentos, como motivos de uma fantasia ou de um bailado. No seguinte, Adagio, a orquestra, em uníssono, torna-se na soturna rainha da noite ou um certo sudário para um quase solilóquio de um violino em profunda instrospecção desesperada. No final, a orquestra volta luminosa para dar entrada, em continuo, ao terceiro andamento (Adagio – Allegro) onde o violino se reconcilia alegremente com os restantes músicos que, ao contrário dos andamentos precedentes, parece ajudarem o violino a revelar-se, finalmente, em melodias virtuosas e sincopadas, como piruetas circenses ou pontuações cinematográficas, composições estas que o compositor bem conhecia.

A nova orquestração para a transposição do Concerto para violoncelo op. 129 de Robert Schumann, demostra, pelo contrário, como o romantismo pode ser bafejado por essa dose do espectro sincero e modernista de Chostakovich (1963). Nos três andamentos (não muito rápido / lento / muito vivo) é a orquestra que toma o pulso ao ritmo e entrega ao violino solista, acompanhando-o, o balancear de uma certa valsa que se alegra ou entristece mas nunca faz perder o seu par.

Se não caírem os parentes musicais na lama (e cinema à parte), confesso que me lembrei de Gustav Mahler, Franz Schubert e Bernard Herrmann.

Viva Dmitri Chostakovich e Gidon Kremer (e a Orquestra Sinfónica de Boston e o maestro Seiji Ozawa)!


jef, maio 2022

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Sobre o filme «Conto de Verão» de Éric Rohmer, 1996

 



























Talvez o «Conto de Verão» traduza de modo mais simples a essência de Rohmer. Talvez vá ao osso dessa muito própria sabedoria cinematográfica ao narrar histórias que quase nem histórias seriam, fornecendo-lhes a profundidade literária e, deste modo, conferindo ao tempo efémero, digamos esquecível, um prazo sem fim.

No fundo, com Rohmer, entretemo-nos, divertimo-nos com todos os diálogos finos e truques delicados que fazem de banais férias de Verão na Bretanha esses momentos universais que não nos saem da memória, por mais que nos esforcemos. Passado tão simples, tão belo, tão puro. A sua inteligência reside em revelar a nostalgia como matéria estruturante para a confirmação do tempo que virá.

Gaspard (Melvil Poupaud) desembarca numa das praias da Bretanha com uma guitarra na mão, empenhado em isolar-se para compor uma canção de marinheiros. Aguarda, no entanto, a chegada da volúvel namorada Léna (Aurelia Nolin) que partiu para Espanha de férias com a irmã. Gaspard encontra Margot (Amanda Langlet), a trabalhar num biscate de Verão na creperia da tia, e tornam-se amigos, mesmo mais do que confidentes. Certa noite, encontra a fogosa Solène (Gwenaëlle Simon) numa boite que tão bem saberá cantar a sua canção de marinheiros. Gaspard não se decide pois encontra nas três raparigas características complementares e extraordinárias. E principalmente, Gaspard está de férias.

Rohmer sabe como ninguém colocar o quotidiano das praias e do Verão em palavras dignas de teatro onde as personagens circulam displicentemente por um magnífico cenário doméstico mas que parece sempre ir além do infinito.


jef, maio 2022

«Conto de Verão» (Conte d’Été) de Éric Rohmer. Com Melvil Poupaud, Amanda Langlet, Gwenaëlle Simon, Aurelia Nolin, Aimé Lefèvre, Alain Guellaff, Evelyne Lahana, Yves Guérin, Franck Cabot-David. Argumento: Éric Rohmer. Produção: Françoise Etchegaray, Margaret Ménégoz. Fotografia: Diane Baratier. Música: Philippe Eidel, Sébastien Erms. França, 1996, Cores, 113 min.

               

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Sobre o disco «The Prodigal Son» de Ry Cooder, Fantasy / Perro Verde / Caroline International, 2018


 








A cidade de Ry Cooder é uma cidade gigante, bela e consciente, embora agreste e solitária. Deus paira sobre as ruas, apela à oração mas segue em frente. Anda muito ocupado ou aguarda por uma esmola ou gorjeta para revelar ao filho pródigo a verdadeira dimensão da sua busca eterna. A verdadeira religião está na resignação, na aquietação de quem espera e espera e, devotamente, vai entristecendo.

A enorme cidade é para os penitentes.

Ry Cooder sabe que a América também é enorme e bela, e toda ela cabe na consciência magoada das suas canções universais. Tão simples, tão complexas, tão populares e eruditas. As suas guitarras, bandolins e banjos gemem ou choram ou bradam esse inesquecível blues-folk-gospel. Inesquecível e viciante.

Amável, provocador, político, contemporâneo!

Por isso, a América é uma grande capital. Por isso, Ry Cooder é um grande músico, de consciência e coração maiores.

Por isso, coleciono-lhe os discos.

E a terceira faixa (Ry Cooder / Joachim Cooder) “Gentrification” assim dita:


standing on the corner, spending my time

out of a job, not earning a dime

lady steps up, says i suppose

you're a stylish young man by the looks of your clothes

 

she said trust me and take a little tip

this building's been sold to Johnny Depp

take the buyout, relocate

the Googlemen are coming downtown, so don't be late

 

i said this is my apartment just a hole in the wall

got to sleep in the kitchen with your feets in the hall

no hot water, no windows na’ do's

Got to make it past all the real estate agents, junkies, and ho's

 

i live in the heart of the city, ain't no coffee shops around

i heard the Googlemen drink so much coffee, I think they might drown

gentrification is here, one thing i know

you can't stand pat, I declare you got to step it up and go

 

gentrification is here, sho' is worryin' my mind

can't understand why an uptown Googleman wants

a downtown room like mine


jef, maio 2022