segunda-feira, 27 de março de 2023

Sobre o filme «Great Yarmouth: Provisional Figures» de Marco Martins, 2022





















Marco Martins («Alice», 2005 ou «São Jorge», 2016) coloca a sociedade deprimida na degradada colónia balnear de Great Yarmouth, no Leste de Inglaterra. É o cenário onde se movem as câmaras de filmar. No centro desta, a exploração dos emigrantes portugueses que eram exportados no final de 2019, o Brexit vinha aí, como carne de peru para serem explorados nos matadouros-fábrica de processamento de carne daquelas aves. O núcleo é ocupado por Tânia, a controleira e exploradora-mor daquelas hordas de miseráveis que mal sobrevivem entre os prédios infectos onde dormem e o sangue e fezes das aves que chegam para serem mortas e depenadas em condições extremas. A alma de Tânia é a actriz Beatriz Batarda. A verdadeira alma da actriz como que é sugada numa interpretação para a história do teatro. Acredito que tenha sido inesquecível para os actores com quem contracenou (tal como o é para os espectadores!) essa arrebatadora entrega corporal e do ânimo de Beatriz Batarda que, em crescendo de exaustão, é finalmente dilacerada e exterminada pela paixão por Carlos (Nuno Lopes), um dos emigrantes que chega questionando o paradeiro do seu irmão Cardoso (Hugo Bentes), que anda a ser perseguido pelos usurários. Paixão ainda manchada mais a negro pela chantagem da esposa grávida de Cardoso.

Tudo envolto na luz lúgubre dos corredores e dos quartos onde se amontoam deploráveis os emigrantes, na solidão das sombras, das paredes e tectos deteriorados, em imagens de abstracção plástica lembrando os painéis criados pelo pintor catalão Tàpies, na composição estética com os galgos de Raúl (Romeu Runa) a recordar o impacto cénico de um dos grandes filmes de Mike Leigh, «Nu», 1993.

Contudo, o filme, em certa medida, parece depois soçobrar, perdendo energia dramática, perante a genialidade de Beatriz Batarda (e tanto se fala de Kate Blanchet no hollywoodesco «Tár»!); perante a força bruta das interpretações de Nuno Lopes, Rita Cabaço ou Romeu Runa; face a um certo deslumbramento estilizado da fotografia de João Ribeiro; do sofrimento agonizante das pobres aves; da poética alegórica das aves que migram sobre um sapal que vai perdendo a densidade cosmopolita e ornitológica.

Um excesso estético que, todavia, não retira a necessidade de se ir ao cinema ver um dos importantes filmes da forte e crescente cinematografia portuguesa.

 

jef, março 2023

«Great Yarmouth: Provisional Figures» de Marco Martins. Com Beatriz Batarda, Nuno Lopes, Kris Hitchen, Romeu Runa, Rita Cabaço, Hugo Bentes, Robert Elliot, Michael Rawson, Joseph Ross, Eve Woods, Félix Magar Phibbs, Craig Smith, Kerry Gedge, Anna Frostic. Argumento: Marco Martins e Ricardo Adolfo. Produção: Kamilla Hodol, Filipa Reis. Fotografia: João Ribeiro. Música: Jim Williams. Guarda-roupa: Isabel Carmona. Portugal / França, 2022, Cores, 113 min.

 

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