domingo, 23 de julho de 2023

Sobre o livro «A Consciência de Zeno» de Italo Svevo. Dom Quixote, 2009 (1923). Tradução de Maria Franco e Cabral do Nascimento.


 









Será que um livro sobrevive a uma tradução heterodoxa, com princípios sintácticos e vocabulário vindos do outro lado do Atlântico, e uma revisão apressada, mal-amanhada (mesmo com a advertência inicial de que foi efectuada “uma mera actualização ortográfica”)? Certamente que um mau livro acabaria absolutamente obliterado mas «A Consciência de Zeno» de Italo Svevo sobrevive a todas as tropelias, mesmo com a nossa leitura interrompida nas 434 páginas por constantes “quebras de rede” ou com o “sistema a ir abaixo” de cinco em cinco linhas. Por que é um livro soberbo, de um humor tão fino, quase de escárnio aristocrático, de uma pureza de estilo e consideração social e política que remonta ao mais entusiasmante catálogo oitocentista pós-romântico, obtém esta sumária consideração editorial? Avancemos.

Dir-se-ia que Zeno Cosini vive desafogadamente e sem grandes preocupações em Trieste, naquela cidade na esquina da Península de Ístria do Adriático, esquina também dos conflitos bélicos e geográficos mais confusos da Europa. Porém, Zeno vive angustiado com a própria consciência dos actos praticados, actos por praticar ou simplesmente sugeridos. Vive entre a decisão racional de desejar eternamente deixar de fumar; de seguir o curso de Química ou o de Direito, ou nenhum deles; de ter o firme propósito de casar e pertencer à família Malfenti; de ser um comerciante de sucesso como o seu patrono Olivi; de estar consciente de que a doença é um ser endógeno ao próprio corpo e que lhe dá a dimensão, por oposição, da felicidade e da alegria que devem ser atingidas a cada dia que passa. Mas devemos sempre optar por uma boa doença bem reconhecida e categórica. Zeno também deve ter uma amante, como manda a lei da viril compita no porto de Trieste. Também deve praticar a bondade e apoiar comercialmente Guido que lhe roubou o coração de Adelina.

Eis um romance que faz parte de um conjunto de obras maiores que poderia dar o título de livros sobre os “homens sem qualidades” (Copyright Robert Musil), aqueles que tentam cair de novo mas de um modo cada vez mais elegante. Uma estante de obras onde posso incluir «Um, Ninguém e Cem Mil» de Luigi Pirandello, «O Crime de Lorde Arthur Savile» de Oscar Wilde, «A Noite do Professor Andersen» Dag Solstad ou «Bartleby de Herman Melville.

Este livro tem a particularidade de se apresentar de um modo amplo, eclético e futurista. Não é por acaso que Zeno começa a escrever as memórias por sugestão do médico que lhe prescreve amiúde consultas de Psicanálise. Zeno detesta o médico e odeia o método mas continua a escrever as memórias (falsas) para o psicanalista se consolar. Até que a guerra estala. E ele tem de contornar a colina para ir ter com a família que está de veraneio em Lucinico, precisamente aquela fronteira perversa entre a Itália e o império Austro-húngaro. Que fazer… ele que passeava, que nem trazia chapéu e não tomara aindao seu leite com café?

Entre a Psicanálise e a Consciência, entre o Remorso, a Intuição, o Instinto e o Erro, eis um monumento de prosa inteligente e satírica, a que com um sorriso diria ser um romance “anti-Madame Bovary”!

(Vou ter de investigar a recente edição deste romance da Penguin (2023), com tradução de Ana Cláudia Santos e introdução do grande Gonçalo M. Tavares.)


jef, junho 2023)

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