quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Sobre o livro «No Bico da Cegonha» de Ricardo Cabaça. Urutau, 2022


 









Gosto de ler teatro. Com o meu tempo, a minha imaginação, o meu passado, as minhas supostas didascálias. Parecem peças que circulam, muito abstractas, suspensas, nesse modo de substanciar o que é efémero e fantasioso.

Ricardo Cabaça, também encenador, junta quatro peças contemporâneas sobre o eterno contemporâneo, onde as personagens vivem no e do mundo onírico do engano e da manipulação. Nada mais clássico.

“Esqueletos vivem dentro de sonhos”: uma estranha mulher vê-se aprisionada num aquário e é mostrada como atracção de circo. Quem assim a expõe é o marinheiro que, afinal, se encontra preso nos sonhos dela, dessa estranha mulher que se cobre de escamas, deambulando, antes, pelos delírios de um irmão e de uma irmã que se julgam siameses, sentados na borda de uma banheira.

Fake News: Naked Fews” (acto único): m.a.u.r.o., d.a.n.i. e m.a.r.i.o. são personagens-anagramas que elucidam sobre o modo actual de olhar a verdade de uma realidade que surge como fictícia ou virtual, multiplicada e falseada por milhões de manipuladores. Eles vêm esclarecer, pedir o apoio e solidariedade do público, enlaçando-o, proclamando que irão aniliquilar as fake-news com o extraordinário método – as naked fews. Contudo…

“Ninguém morre ao domingo” (acto único): no quarto, uma criança está sozinha e brinca às famílias fazendo girar um velho carrocel desenterrado. Um thriller infantil onde todos circulam num terreno minado. “Ninguém morre ao domingo?”, pergunta. “Ao domingo não.”, responde o pai. “Nunca é domingo para toda a gente.”, corrige a mãe.

“Anti-Benjamim” (acto único): depois de uma visita ao laboratório, Óscar, conhecido dramaturgo, é aliciado por Eliza, directora de marketing. No entanto, a voz desta parece ser mecânica, programa, não natural. Surge fatal. Quem vencerá?

Eu gosto de ler teatro pois, na real realidade, o teatro é a mais benévola e esclarecida das manipulações. Se no teatro a sério, actores e plateia estão cientes e participam convictos dessa boa mentira, na leitura de uma peça o leitor está só mas é rei e senhor do seu tempo e do seu espaço únicos.

Ricardo Cabaça interpela e interpreta com sagacidade as origens da permanente ansiedade do nosso actual dia-a-dia.


jef, fevereiro 2023

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