Como deve ser difícil traduzir um livro como «Um Lugar para Mungo».
E esse modo verbal vindo directo de uma sociedade à beira da ruptura por todos
os cantos. Novamente («Shuggie Bain», Douglas Stuart 2021), os arrabaldes de
Glasgow, os bairros sociais, o desemprego, nem carvão, nem aço, nem estaleiros,
apenas uma política inferior e musculada. Margaret Thatcher, 1980. O álcool, a
droga, a pobreza, o desamparo. E a testosterona. A agressividade atroz entre as
tribos protestantes e católicas como diversão primordial de fim-de-semana. O
sangue e os ossos partidos. A subjugação à supremacia masculina como vínculo mais
distinto de uma sociedade. Um bairro, Um prédio, umas escadas com um vitral
luminoso em cada patamar, em cada lar um esconderijo mal dissimulado. Ali vive
Mungo, a irmã Jodie, a sua protecção talvez também o irmão Hamish, a sua ameaça.
A mãe Mo-Maw, sigla usada nos Alcoólicos Anónimos, já não mora ali. Do outro
lado, pelas janelas das traseiras, Mungo diverte-se em trejeitos e momices com
James. Mungo tem 15 anos, James um pouco mais velho, é católico e tem um pombal
num descampado por perto. Uma amizade quase infantil que se vai aproximando irremediavelmente
da paixão. Porém e por todos os motivos, ela é proibida.
O romance é escrito de tal modo que a leitura se torna compulsiva
apesar de (ou talvez por isso mesmo) sabermos da tragédia iminente. Em diálogo
constante, com descrições rápidas e microscópicas, por vezes infligindo golpes
radicais narrativos. É-nos apresentado em dois tempos diferentes: “Maio seguinte”
e “Janeiro passado” que se aproximam numa vertigem de ansiedade,
miséria e abandono, até assistirmos à sua conclusão, em climax apoteótico de peça
de teatro, em que todos os agentes e toda acção se unem, à mesma hora, no
terreiro frente ao hospital, junto a uma rulote de “bifanas” escocesas.
Douglas Stuart tem um dom especial para fazer fluir o
melodrama através do modo muito especial em emprestar sensibilidade e ternura
às personagens, mas também raiva e revolta por uma injustiça tão real e dilacerante.
(O realizador de cinema Douglas Sirk, certamente ficaria curioso pelos enredos
do seu homónimo!)
Será Douglas Stuart um escritor neo-neo-realista?
jef, janeiro 2024
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