Ora! Ora!
Imagine que o Sol se revolta contra Galileu Galilei e vai de
andar desenfreadamente à volta da Terra sem tropeçar sequer na Lua.
Imagine que as galerias Uffizi começam a adquirir Rui Chafes
por insuspeita ordem sentimental e todos acorrem a aplaudir o Baco de Caravaggio
suspenso num imponderável arame.
Imagine que começam a citar John Cage, Wittgenstein ou Husserl
logo ao abrir da primeira classe da instrução pública, por exigência da lógica,
dos símbolos ou da lesa-majestade.
Imagine-se que algum iconoclasta resolve adorar a cultura
pimba, as flores de plástico, a fastfood, que lhes dedica imagens coloridas, recita
belas mantras, evangeliza por textos puros. Imagine que, sobre tudo isso, ainda
sorri como se nada fosse.
Imagine que a ciência se transforma numa arte como todas as
demais artes não figurativas. Apenas por exacto deleite de conhecer, de criar e de provocar a conversa.
Imagine a natureza a interrogar-se sobre a gravidade, a
tensão superficial dos líquidos, a impenetrabilidade dos corpos, a transformação
da matéria em vácuo, a energia potencial e o respectivo halo cinemático.
Imagine ainda um fogo a arder sem ser visto, uma ferida que
dói sem se sentir, uma dor a desatinar sem doer, um cuidar que se ganha por se
perder, uma lealdade a matar e a vencer o vencedor, um andar solitário por
entre o mundo.
Ora!
Ficará esclarecido que o coração humano, algum dia, causará
amizade favorável no próprio coração humano, mesmo sabendo que tão
contraditório é este ao ser que o compreende. Tão contraditório que chega a compreender
o seu próprio Amor…
…e Camões que se perca a imaginar rimas sérias para sonetos
tolos.
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