quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Natureza Morta












As câmaras de vigilância do museu não podiam registar os meus actos porque os meus actos dependiam dos meus pensamentos. Fossem eles quais fossem. E, até ver, tais impulsos electro-magnéticos ainda não podiam ser registados pelas maquinetas de aspecto vetusto que me olhavam de esguelha, do tecto. Em segundo lugar, os meus pensamentos permaneciam secretos, não os revelara a ninguém. Ninguém estava a meu lado e eu queria assim. As pinturas não se vêem a dois ou a três, ou a uma multidão. Apenas a um e, mesmo assim, quantas vezes, torna-se complicado porque, um em cada um, seremos vários. Como o outro diria. Finalmente, não nos podemos dar ao luxo de desperdiçar, neste mundo, o momento raro em que nos deixam estar a sós.

E mesmo que me culpe de ser vários, eu gosto de contemplar uma obra de arte com o meu tempo. Longe do tempo alheio.

Contemplar sozinho uma natureza morta.

«Bodegón con un perro y un gato». Jan Fyt. Vindo das artes da Flandres para o Prado e deste até Lisboa. Um século XVII de naturalismo extemporâneo, decadente e presunçoso, atravancado de barroco, cheio de bichos a fino recorte e cores vivas, apesar de mortos. Balas frias, pescoços degolados. Algum deus a espreitar. Hiper-realismo extravagante a lembrar um qualquer pré-expressionismo. Um absurdo quase nojento, por surrealista!

Enfim, esquizofrenia crítica. Isto deixa qualquer um uma pilha de nervos! Até dá ganas…

Por que não pego eu no canivete disfarçado de caneta que sempre trago no fundo do bolso (não vá a fome apertar e ansiar por uma maçã) e esfaqueio a Natureza Morta que se apresenta na minha frente?

Still Life. Ainda.

E, ainda por cima, estamos a sós comigos mesmos.  

Ou talvez não.

Afinal, não estarei realmente a sós com os meus eventuais eus e os arbítrios pouco livres. No corredor de acesso, um moço, de farda Securitas, costas direitas e nome na lapela, está bastante adormecido mas suficientemente vigilante.

Não o farei para já. Aguardo. Há tempo de sobra. Um tédio pequeno.

Contudo, este pensamento não registado pelas câmaras de vigilância deu-me uma fome súbita e danada.

«Por favor, pode indicar-me o caminho mais rápido para a entrada? Preciso de ir deixar rapidamente no bengaleiro este canivete… e a minha dupla consciência.
Já agora, a cafetaria está aberta?»

jef, janeiro 2016

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