quinta-feira, 27 de julho de 2017

Sobre o filme «As Falsas Confidências» de Luc Bondy, 2016



















Cinema Teatro Teatro Cinema. Em jeito de crónica.
Marivaux tem um efeito muito benéfico na minha memória, logo, concorre fortemente para a minha compreensão do lugar que habito.
Não sou capaz de esquecer a subida ao Capitólio, no Parque Mayer, por umas escadas rolantes tremelicantes, empurrado pela minha Mãe, e por ela acompanhado, para ver «A Ilha dos Escravos» (e a «Herança») pelo tão recente Teatro da Cornucópia. 1974.
Lembro-me de muitas almofadas e dos actores pisarem sem pisar, em desequilíbrio aparente, uma ilha onde os náufragos pretendiam mudar de estratégia. Criados a quererem ser patrões, patrões a seduzirem criadas que desejam as mordomias da patroa. Na altura, não entendi como aquelas comédias estavam na origem de uma nova ideia de Revolução. Não a dos Cravos, mas a da Bastilha. Marivaux, Beaumarchais…
Não entendi que a comédia trazia dentro a diversão mas também o modo diferente. Continha o tempo das palavras que faz sentido no interior da elegância das ideias. Era adolescente e espantava-me com as ruas, os plenários, as palavras e as cantigas como armas.
Mas Marivaux lá ficou nos interstícios da memória, como a Cornucópia, o espaço do Capitólio, a Revolução. Também a minha Mãe. Desmesurando o meu Tempo e o meu Lugar, para sempre. Assim Sou.
Reencontro-o em «As Falsas Confidências», num belo texto sobre praticamente nada, apenas o amor e o dever da compreensão do outro e a diversão do mal-entendido e da mentira como princípio de sedução, de expectativa, de amizade, de crítica da moral. Luc Bondy, que falecia pouco depois das filmagens, manteve a encenação durante a noite no palco do Théâtre de l’Odéon enquanto, à luz do dia, dispunha os actores em todos os espaços do edifício. Do foyer aos bastidores, da casa das máquinas à cozinha, deixando a mais fina intimidade nas mãos de um conjunto de actores que se digladiam para confundir e unir os corações carentes e amáveis de Araminte (Isabelle Huppert) e Dorante (Louis Garrel).
Um trabalho de minúcia e devoção pela construção cenográfica, pela definição dos caracteres, pela inflamação do critério da palavra.
Marivaux. Um retorno ao presente da minha memória grata que, deste modo, se vai modificando e me vai fornecendo dados para melhor compreender onde se situará o meu futuro.

jef, julho 2017

«As Falsas Confidências» (Les Fausses Confidences) de Luc Bondy. Com Isabelle Huppert, Louis Garrel, Bulle Ogier, Yves Jacques e Jean-Pierre Malo. França, 2016, Cores, 82 min.

«A Ilha dos Escravos» + «A Herança» de Marivaux. Teatro da Cornucópia. Com Luis Miguel Cintra, Luís Lima Barreto, Orlando Costa, Raquel Maria, Dalila Rocha, Margarida Carpinteiro, Filipe La Féria, Jorge Silva Melo, Capitólio, 1974.

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