sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Sobre o filme «Dovlatov» de Aleksey German Jr., 2018





















Este filme tem características inusitadas.

É a história do escritor e jornalista russo Sergei Dovlatov (Milan Maric) durante a primeira semana de Novembro de 1971, quando ele vive uma espécie de crise existencial, sonhando com ditadores a beber pina coladas e campos de prisioneiros enlameados. Está agora com a mãe (Tamara Oganesyan) num apartamento colectivo, afastado da mulher Elena (Helena Sujecka) e da filha Katya (Eva Herr) para quem quer comprar uma boneca grande. Não tem motivação para escrever pois não será publicado até ser admitido na Associação de Escritores Soviéticos. Precisa de se insinuar no meio, pedir favores e escrever uma ode triunfal sobre o trabalho num estaleiro naval. Mas não cede. Sente-se perdido entre a família, os amigos, o livro que deseja escrever e o poema que tem de escrever.

Até aqui o filme parece correr (infelizmente) como o esperado, sabendo que o escritor se exilou nos Estados Unidos, onde faleceu em 1990, tendo-se tornado depois um dos mais famosos autores da sua geração.

Porém, o que se torna muito cativante, mesmo extraordinário, no filme é esse modo “close-up” de olharmos os exteriores nevados como se fossem os interiores onde o escritor se move, sempre com um olhar intuitivo e um sorriso entristecido mas complacente. A câmara gira quase sem espaço para respirar, ora num ambiente frio e cinzento dos estaleiros onde filmam duplos dos grandes escritores russos falecidos, ora num ambiente morno e ocre, entre o fumo do tabaco, a bebida e o jazz de clube. Assim vamos assistindo à angústia e à desistência quando o acto da escrita se aproxima, mas também à tenaz resistência de um grupo de intelectuais que se vê apartado da liberdade e da sua plena vocação artística.

E existe um humor e amor latentes que intensificam os laivos trágicos de um percurso fatídico. Os decores são perfeitos, a fotografia é de Lukasz Zal (o tal de «Guerra Fria» 2018, e «Ida» 2013, de Paweł Pawlikowski). A música e o som, imperdíveis.

Ler Sergei Dovlatov será necessário. «O Ofício» foi editado este ano pela Antígona.

E esse tom de esperança inusitado que sai do filme é talvez dado pela convicção de que a Liberdade e a Democracia são assuntos por princípio em perigo mas que podem ser sempre resgatadas pela resistência, pelo amor ao próximo e pela criação artística.

jef, novembro 2018
                                                                      
«Dovlatov» de Aleksey German Jr.. Com Milan Maric, Danila Kozlovsky, Helena Sujecka, Artur Beschastny, Elena Lyadova, Tamara Oganesyan. Argumento: Aleksey German Jr., Yulia Tupikina. Fotografia: Lukasz Zal, Som: Ivan Gusakov, Decoração: Elena Okopnaya. Rússia / Polónia / Sérvia, 2018, Cores, 126 min.

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