terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Sobre o livro «Estuário» de Lídia Jorge. Dom Quixote, 2018


 













Um livro de entradas múltiplas e histórias cruzadas. Um livro muito humano no que respeita a soluções adiantadas e dúvidas concluídas. Não as apresenta. Cada um que interprete a solução, a dúvida, o desfecho para este mundo com as armas e o grau de optimismo de que dispõe.

Uma ficção que se debruça sobre a realidade actual, aquela que um dia se situará no centro científico dos historiadores. Uma ficção que exibe o trunfo da fantasia como móbil para a salvaguarda do futuro. Uma realidade feita, ela própria, de ficções, metáforas, interpretações, afectos e julgamentos.

A história do armador Manuel Galeano e da sua família, iniciada com a de Edmundo Galeano, o filho mais novo, a copiar, como treino da sua mão carente, os versos da «Ode Marítima» de Álvaro de Campos, terminando com a cópia dos primeiros versos da «Ilíada» de Homero. A primeira ode revela o desejo de partir de casa, fugir do solo férreo, em busca desenfreada e louca do nada marítimo, do nada futuro. A segunda ode é o inverso, é a defesa do solo e da pátria à força da lâmina e do sangue, para conquistar a integridade do povo, da família e do amor.

Faz todo o sentido.

Por todas as razões e ao longo do romance, a família Galeano vai ficando reunida (ou aprisionada) no casarão vindo do bisavô, em Lisboa, no Largo do Corpo Santo. À beira Tejo. A casa é um porto de abrigo, mas também navio encalhado, até esquife.

Charlote aguarda, unida ao seu filho David, o termo do Amor maior, mas interrompido, com Amadeu Lima. Sílvio busca o paradeiro do “Imortal”. Alexandre lança ao rio, envergonhado, garrafas com desejos espirituais. João Vasco procura refúgio para a família russa, por nascer. Mas sobre todos, a figura tutelar, muda, quieta, mas de dedo em riste e brincos de pérola, de Tatiana. A matriarca vive na suite real envolta em livros e exibindo o poder agregador de clã.

E o mundo a colapsar, e a ria a transbordar de plástico, e o campo de refugiados de Dadaab do ACNUR, entre o Quénia e a Somália, que continua a insustentar vidas humanas… Um estuário delta e desértico que desagua sem água nem mantimentos.

Edmundo escreverá o livro?

Charlote salvará a memória da sua história de Amor?
«Quem disse alguma vez que os limites da nossa linguagem são os limites do nosso mundo, troçou da inteligência alheia. (…) Na verdade, os limites do seu mundo não coincidiam com os limites impostos pela sua linguagem» (pp. 165). Diz ela.

As linguagens podem andar desfocadas dos mundos. É a questão pela qual a ficção literária luta eternamente, correndo à frente ou no encalço da realidade e da consciência. Assim foi para Álvaro de Campos, assim foi para Homero. Assim é para Lídia Jorge.

jef, dezembro 2018

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