quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Sobre o filme «Roma» de Alfonso Cuarón, 2018














Cidade do México. Bairro ‘Roma’. 1970-1971. Uma família burguesa  – um casal em ruptura, uma avó, quatro miúdos, duas criadas e um cão. Apollo 13, 'Jesus Cristo Superstar', eleições e conflitos estudantis. A ordem é arbitrária desde que coloquemos no centro familiar Cleo (Yalitza Aparicio), a criada gentil, atenta e carinhosa, em torno da qual tudo gira. O realizador toma a pulso a parte de leão do filme, desde a produção à direcção da fotografia, homenageando os afectos da infância.

O curioso é que este filme poderia até ser mudo, apenas com alguns slides a negro esclarecendo uma ou outra frase do diálogo, em vários tons conforme a proveniência dos falantes, caso a banda sonora aqui não fosse tão importante. O som é fundamental! Note-se o crescente marulhar das ondas na cena fulcral, épica e climácica, da família junto ao mar em Tuxpan acompanhando a tensão criada no salvamento. Ou o riscar estridente dos cromados do Ford Galaxy. Ou a longa cena “silenciosa” na plateia do cinema quando Cleo se vê abandonada pelo namorado Fermín (Jorge Antonio Guerrero) enquanto decorrem as últimas cenas de «A Grande Paródia» (Gérard Oury, 1966). Ou no final, enquanto ela sobe os dois pisos até ao terraço dos estendais ao som de uma cidade que se esvai e os dois aviões sobrevoam a diagonal do céu, repetindo a imagem que no início assistíramos, espelhada na água que vai encharcando o chão do pátio.

Todas as cenas sonoras são estudadas, todos os enquadramentos, ponderados, todas as expressões e gestos, sentenciosos, todos os reflexos medidos para que funcionem como retábulos ou ícones sucessivos, mudos, religiosos, medievais, ou como imagens de uma moderna história de animação ou quadradinhos nas páginas de alguma banda desenhada. As cabeças de cão embalsamadas, as cenas do tiroteio lúdico, o incêndio florestal, o homem-bala que salta cruzando o céu tal como os simbólicos aviões. Tudo sai de um expoente estético que, por vezes, soa um tanto a truque ou tique e nos faz perder o olhar ou o ouvido, descolando-nos da emotividade que, realmente, «Roma» contém.

Passamos 135 minutos de intensa cinematografia, esplêndidos cenários, amorosas criaturas, uma banda sonora extraordinária, uma luminosidade e silêncio sintomáticos, tudo a envolver uma soberba mãe mexicana. Yalitza Aparicio, Cleo.

jef, dezembro 2018
                                                                      
«Roma» de Alfonso Cuarón. Com Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Nancy García, Marco Graf, Daniela Demesa, Jorge Antonio Guerrero, Andy Cortés, Fernando Grediaga, Veronoca García. Realização, Produção, Argumento, Fotografia: Alfonso Cuarón. EUA / México, 2018, Preto e Branco, 135 min.

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