sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Sobre o livro «Tchékhov» de Anton Tchékhov. Antologia do Conto Moderno, Atlântida 1962. Selecção, tradução e prefácio de José Ferreira Monte.

 


 









Estes contos são maravilhosos. 

E mais extraordinários se revelam ao serem lidos, agora, quando já levo algumas décadas de existência e uns quantos livros lidos. Quando este século XXI, que deveria ser culto, clarividente e pacífico, não evitou uma inexplicada guerra entre a Rússia e a Ucrânia. (E, em simultâneo, verifico na Wikipédia que Anton Tchéchov nasceu em Taganrog uma cidade portuária russa situada ali mesmo perto da fronteira, no nordeste do mar de Azov.) Gosto de ler Tchékhov de modo anti-cronológico e tentar descobrir (ou inventar) nele referências bibliográficas soltas para as minhas leituras dilectas.

Tchékov parece virar do avesso a sociedade feudal russa do final do século XIX, repleta de castas, estratos, cerimónias e desequilíbrios. Conhecemos em pormenor os palacetes, as casas e os casebres; os chapéus, as sobrecasacas e as peúgas vermelhas; as repartições públicas, os círculos sociais e as refeições dos mais pobres; o trabalho dos servos, a bazófia dos novos ricos, a reverência subserviente perante a condecoração do superior. Também a zanga, o ódio e o amor pelo próximo.

Representado, por vezes, pelo lado circense e humorístico, usando a versão mais subtil do sarcasmo. Outras vezes a mais desabrida. Vejo em muitas daquelas personagens o lado Buster Keaton, Charlot ou Jacques Tati. Uma vertente do riso que, por vezes, devêssemos reprimir por também conter a face triste e nostálgica do ser humano. «O Gordo e o Magro» com que abre o volume é verdadeiramente cinematográfico!

Os dois contos passados no tribunal são hilariantes: «O Delinquente» e «A Modorra» tocam as raias da fantasia e da quase comovente e real “surrealidade”. Lembrei-me muito das crónicas «Levante-se o Réu» de Rui Cardoso Martins.

«Grischa» é um conto “infantil” e psicanalítico, olhando a sociedade rica de um menino de dois anos e oito meses pelos olhos inexperientes da criança quando sai pela primeira vez à rua pela mão da ama.

«Espíritos Curiosos (dos anais de uma cidade)» revela o quase tudo urbano sobre o que na realidade é o quase nada. Paira por ali os Monty Phyton.

«O Feliz Mortal», onde a solidariedade humana dá a bênção ao noivo bêbado mais feliz do mundo.

«Um caçador» é o conto mais triste e melancólico da colectânea, sobre a condição feminina. Lembrei-me de Maria Judite de Carvalho ou Maria Ondina Braga. Também é o conto onde a elevada urbanidade literária se liga à irrevogável sensibilidade caridosa com que o autor sempre molda as personagens.

Tal como o mais citado (e extenso) texto «A Dama do Cãozinho». A aura de fim de ciclo social em confronto com a arreigada vontade de sobrevivência emocional. A modernidade e a consciência, a revolta no interior social e, paradoxalmente, a ânsia por não destruir o velho dogma familiar. A mesma tonalidade das inesquecíveis peças: «A Gaivota», «Tio Vânia» ou «As Três Irmãs».

Os contos de Tchékhov, é o puro prazer consciente da leitura.

 

jef, agosto 2022

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