domingo, 18 de junho de 2023

Sobre o livro «Trilogia» de Jon Fosse. Cavalo de Ferro, 2022 (2014). Tradução de Liliete Martins.










Poder-se-ia dizer (sou eu que poderei dizer, que não entendo nada de literatura, excepto do prazer da sua leitura) que pelas terras frias do Norte, entre ilhas, glaciares e fiordes, existe uma espécie de rumo literário que me apetece apelidar de fantasia realista. No sentido oposto àquela outra espécie de realismo fantasioso de Gabriel Garcia Márquez, Julio Cortázar ou Juan Rulfo. A diferença estará substancialmente assente nas condições edafo-climáticas das duas regiões, dos dois continentes. Porém, a proximidade imaginativa, e a vocação de saltar para fora da realidade, tantas vezes constrangedora, é semelhante.

Quando lemos “A Saga de Gösta Berling” de Selma Lagerlöf (1891), “Fome” de Knut Hamsun (1890) ou “A Noite do Professor Andersen” de Dag Solstad (1996), entramos num mundo supostamente realista mas que possui os pés aprisionados num vago delírio ébrio constituído pela solidão, privação, álcool, religião e pura fantasia onírica. Tudo pode ser real como tudo pode vir de uma alucinação provocada pela fome ou pelo gelo ou pela necessidade de evasão.

Por que será que, na segunda novela de Trilogia “Os Sonhos de Olav”, Asle passa a chamar-se Olav e Alida, Asta? Onde estará o pequeno Sigvald? Poder-se-á dizer que os sonhos de Olav correspondem ao seu presente, enquanto, ao abrir, “Vigília” será um passado inexplicado, uma fuga desesperada, a origem de um amor fulcral, de uma sobrevivência brutal. Por fim, “Fadiga” representa o cansaço inevitável do futuro, a história por contar do pequeno Sigvald, a redenção de uma paixão que será eterna porque trágica, como nas velhas histórias bíblicas.

Um belíssimo texto cruzado e costurado com o génio da subtileza e do encanto, repetindo os nomes e os lugares para que o fio da meada não perca os seus leitores (como nas antiquíssimas odisseias mediterrânicas), retirando os pontos finais para que a continuidade se torne poética, onde os diálogos sintéticos, firmes, lógicos e absurdos, misturam a fórmula directa e indirecta para que se tornem a base oral desta bela história de todos os tempos. (Como se Gonçalo M. Tavares tivesse incluído “Amor” como palavra-chave para uma nova entrada da sua biblioteca).

«Trilogia» é uma fábula antiquíssima sobre o poder da paixão e uma comovente descoberta.


jef, junho 2023

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