Reconhecer
Lisboa pelos passos que o cinema nos concede. Reais e falsos ao mesmo tempo. Tão banais
e quotidianos quanto literários. A vida é assim: melancolicamente luminosa.
A
primeira longa metragem de João Rosas é uma espécie de achado. E não resisto a
confessar, meio envergonhado, que a frase me surgiu ao ver o filme começar com o coro da Casa da Achada
a cantar em polifonia “a única certeza que temos é a consabida e permanente dúvida”.
Um arco longo onde a câmara vai mostrando cada cantor até se fixar em Nicolau
(Francisco Melo). Todo o filme se desenvolve como esta cena, parcimonioso mas convicto, mostrando cada rua da cidade como habitat ou residência de um
grupo de jovens que circulam contidos como as moléculas num frasco de
gás que se deixou em repouso. As dúvidas, os receios, os temores e os leves
dramas são como uma sugestão de uma irónica visão do futuro. Tudo pode correr
mal mas o final do dia pode sempre trazer uma molécula de esperança.
Nicolau
faz 24 anos mas não comemora. Vive na ressaca do abandono da namorada
que partiu para um longínquo retiro espiritual, Nicolau aguarda qualquer coisa até a
sua bicicleta avariar, até sair de casa dos pais para um quarto alugado, até
aceitar um emprego numa livraria de bairro onde um personagem cliente-residente,
o próprio realizador João Rosas, é convidado a abandonar os filmes para se
dedicar à literatura, coisa para a qual terá bastante mais talento. Quem o diz é alguém que esclarece
o paradigma nefasto do capitalismo. Nicolau faz publicidade à livraria na rua
vestido de Pai Natal, em plena Primavera. Na Cinemateca, entre a égide de Joseph
Von Stroheim ou Robert Bresson, ele senta-se ao lado de uma réplica da antiga
namorada. Mas é com Chloé (Cécile Matignon) que ele reencontra o espaço erigido
para encerrar os mortos e o tempo que para estes terminou. Nicolau passa a
sonhar com cemitérios.
Em entrevista, João Rosas cita todos aqueles cineastas que fazem filmes a partir de nada, a partir dessa existência que tem tanto de comédia como de nostálgica finitude. A vida, afinal, quando damos por ela, olha, já lá vai. Inevitável é citar as comédias e provérbios de Éric Rohmer, o país nova-iorquino de Woody Allen, o círculo eternamente político e palavroso de Nanni Moretti, a cidade castelhana onde nada acontece de Fernando Trueba, os monótonos dias seguintes e teatrais do sul-coreano Hong Sang-soo. Afinal, a vida é igual em todo o planeta. Todos eles (João Rosas incluído) fazem aquela proeza de nos levar atrás de coisa aparentemente nenhuma e, por fim, quando termina o filme, dizem: estão a ver, eu não vos disse, afinal a felicidade é tão honesta e comum como a infelicidade ou a depressão, vale a pena filmá-la.
Vale
a pena também vivê-la, apesar de, na sua grande parte, não lhe encontrarmos grande
drama ou paixão substancial.
Apesar de tudo haverá sempre tempo para o cinema e para a literatura.
jef,
junho 2025
«A
Vida Luminosa» de João Rosas. Com Francisco Melo, Cécile Matignon, Margarida
Dias, Federica Balbi, Gemma Tria, Ângela Ramos, Francisca Alarcão. Argumento: João
Rosas. Produção: Pedro
Borges, Midas Filmes. Fotografia: Paulo Menezes. Som Olivier Blanc. Guarda-roupa:
Susana Moura. Portugal / França, 2025, Cores, 106 min.
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