Uma pequena grande novela dos tempos que foram para os tempos
que estão.
Uma reedição a demonstrar a perspicácia editorial dos Livros
do Brasil. Uma autêntica pérola que esperemos não venha a ser de novo premonitória de odiosos tempos futuros, de regresso tenebrosamente incompreensível.
A escritora americana Kathrine Kressmann Taylor publica em
1938, dois anos depois de um certo Congresso de Nuremberga e no ano em que
ocorreu a “Noite de Cristal”, a curta ficção «Desconhecido Nesta Morada» tão
eficaz quanto visionária, e que nos devolve o estupor e a ansiedade do
crescimento do nazismo após a grande depressão na Alemanha.
Tal como Bram Stoker em «Drácula» (1897), Kathrine Kressmann
Taylor usa o modo epistolar para nos contar a história de dois amigos íntimos, sócios
de uma galeria de arte em São Francisco, Martin Schulse e Max Eisenstein, quando
o primeiro decide regressar à Alemanha natal nos finais de 1932.
O romance termina de modo gráfico a 18 de março de 1934. Adressat Unbekannt Desconhecido nesta morada.
Curioso o facto de eu ter lido há pouco tempo, de modo
acidental, o romance de Georges Simenon «Os Três Crimes dos Meus Amigos»,
publicado inicialmente também em 1938, que nos coloca igualmente frente à depressão
económica e política ocorrida na Europa entre as guerras.
Em «Desconhecido Nesta Morada» não existe julgamento moral superiormente
omnisciente. Apenas nos podemos agarrar aos factos descritos nas cartas
trocadas pelos correspondentes. Apenas, temos acesso factual ao desmoronamento
de uma relação. Apenas assistimos, sem adjectivos ou advérbios de modo atenuantes,
à progressiva transformação política e social de Martin Schulse e, em
simultâneo, ao crescente desespero e posterior raiva distante do judeu
americano Max Eisenstein.
O posfácio do filho da autora, Charles Douglas Taylor, esclarece
e oferece-nos talvez uma pequena centelha de esperança no que respeita ao ódio
e à violência políticas contemporâneas, ao descrever o sucesso que estas cartas
têm tido a nível universal ao longo das décadas. O regresso oficial da
estupidez mundial e do horror nazi pode ainda não consistir numa brutal inevitabilidade
presente e futura.
jef, junho 2025
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