terça-feira, 24 de junho de 2025

Sobre o livro «Os Três Crimes dos Meus Amigos» de Georges Simenon, Relógio D’Água, 2018 (1938). Tradução de Ângelo Ferreira de Sousa.



 







O que é espantoso no prolífero, imaginativo, desconstructor da narrativa clássica, Georges Simenon, um autor elogiado por Georges Steiner ou José Tolentino de Mendonça, é a sua capacidade de em curtos romances, quase novelas, oferecer-nos a plenitude de um mundo social, para não dizer político, centrado na circulação de personagens do seu próprio meio, sem nunca parecer dogmático ou presunçoso. Talvez a intrínseca capacidade para analisar cada situação através do humor, por mais trágica que possa ser, seja o seu trunfo dourado. Em segundo lugar, e não menos importante, é a leveza sintética da narrativa ou a imagética breve das descrições.

Dizem que não existem muitos modelos para construir um romance. Sequer a diversidade de temas. Mas se existe apenas um romance original, ele será o romance iniciático, aquele que nos mostra como alguém ou certo grupo se transforma desde a infância até à idade adulta passado pela adolescência e a puberdade. «Os Três Crimes dos Meus Amigos» é um bom exemplo disso. Tal como «O Obelisco Preto» (Erich Maria Remarque 1956), este texto conta-nos a história muito simples de como a infância não é suficiente para salvar alguém dos crimes que uma guerra deixa no interior de uma geração de adolescentes. Alguém de nome Simenon questiona-se sobre a razão de ter ele sobrevivido ao horror e, pelo contrário, os Dois Irmãos, o Pequeno K, o Fakir, Deblauwe ou até o mais velho e misterioso livreiro Hyacinthe Danse tenham sido varridos do mapa da moral existência, assim, sem mais, apesar de “tudo isto ser medonhamente banal”. Mas será que a respectiva sobrevivência inocentá-lo-á de culpa pelos crimes dos seus próximos amigos. É a dura premissa deste livro extraordinário.

Em pouco mais de 140 páginas ficamos com o firme odor, por vezes leve, por vezes execrável, das consequências da guerra nas relações pessoais, nos comportamentos sexuais, na descoberta cultural e filosófica, na desvalorização monetária, no descrédito das relações entre classes sociais. Como um pequeno tratado de História, onde no título e logo na primeira página o autor nos avisa da conclusão a que chegará o romance, ficamos com uma visão real das consequências bélicas entre fronteiras que unem a Bélgica, os Países Baixos, a França e a Alemanha (as notas de rodapé dão uma preciosa ajuda).

Liège está no centro, os crimes são logo anunciados, mas o coração do leitor afinal fica preso ao horror sistemático com que a guerra carimba definitivamente os jovens corações que a viveram.


jef, junho 2025

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