O que é espantoso no prolífero, imaginativo, desconstructor
da narrativa clássica, Georges Simenon, um autor elogiado por Georges Steiner
ou José Tolentino de Mendonça, é a sua capacidade de em curtos romances, quase
novelas, oferecer-nos a plenitude de um mundo social, para não dizer político,
centrado na circulação de personagens do seu próprio meio, sem nunca parecer
dogmático ou presunçoso. Talvez a intrínseca capacidade para analisar cada
situação através do humor, por mais trágica que possa ser, seja o seu trunfo
dourado. Em segundo lugar, e não menos importante, é a leveza sintética da narrativa
ou a imagética breve das descrições.
Dizem que não existem muitos modelos para construir um
romance. Sequer a diversidade de temas. Mas se existe apenas um romance
original, ele será o romance iniciático, aquele que nos mostra como alguém ou
certo grupo se transforma desde a infância até à idade adulta passado pela
adolescência e a puberdade. «Os Três Crimes dos Meus Amigos» é um bom exemplo
disso. Tal como «O Obelisco Preto» (Erich Maria Remarque 1956), este texto
conta-nos a história muito simples de como a infância não é suficiente para
salvar alguém dos crimes que uma guerra deixa no interior de uma geração de
adolescentes. Alguém de nome Simenon questiona-se sobre a razão de ter ele sobrevivido
ao horror e, pelo contrário, os Dois Irmãos, o Pequeno K, o Fakir, Deblauwe ou
até o mais velho e misterioso livreiro Hyacinthe Danse tenham sido varridos do
mapa da moral existência, assim, sem mais, apesar de “tudo isto ser
medonhamente banal”. Mas será que a respectiva sobrevivência inocentá-lo-á de
culpa pelos crimes dos seus próximos amigos. É a dura premissa deste livro extraordinário.
Em pouco mais de 140 páginas ficamos com o firme odor, por
vezes leve, por vezes execrável, das consequências da guerra nas relações
pessoais, nos comportamentos sexuais, na descoberta cultural e filosófica, na
desvalorização monetária, no descrédito das relações entre classes sociais.
Como um pequeno tratado de História, onde no título e logo na primeira página o
autor nos avisa da conclusão a que chegará o romance, ficamos com uma visão
real das consequências bélicas entre fronteiras que unem a Bélgica, os Países
Baixos, a França e a Alemanha (as notas de rodapé dão uma preciosa ajuda).
Liège está no centro, os crimes são logo anunciados, mas o
coração do leitor afinal fica preso ao horror sistemático com que a guerra
carimba definitivamente os jovens corações que a viveram.
jef, junho 2025
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