Uma obra e tanto!
Como acabar um romance, desvalorizando-lhe o estratagema?
Colocar como subtítulo, em jeito de epígrafe explicativa,
“Episódio doméstico”.
Dar enlevo romântico ao realismo, descrevendo
pormenorizadamente as figuras que irão oferecer o mote à intriga: Juliana, a
fulminante, Sebastião, o estratega, Leopoldina, a libertina. Assim, as personagens
que deviam ser as centrais, Luísa e Jorge, ficam numa interessante poalha
nevoenta ou insonsa, apesar de intensa.
Povoar o texto de figuras de uma ironia descomunal: o médico
Julião Zuzarte, a apaixonada D. Felicidade, o dramaturgo Ernestinho, o
banqueiro Castro, a estanqueira, a carvoeira, o Paula dos móveis, as vizinhas
Azevedo, a cozinheira Joana, a inculcadeira tia Vitória.
E, claro, o celebérrimo conselheiro Acácio, com o seu
necrológio e os dois travesseirinhos.
E como móbil para a acção central, o galã Primo Basílio (mais
a sua sombra, o Visconde Reinaldo).
Colocar toda a burguesia de 1877 a tossir e escarrar contra a
própria burguesia, com laivos de republicanismo e, simultaneamente, de devoção pelos
veludos da família real, no São Carlos ouvindo o “Fausto”.
Essa toda burguesia pequena numa rua apenas. E Lisboa
encalorada percorrida num ápice, confinada ao pequeno bairro que vai do Tejo à
Patriacal, ao Príncipe Real, passando pelo Camões, por São Roque ou São Pedro
de Alcântara, pelo passeio público subindo do Rossio. Com uma viagem ao
longínquo Lumiar e umas fugidas ao Paraíso,
lá para as bandas de um incógnito Arroios.
Tudo descrito cinematograficamente, filmado com cores vivas, e
narrado rápido, tão rápido quanto o realismo manda e os assombrosos diálogos
impõem!
Uma Lisboa pequenina onde todos se encontravam a cada
momento. Todos intrigam, suspeitam, vigiam, velam, num clima perfeito para
aniquilar uma sociedade burguesa e monárquica prestes a sucumbir por velhice e
pelas dívidas. Ainda há quem peça ao Senhor que envie um novo terramoto, mas
ele mantém-se quedo.
«Então havemos de dormir no mesmo
quarto? Você pensa que o Sr. D. Basílio é meu amante, seu devasso? Está tudo
cheio? Mas quem se lembre de vir a Portugal? Estrangeiros? É justamente o que
me espanta! É o clima, é o clima que os atrai! O clima, este prodigioso engodo
nacional! Um clima pestífero! Não há nada mais reles que um bom clima!...»
Assim fala Visconde Reinaldo num esplendoroso,
desconcertante, cómico e esclarecedor capítulo derradeiro.
Eça de Queirós é o máximo!
jef, dezembro 2025




