quarta-feira, 13 de outubro de 2021

Sobre o livro «Cair Para Dentro» de Valério Romão, Abysmo 2018. Capa de Alex Gozblau.


 









O livro parece conter tudo. Especialmente esses fenómenos que permanentemente nos acontecem (e nos formam) e também o caminho estranho que eles levam até chegarem a nós e depois à sua interpretação, bem à nossa maneira.

Ao longo das primeiras páginas a imagem de uma senhora vai-se desvanecendo e outra, a de uma jovem, não chega a confirmar-se. Posso entender que é Virgínia, viúva sem o ser, matematicamente austera, expulsando os afectos (pois nunca trazem qualquer vantagem), dona de uma casa sem recheio, autarca, amante e mãe de uma Eugénia que não chega a ter tempo de crescer (pois deve fugir da mãe que lhe recusa a filosófica poesia que ela toma como principal fenómeno, embora escondido).

Uma das grandes vantagens da leitura lúdica é de coleccionarmos imagens e sentidos literários que vão fazendo parte de nós (e nos suscitam a análise dos ditos fenómenos). Ou talvez seja mais simples. Por empirismo, silogismo, mnemónica, ou simples prazer de relacionar livros que nos são importantes, vamos criando um mundo imaginário. Forte e Verdadeiro.

Valério Romão lança-nos nesse mundo real mas onde as imagens e sentidos fragmentados no espaço surgem de uma linha temporal sistematicamente truncada. Confundem-se inicialmente as gerações, os temores, os rancores, as abstracções que a doença neurológica e a insuficiência social e afectiva lançam sobre a interpretação dos fenómenos. Interpretação que, ela própria, é um objecto. Lembro-me de «Tanta Gente, Mariana» de Maria Judite de Carvalho e de Milene em «O Vento Assobiando nas Gruas» Lídia Jorge. Lembro-me ainda de personagens feéricas mas amordaçadas de Branquinho da Fonseca, da narrativa contínua, sem arestas onde as personagens possam descansar, de William Faulkner a António Lobo Antunes; e os diálogos em discurso indirecto-directo por entre as finas estrias de uma realidade indomada e adversa. Esses diálogos leves e duros que buscamos em Saramago. (Consegui juntar aqui os dois autores!)


«e só não compreendo a razão pela qual a lembrança chega sempre a destempo, sempre em atraso, como se conversa e recordação estivessem de mal e não se pudessem encontrar ao mesmo tempo no mesmo local, e ainda bem que ela já está a fazer outra coisa, a cozinhar, a passar a ferro, a mudar a areia da gata, porque assim não me vê sofrer este sentimento dos pobres, esta agonia de ainda ter tudo cá dentro menos a forma adequada de lhe aceder.»

O que verdadeiramente é apenas de Valério Romão é esse azimute emocional (e literário) que faz aprisionar o leitor dentro da história de uma família sem bainhas paliativas ou âncoras antissísmicas mas que, mesmo assim, vai deixando sobre o texto a poeira do princípio maior da benevolência e da resistência projectadas num futuro em que se poderá (ainda, talvez) confiar. Esse princípio devolve ao livro «Cair Para Dentro» uma raiz profundamente política.


jef, outubro 2021

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