segunda-feira, 11 de abril de 2022

Sobre o filme «Flee - A Fuga» de Jonas Poher Rasmussen, 2021























Há verdades tão reais e cruéis que se tornam difíceis de explicar, uma vez que o bom senso, à partida, as parece rejeitar. Por outro lado, a arte sempre teve essa dimensão maior, interpretativa, cognitiva, emotiva, por isso catártica, que a torna, por vezes, a única arma a ser utilizada para que possamos compreender a tragédia, e para que dela fiquemos emocionalmente credores. Talvez pathos, talvez simbolismo, talvez estilização.

É o caso do documentário «Flee - A Fuga» onde o realizador Jonas Poher Rasmussen, através do cinema de animação, nos conta a história do seu amigo afegão Amin que fugiu ainda adolescente de Cabul e, por duas vezes, de Moscovo, para se estabelecer na Dinamarca, onde se tornou, anos depois, um conhecido académico. O desenho animado colocará Amin numa espécie de cadeira de psicanalista ou de plateau onde Jonas Poher Rasmussen o acompanha, dialogando, incentivando-o a falar, a narrar, recordando as memórias mais felizes de criança, os traumas mais esquecidos, enterrados no brutal desenraizamento geográfico, na cicatriz aberta pelo afastamento familiar, na memória sofrida da dificílima fuga clandestina. Uma memória sempre toldada, igualmente, pela noção frontal de que a sua homossexualidade é proscrita no seu próprio país, que nem vocábulo possui para a nomear.

Entrecortado com imagens documentais que circunscrevem a acção do filme, o tom reflexivo e dorido com que a história nos é contada, pontuado por algumas suaves gargalhadas, assiste ao correr narrativo, sóbrio, sincero, depuradamente estético (talvez muito nórdico), sem nunca cair na fácil e lacrimejante lamechice.

O drama planetário dos refugiados (com esta incompreensível aceleração no século XXI) faz aproximar a fuga de Amin mais da dos refugiados sírios e dos do Norte de África do que da actual migração em massa do povo ucraniano.

«Flee - A Fuga» é um importante filme-de-animação-documenário para os tempos presentes, como o terão sido aqueles, sobejamente mencionados: «A Valsa com Bashir» de Ari Folman (2008) ou «Persépolis» de Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi (2007).

Acima de todos, para mim, este filme recordou-me um dos meus filmes de sempre: «A Imagem que Falta» de Rithy Panh (2013).

A urgência da arte cinematográfica como denúncia da barbárie mas também na centralização política dos fenómenos sociais mais trágicos.

  

jef, abril 2022

«Flee - A Fuga» (Flee) de Jonas Poher Rasmussen. Filme de animação com as vozes de Daniel Karimyar, Fardin Mijdzadeh, Milad Eskandari, Belal Faiz, Elaha Faiz, Zahra Mehrwarz, Sadia Faiz, Rashid Aitouganov, Georg Jagunov, Navid Nazir, Hafiz Højmark. Argumento: Jonas Poher Rasmussen e Amin Nawabi. Produção: Riz Ahmed, Nikolaj Coster-Waldau, Charlotte de La Gournerie. Direcção artística: Jess Nicholls, Martin Hultman. Música: Uno Helmersson. Dinamarca, Suécia, Noruega, França 2021, Cores, 83 min.

 

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