segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Sobre a peça «Querido Evan Hansen» de Steven Levenson, Benj Pasek e Justin Paul, 2024




































Em Lisboa (em Portugal), surge teatro do bom, inteligente e popular, por todas as salas. Teatros que se enchem de público e para todos os gostos.

Fui ver ontem o meu primeiro musical ao vivo e, confesso, ia muito de pé atrás pois tenho sempre relutância de me afastar dos meus preconceitos paradoxais.

Porém, com «Querido Evan Hansen», entendi que se devem deitar fora todos os paradoxos preconceituosos. Um musical que fala de famílias apressadas, sem tempo para escutar, miúdos-graúdos dentro da solidão e do distanciamento social, do suicídio jovem, da depressão, do alheamento, das notícias falsas, da crise das redes sociais e da necessária solidariedade para nos apartarmos, miúdos e graúdos, do declíneo fatal a que o isolamento pode conduzir.

Um facto, e estava absolutamente convencido que não iria emocionar-me, um facto é que botei alguma lágrima.

Sem quaisquer artefactos cenográficos para além de uma cama, sofás e uma mesa que, girando, provocam as mudanças de cena, a atenção pede os múltiplos ecrãs que não legendavam mas atribuíam significado ao despojamento do palco e à extenuante velocidade (des)informativa dos ecrãs pessoais e actuais. Lá atrás a orquestra toca.

Evan Hansen (João Sá Coelho), entre o secundário e a universidade, é invectivado pela híper-ocupada-apressada mãe, Heidi Hansen (Gabriela Barros), a seguir o conselho do médico e começar a escrever regulamente a si próprio cartas de auto-motivação: «Querido Evan Hansen, hoje vai ser um dia bom». Tudo isto se passa nos primeiros minutos e quase surge como tema publicitário da peça. Evan Hansen vive sob o regime da ansiedade ou da inadaptação às expectativas maternais ou à própria desadaptação interior. Não tem amigos, talvez até sofra de bullying e tem as mãos constantemente suadas por nervoso. Porém ao perder a carta que escreveu e fora imprimir, a sua vida muda de figura…

É muito interessante como a sobriedade cenográfica apenas faz concentrar o espectador na intriga que se desenrola a partir de uma certa mentira impiedosa ou da benevolência que o acaso tantas vezes oferece.

Esqueçam o velho teatro de intervenção. Aqui está a arte contemporânea a tentar impedir que o mundo ainda se enterre mais no buraco que anda a escavar hoje em dia.


jef, outubro 2024

«Querido Evan Hansen». Texto: Steven Levenson. Música: Benj Pasek e Justin Paul. Encenação, tradução e adaptação: Rui Melo. Com Dany Duarte (Connor), Gabriela Barros (Heidi Hansen), Miguel Raposo (Larry Murphy), Sílvia Filipe (Cynthia Murphy), Brienne Keller (Alana), Inês Pires Tavares (Zoe Murphy), João Maria Cardoso (Jared) e João Sá Coelho (Evan Hansen), e com os Músicos: Artur Guimarães (teclados), Tom Neiva (bateria), André Galvão (baixo), Marcelo Cantarinhas (guitarra), João Valpaços (violoncelo) e Inês Nunes (viola de arco). Cenografia: Eric da Costa. Direcção Musical: Artur Guimarães. Movimento: Bruno Cochat. Figurinos: Rui Lopes. Desenho de Luz: Cristina Piedade. Desenho de som: Sérgio Milhano. Vídeo: Pedro Prata. Produção: Força de Produção. 110 minutos.

Teatro Maria Matos, de 11 Setembro a 3 Novembro.

Quinta a Sábado às 21h e Domingo às 17h.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Sobre o livro «A Varanda do Frangipani» de Mia Couto, Círculo de Leitores 1997










Na varanda sobre o Índico todos são prisioneiros. A Fortaleza de São Nicolau é uma irremediável tumba, cárcere, asilo, paiol, ilha rodeada de passado e de mar por todos os lados. Também de história, guerra e malfeitoras. Também de amor, silêncio e sorrisos. Parece que o autor encafuou todo o continente moçambicano dentro das muralhas daquele minúsculo lar para idosos. Uma espécie de terreiro ou vaso onde pernoita o aroma das flores de uma única árvore – o frangipani. Um espaço onde se vão acumulando as escamas de um tal pangolim, animal de estimação do futuro que durante as chuvadas surge para contar as novidades.

Afinal, irá chegar Izidine Naíta, um polícia de investigação que tenta encontrar suspeitos pela morte inexplicada de Vasto Excelêncio cujo corpo terá ficado entre marés, água salgada e pedregulhos. Contudo, aquele apenas possui seis dias de investigação e transportará no interior o morrediço Ermelindo Mucanga, um pré-falso-herói-morto que com relutância volta ao mundo dos vivos. Enfim, a relutância esvai-se quando o corpo do polícia faz a alma de Ermelindo aproximar-se da beleza da enfermeira Marta Gimo.

Tudo resto está contido nos depoimentos realizados pelos velhos e pelas velhas, falsos viventes porque prisioneiros dos seus próprios corpos.

Um romance que faz de Moçambique uma espécie de jardim interior, a fortaleza de São Nicolau, formoso e habitado por morcegos e andorinhas, contido na redoma da sua imaginativa crença animista e de um passado ecológico e poético.


jef, outubro 2024