domingo, 27 de novembro de 2022

Sobre o livro «Uma Abelha na Chuva» de Carlos de Oliveira (1953), Livraria Sá da Costa, 1996.



 








D. Cláudia observa, superior, as caras dos convivas fúnebres transfiguradas pelas chamas da lareira.

“No entanto, pensando melhor, tais juízos partiam de argumentos alicerçados no real: manias, doenças, tiques psicológicos e morais, etc. Não eram construções à toa. De maneira nenhuma. Podiam bem deduzir o seguinte sem se atraiçoar: vê-los desfigurados é vê-los verdadeiros; todos eles fabricam fel; abelhas cegas, obcecadas.”

D. Cláudia, a de alma transparente, faz de compère ou de coro grego ou de alter-ego do escritor que, resumindo, dá por finda a ronda por estes seres falhados, ressabiados, rancorosos, empanturrados de inveja e remorsos, com um longo passado cinzento mas sem qualquer futuro.

Álvaro Silvestre vive afundado em brandy e na tentativa de redimir os pecados constantes, de se denunciar, de fugir da mulher, D.Maria dos Prazeres, da sua instigação. Tenta entrar no quarto mas a porta encontra-se fechada à chave.

De Montouro a Corgos chove continuamente e a tempestade não dá tréguas sobre o mar longínquo como um túmulo nem sobre a oficina de olaria do mestre António.

“O desespero sem remédio que espreitava dentro dele irrompeu de novo. Pela madrugada irreal. Compreendeu que nada podia sufocá-lo. Duma maneira ou doutra, na indiferença da mulher ou na conversa do palheiro, fosse no que fosse, ouvi-lo-ia sempre. Agora mesmo uma voz errando no silêncio lhe insinuava: as aves largam para o espaço mas serão destruídas; há laranjas sãs pelas ramagens mas hão-de apodrecer; as vindimadeiras cantam, o gado pasta, os homens cavam, mas tudo, tudo é estrume da terra. No silêncio deserto a voz obsidiante persistia: quando quiseres matar a sede, lavar o sarro desta noite, das conversas tidas, das conversas ouvidas, a água secará de vez.”

Na minha leitura baralhada, caótica, feita de vagar e de comparações torpes, surge-me este livro escrito em XXXV estâncias (que devem ser lidas entre pausas como nos livros de poemas). Asseguro-me que bem compreendo como as personagens nos aparecem nítidas e interiores, ora penumbrosas ora diáfanas, como as de José Cardoso Pires, e as descrições narrativas tão feéricas e incontornáveis como as de Eça de Queirós.

 

jef, novembro 2022

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