quinta-feira, 20 de abril de 2017

Sobre o filme «Contos da Lua Vaga» Kenji Mizoguchi, 1953


















Pode discutir-se ad nauseam se o filme faz parte da lista dos 100, 20 ou 10 melhores filmes de sempre.
A verdade é que o deslumbramento que provoca no espectador deve provir da sua reverência estética, da sua beleza absoluta, da intricada incoerência onírica. Irreverência realista? A vida pode ser extremamente bela mas não é coerente e muitas vezes nem verosímil é! A guerra vive entre nós, assim como a tragédia e o amor, a ganância e o encantamento. A traição. Os mortos vivem entre nós, connosco, falamos com eles. Talvez se revoltem. Talvez de nós se condoam. A solução pode estar na mais simples e bela peça de cerâmica, no talhe de um kimono executado em seda pura, na devoção suprema entre um homem e uma mulher.
Porventura, o nosso remorso se esconda no jardim abandonado que se transforma em sumptuoso palácio aristocrático, na neblina suave que submerge com medo infantil um lago povoado de piratas. Afinal, quem não tenha privado com fantasmas que o diga, quem não os tenha convocado, aos mortos e desparecidos, que o negue.
Aqui, andamos em permanência na busca da identificação e da sombra de uma mulher. Quem será ela? Andrómaca, Maria, Eurídice, Penélope, Desdémona, Inês de Castro, Madalena… A diva, a mártir, a gueixa, a trágica! Aqui a mulher é ser supremo!
Também entramos na viagem, ou na sua negação… Para quê partir se o que mais desejamos é regressar ao ponto de partida, como refere João Bènard da Costa?
Em «Contos da Lua Vaga» entramos, em definitivo, no mundo puro e certo da narrativa do Universal.

jef, abril 2017

«Contos da Lua Vaga» (Ugetsu Monogatari) de Kenji Mizoguchi. Com Masayuki Mori, Kinuyo Tanaka, Machiko Kyo, Mitsuko Mito, Sakae Ozawa, Kikue Mori, Sugisaku Aoyama, Ryôsuke Kagawa, Ichisaburo Sawamura. Argumento: Yoda Yoshikata e Matsutarô Kawaguchi sobre os contos de Akimori Ueda, fotografia: Kazuo Miyagawa, montagem: Mitsuzô Miyata, produção: Masaichi Nagata, música: Fumio Hayasaka e Ichirô Saitô. Japão, 1953, P/B, 95 min.

2 comentários:

  1. Aqui os mortos são tocantes (e perturbantes), porque são seres comuns e próximos: são como eram enquanto vivos, daí o choque ao perceber-se que não são seres vivos, mas ilusões (mentais?). Os zombies espectaculares do cinema main stream não perturbam, divertem (eventualmente fazem-me torcer na cadeira, com horror à flor da pele, fingido).

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    1. É exactamente a perspectiva de toda a maior narrativa universal, desde a Odisseia e a Ilíada... afinal convive-se efectivamente com os mortos, pelos genes transmitidos, pela memória, pelo afecto deixado. Daí a grandiosidade e a perturbação de os Contos da Lua Vaga. Obrigado António.

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