domingo, 8 de abril de 2018

Sobre o filme «O Eclipse» de Michelangelo Antonioni 1962






















Quando vemos os filmes de Antonioni reconhecemos o ponto onde a Arte se transforma num objecto cuja abstracção nos leva ao centro fundamental da realidade. Nessa abstracção, poderíamos colocar cinematografias tão específicas como as de Andrei Tarkovsky ou Stanley Kubrick.

Apetecia-me dizer, arriscando um atroz pretensiosismo, que se as palavras não chegam para definir o que é poesia, então utilize-se os andaimes e os alçados com que a arquitectura a edifica. Assim sinto o cinema de Michelangelo Antonioni.

Em «O Eclipse», esse hiato por falta de palavras é utilizado para nos relatar o distanciamento moral existente na quebra dos afectos quando confrontados com a evolução real do erguer das cidades. Uma chamada brutal à realidade, uma vocação política neo-realista.
Ou será, precisamente, o contrário, o princípio arquitectónico de um futuro descrente em si próprio?
Estou confuso!

Entre as cenas iniciais que precedem a separação entre Vittoria (Monica Vitti) e Riccardo (Francisco Rabal) e aquelas com que o filme termina e o «eclipse nocturno» invade Roma que se desertifica e faz o nosso olhar perder-se, deslizando, sobre o facto de uma aldeia olímpica em construção, esquina a esquina, andaime por andaime, facto quantas vezes referido simbolicamente ao longo do filme.

Ou, então, o encontro de Vittoria com Piero (Alain Delon) no interior da velha Roma e da agitação feérica e incompreensível da bolsa, levando-nos a uma provável relação enclausurada num passado que o presente, aos poucos, está a rejeitar. Todas as cenas na casa de família de Piero ou as seguintes, no escritório do corrector, são de uma alegria e intimidade tuteladas, vigiadas por retratos de antepassados ou telefones fora do descanso.

Até as cenas na casa da amiga «queniana» Marta (Mirella Riccardi), de uma liberdade exuberante, parecem cercadas por uma moral omitida, que o espectador não identifica mas vai respirando. Algum medo. Alguma suspeita. Alguma ameaça latente.

E sobre tudo isto a luz superlativa do Verão. A esquadria portentosa das escadas, dos vidros, das empenas dos prédios, o recorte das folhas das árvores. Os rostos e os corpos maravilhados, quase oníricos de Monica Vitti e Alain Delon. Os cães que fogem, nocturnos. O bidon da água onde flutua a caixa de fósforos, o padre que passa, a criada que passeia o bebé. O carro que é içado do lago artificial. Tudo pode ser futuro. Tudo pode ter já passado. Mas é de uma beleza tão perene que me comove.

E, sobretudo, a face sublime da silenciosa Monica Vitti, que revela tudo com uma gargalhada ou um véu súbito de tristeza, tocada no início pela brisa da ventoinha e pelo vento, no final.

Todas as cenas, inesquecíveis. Não existem filmes mais belos nem mais futuristas!

Que a arquitectura e a poesia de Michelangelo Antonioni tutelem a nossa realidade!

jef, abril 2018

«O Eclipse» (L’Eclisse) de Michelangelo Antonioni. Com Monica Vitti, Alain Delon, Francisco Rabal, Lilla Brignone, Rossana Rory, Mirella Riccardi, Louis Segnier, Cyrus. História de Michelangelo Antonioni e Tonino Guerra; Fotografia: Gianni Di Venanzo. Música: Mina (canções); Giorgio Gaslini. Itália, 1961, P/B, 124 min.

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