terça-feira, 24 de abril de 2018

Sobre o livro «Burgueses Somos Nós Todos ou Ainda Menos» de Mário de Carvalho. Porto Editora, 2018
















Este livro é sobre a contemplação da descrença, a narrativa da desesperança. E a sua maior ironia centra-se no termo exacto do seu título, referência ao poema de Mário Cesariny que é citado em epígrafe, páginas adiante. Talvez o humor aí se conclua.

A ‘burguesia’ de Cesariny é uma burguesia pueril, insciente de si própria, contente, contente por ler sem saber ler. A ‘burguesia’ de Mário de Carvalho não será ainda a burguesia de Marx ou Engels, a simples burguesia capitalista mascarada de cartola e charuto, militarizada, com nariz de porco, caricatura «degenerada» de George Grosz. Nem a pequena burguesia alheada de consciência. É mais um estado triste e complexo dos que, com dote ou herança à vista, reconhecem no tempo, inexorável e fatídico, o fim de uma linha que se desejou de algum estatuto mas que foi deslizando para o desalento, para a solidão.

Onze contos onde perpassa a acrimónia velada contra o futuro, esse infiel tempo verbal que mostra sistematicamente a traição insuspeita enterrada no passado. E se não a desvenda, esconde no desinteresse humilhante, quase nonchalant, de um jantar entre negócios e amigos. São amigos reencontrados que afinal nada mais podem contar uns aos outros; antigos camaradas que envelheceram; velhos lobos solitários caídos em descrédito bancário ou na suspeita hereditária da descendência. Aqui o futuro esconde-se no vão dos pequenos momentos-história da tal caída ‘burguesia’.

Talvez um certo Gustavo Miguel, realizador de cinema, cirandando nas margens da Lagoa Moura, em «A Sala Magenta» (2008), ou o amante da «Ronda das Mil Belas em Frol» (2016), lhes dêem parentalidade.

Porém, as histórias deste livro surgem vivas e prontas a renascer na belíssima estrutura da adjectivação e no alinhavo descritivo tão pormenorizado quanto é exigido pela suspensão do tempo. Precisamente, é no quase maquiavélico manuseio simples e complexo, vanguardista ou oitocentista, de palavras e da sua sintaxe que, afinal, reside a sempre futurista escrita de Mário de Carvalho.

jef, abril 2018                                                               

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