segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Sobre o livro «Os Alferes» de Mário de Carvalho. Caminho, 1989 (3ª edição)















Considerado um clássico, contém três dos textos breves de Mário de Carvalho. Esses contos quase novelas que deixam a sensação no leitor de ter lido longos e frutuosos romances. A contenção no número de palavras face ao narrado e descrito, desenvolvendo por artes e manhas de vocábulos certeiros, verbos incisivos e substantivos que muito adjectivam, tem o estranho e inclassificável poder de fazer acreditar no que se lê transportando-nos para os interstícios de um passado por que nunca passámos.

Mais do que a guerra (no ambiente colonial português), estes textos desvendam o lugar da morte e a distância a que o protagonista (e por sua via o leitor) dela se encontra. Os alferes, o centro das narrativas, são entes por idade e formação técnica e política, distantes dos graduados de carreira ou dos soldados que entram na guerra por mandato de inconsciência; distantes dos seus corpos e almas, das suas perspectivas profissionais e percursos familiares. Homens distantes que observam a morte do lado de fora, ou talvez de um lado de fora demasiado interior, explicando-nos a história como «ouvintes» que também o são. O humor, uma tecla primordial no escritor, é usado de modo agudo aumentando a compreensão crítica dos planos narrativos e apartando protagonistas e leitores.

Seria pecado, negando o prazer à leitura, ditar algo que desvendasse a intriga, nobremente urdida, subtraindo o espanto de certo modo mágico que o leitor sofre ao chegar às últimas páginas. Mestre do suspense é Mário de Carvalho.

Apenas pode dizer-se que esses tempo e espaço que separam a morte (e a guerra) no primeiro texto são vistos pelo alferes ao ser colocado num extemporâneo aquartelamento de cavalaria. Como de uma plateia de cinema. Enquanto no segundo conto, o espectador, alferes, público, é situado, imóvel, num bimotor a caminho de Baucau ao lado de um major «suspeito» que lhe vai contando uma história em jeito xerazádico, tal como Stefan Zweig tanto gosta de fazer nas suas novelas. Por último, a distância e o tempo encurtam-se desmedidamente mas o terceiro alferes permanece do lado de fora, totalmente fora de si. Como peixe fora de água, rente às suas botas, ao capim. Fora do seu mundo, do mundo da guerra, do mundo da morte. Lembrei-me de um dos contos de Boris Vian em «As Formigas».

Um assombro narrativo.

jef, outubro 2018                                                               

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