quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Sobre o livro «Aventuras de João Sem Medo» de José Gomes Ferreira (1933 / 1963). Colecção BIS / Leya 2015 (9ª Edição)















Duvido que o realizador M. Night Shyamalan tivesse lido «Aventuras de João Sem Medo» quando filmou «A Vila» (2004), esse estranho ermo murado, de onde era difícil sair, repleto de medos inventados e moral agressiva e subserviente. Se o tivesse feito teria sorrido certamente com a analogia da fantasia de José Gomes Ferreira. Um livro a que o autor deu o mote de “Panfleto Mágico em Forma de Romance”.

A vila neste caso chama-se Chora-Que-Logo-Bebes e é descrita logo no primeiro capítulo do folhetim: «Tudo isto incitava os habitantes da aldeia a andarem de monco caído, sempre constipados por causa da humidade, e a ouvirem com delícia canções de cemitério ganidas por cantores trajados de luto, ao som de instrumentos plangentes e monótonos.» Claro que João Sem Medo foge logo à segunda página desta triste povoação e da sua mãe lacrimosa.

José Gomes Ferreira entretém-se com uma extraordinária colecção de adjectivos classificando os dois lados do Muro. «E as fontes embaladoras desdobravam o seu vagaroso sussurro de tédio dormente. […] De tal forma que resolveu acordar-se com dois ou três gritos e insultos que vararam a Floresta Adormecida:
– Então aqui não vive ninguém? Nem nereidas, nem faunos, nem gnomos, nem nada? Foi para esta pasmaceira que eu escalei o Muro, digam lá?»

E o tom de alegre acrimónia contra o tom melífluo dos contos de fada vai crescendo em João Sem Medo, através dos diversos episódios inicialmente publicados no periódico «O Senhor Doutor», em 1933. Uma paródia sem tino a cruzar as ‘Viagens de Gulliver’ e o ‘Principezinho’, onde a coragem, essa força que vem do coração, é atravessada de peripécias mirabolantes com ‘bichos-meio-máquina-meio-divindade-Grimm’, e fins abruptos e escanifobéticos, ao estilo deus ex-machina, pois os caracteres estariam a esgotar-se. Textos enfim publicados em livro em 1936.

Este livro é mesmo muito interessante, e não é só por essa desfaçatez anti-dogma literário que faz o autor divertir-se divertindo os leitores através da criação de um mundo libertário e anarquista, quixotesco, que goza com qualquer Plano Nacional de Leitura que obriga a ler quem não quer ler, contestando igualmente o fato apertado de um realismo-neo-realista que não lhe assenta por medida.

Claro que este maravilhoso conjunto de 15 episódios contém duas pérolas absolutas da literatura psicológica e social. «O Príncipe das Orelhas de Burro» e «Os Três Incompetentes Triunfantes». Se não estão incluídos nas antologias de contos é um crime de lesa literatura.

E no final há uma nota essencial e tão actual do próprio autor (1973) sobre uma certa vida cultural deste país do Chora-Que-Logo-Bebes e que assim termina:

«Bruxas? Não existem – dirão os senhores peremptórios, naturalistas e suficientes.
Pois não.
Mas a caça às bruxas, isso afirmo-vos eu que há.»

jef, outubro 2018

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