quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Sobre o filme «Reas» de Lola Arias, 2024



 


























Existe qualquer coisa falhada neste filme. Sugere que a realizadora terá deixado as personagens-actrizes um pouco ao deus-dará. Elas que carregam toda a sua vida passada no interior da sua vida presente. Elas que encenam o próprio percurso, a sua condenação, os medos e desejos para o futuro, dentro ou fora da prisão onde estiveram encerradas.

A pandemia inutilizou a ideia original de as filmar dentro da realidade prisional presente, adiando o projecto. Então, posteriormente, Lola Arias convoca agora as ex-presidiárias, libertadas, para nos mostrarem as suas experiências de cárcere num filme musical, aligeirando-as no inóspito espaço de um estabelecimento prisional arruinado em Buenos Aires.

E, de facto, todas as actrizes-personagens parece estarem confortáveis e alegres nesse aligeiramento musical do seu passado, contudo o espaço é demasiado grande, a encenação, a marcação de cena e a sequências das cenas parecem ser timídas, pobres, talvez forçadas, deixando o possível entusiasmo dos números musicais fora da nossa emoção, longíssimo da nossa adesão social e cinéfila. E como aquelas mulheres mereciam mais do nosso coração.

Somente na sequência final existe plasticidade cinematográfica, digamos mistério afectivo e teatral, real comédia, numa câmara que, de tão próxima, nos faz crer uma coisa e, depois, num distanciar de drone nos revela afinal um cenário completo. (A propósito. Jamais esquecerei a cena final de «O Navio» de Federico Fellini…)


jef, novembro 2024

«Reas» de Lola Arias. Com Yoseli Arias, Ignacio Amador Rodriguez, Estefanía Hardcastle, Noelia Perez, Carla Canteros, Paulita Asturayme. Argumento: Lola Arias. Produção: Gema Juárez Allen, Clarisa Oliveri. Fotografia: Martín Benchimol. Música: Ulises Conti. Argentina / Suiça /Alemanha, 2024, Cores, 82 min.


domingo, 24 de novembro de 2024

Sobre o filme «Bowling Saturno» de Patricia Mazuy, 2022



 






















Este forte, cru, magnífico filme policial desenvolve-se em vários planos e parte da premissa biológica – seremos mais fruto do que está impresso nos nossos cromossomas ou dos dias e anos que que já passaram por nós?

Num primeiro plano, existe a estética fotográfica sem compromisso que envolve inexoravelmente os dois meio-irmãos: Armand (Achille Reggiani), assim chamado como o pai de ambos, mas por decisão materna, e Guillaume (Arieh Worthalter), polícia criminal na cidade normanda de Caen. Entre os dois, o Bowling Saturno, habitat permanente do pai e do seu restante aguerrido grupo de caçadores de caça maior e caça grossa. Armand, o pai, acaba de morrer e ao bowling são devidas partilhas.

O plano estético fixa-se, no início, com a cena de uma echarpe que esvoaça mal cativa de um vidro de automóvel fechado à pressa. Um acto poético que logo exprime a personalidade do jovem Armand, perdido quase adolescente, no espaço de um parque de estacionamento, pedindo auxílio. O enquadramento sintético sugere um nocturno Edward Hopper fascinado pelos laivos luminosos da pintura flamenga. O azul e o vermelho são símbolos.

Num outro plano, os dois irmãos confrontar-se-ão com o legado de violência do pai desaparecido. Um, pelo lado da investigação policial, o outro, pela veia psicanalítica. Armand passará a usar um blusão feito de pele de píton do seu pai, como marca da sua personalidade (assim também o fizera Nicolas Cage (Sailor) em «Coração Selvagem», Davis Lynch 1990). A caça é o tema fulcral das três personagens. Armand mimetiza Armand e todos caçam ou caçaram.

Outro, ainda, é a certeza física, os planos que não temem colocar o espectador bem frente aos corpos, às expressões, como nos filmes mudos expressionistas. A diferença é que aqui os corpos parecem movimentar-se ao sabor de todos os sentidos, com todas as marcas e máculas. Os corpos vivos e os cadáveres transportam todos os sinais e todas as impurezas, cheiros, feridas, sangue e cicatrizes.

O carácter violentamente físico dá expressão, acima de tudo, à extrema capacidade emocional das personagens, justificando-a. Por isso, jamais toca a prespectiva voyeurista, escatológica ou, digamos, “gore”.

E todos os planos se unem perante uma sociedade que todos são obrigado a admitir (não fosse o filme co-produzido pelos magos do cinema social Jean-Pierre e Luc Dardenne).

E, por fim e não menos importante, este forte, cru e magnífico filme tem uma estrutura clássica de intriga policial onde o ilícito e a respectiva investigação seguem atrás do conhecimento factual, já pertença do espectador.

A não perder.

 

jef, novembro 2024

«Bowling Saturno» (Bowling Saturne) de Patricia Mazuy. Com Arieh Worthalter, Achille Reggiani, Y-Lan Lucas, Leïla Muse, Frédéric van den Driessche, Olivier Faliez, Elisa Hartel, Emmanuel Matte, Nicolas Lepy, Frédérique Renda, Denis Ardant, Anne-Lise Heimburger, David Jonquières, Barnaby Apps, Stéphane Chancerel, Vinciane Millereau, Heidi Varin, Sonia Mateos, Gabrielle Chabot, Anne Leblanc, Lou Gala. Argumento: Patricia Mazuy, Yves Thomas. Produção: Adrienne D'Anna, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne, Patrick Sobelman. Fotografia: Simon Beaufils. Música: Wyatt E., Sébastien Landauer, Stéphane Rondia. Guarda-roupa: Khadija Zeggaï. França / Bélgica, 2022, 114 min.





quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Sobre o livro «As Melhoras da Morte» de Rui Cardoso Martins, Tinta da China 2024


 








18 anos depois («E Se Eu Gostasse Muito de Morrer», Dom Quixote, 2006), o autor volta ao local de toda a convulsão, de toda a inquietação, de toda a morte… Realmente nada há de mais certo. (Ou melhor, de toda a vontade de morrer). Principalmente, numa cidade perdida na lonjura do mar, guardada pelo sopé da serra e contemplando a planície alentejana que dali lhe foge. Por que será que o cante alentejano não guarda memória das suas canções de protesto e revolta? Por que será que o Alentejo reserva para si a mágoa, esquecendo-se de si próprio para melhor construir daí a poética da sua memória? Por que será tão atraente o suicídio naquelas paragens?

Cruzeta, magro e introspectivo, regressa para um evento solene e festivo. Segue no carro com o Altino e o Zeca. Matcha deflagrou-se a meio do espetáculo punk-rock-cante-gregoriano “Os Escombros de Berlim”. A cerimónia é-lhe devida. Também uma nova visita ao cemitério. Mas Cruzeta já não traz no bolso do quispo a pinha de cavilha enferrugada. Também não visitará o bispo que terá calado a tragédia do massacre de Wiriamu. O bispo já é outro, a cidade já é outra, mas continua na mesma, como observaria o Príncipe de Lampedusa. E Cruzeta traz no bolso uma nova arma – uma esfera onde vive, capturado morto, um auto-implosivo blobfish transportado de um próximo Japão. Paz á alma do pobre peixe bem no fundo da barragem.

O que impressiona na escrita de Rui Cardoso Martins é exactamente essa veia cosmopolita e universal que leva a frase de Raskolnikov a cada uma das personagens da Torre de Ver a Luz, mandada erigir por João dos Cães, ou a cada um dos entusiastas vínicos do Esquadrão da Morte. Todo o Mundo, toda a História, todo Portugal está dentro deste Alentejo mortalmente dirimido mas sobrevivo na sua eterna alma.

Tal como por exemplo em Olivier Rolin, também em Rui Cardoso Martins o mundo é a casa de todos os átomos e de todos os factos, contudo a sua estratégia literária assenta numa impressionante teia de pormenores ternos e microscópicos, tão dramáticos como divertidos, que obrigam a ficção à pura verosimilhança.

Aqui talvez a ficção seja a realidade narrada pelo afecto, numa consciente vocação emocional perante os pequenos seres, humanos ou animais, fazendo jus à veia cronista ou jornalística ou teatral do autor.

E se, pelo meio de tantas histórias, enredos, casas e paisagens, nos formos perdendo atrás dos passos do Cruzeta, não nos preocupemos, Rui Cardoso Martins far-nos-á o favor de, de tempos a tempos, relembrar o início dos tempos da história, tal como os antigos faziam no relato das clássicas epopeias.  

Um enorme escritor!

 

jef, novembro 2024

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Sobre o filme «A Vida Entre Nós» de Stéphane Brizé, 2023


 









Devendo sempre manter a devida distância entre os filmes que se vão vendo, existe, contudo, no nosso cérebro, um factor silogístico que provoca tal estranha ligação. «A Vida Entre Nós» (que poderia antes ter adoptado o título português de ‘Estação Morta’) fez-me lembrar dois filmes de culto: «Breve Encontro» (David Lean, 1945) e «As Pontes de Madison County» (Clint Eastwood, 1995).

Talvez seja por esse encontro, inusitado ou ansiando, entre Mathieu (Guillaume Canet) e Alice (Alba Rohrwacher), numa altura em que a costa atlântica francesa, ventosa e revolta, não convida a banhos e provoca a normal confrontação com o inverno de todos os balanços, mais ou menos pretéritos. 

A contenção cenográfica que envolve sempre a solidão das personagens em confronto com a tempestuosa costa rochosa da Bretanha; a linha narrativa, contida e inesperada, provocando o mistério e a comoção; a terna convocação de episódios, cenários e personagens reais – quase reportagem –, fazem do filme uma peça única, emocional e carinhosa, no panorama cinematográfico contemporâneo, a braços (naturalmente, como deve ser a verdadeira arte) com a violência em que o planeta se afundou.

Um filme que se centra em dois dos actores do meu coração: Guillaume Canet («Vidas Duplas» de Olivier Assayas, «Ou Nadas ou Afundas» de Gilles Lellouche, ambos de 2018) e, muito em especial, a belíssima Alba Rohrwacher («Feliz como Lázaro» de Alice Rohrwacher, 2018, «Três Andares» de Nanni Moretti, 2021 ou «Marcha Sobre Roma» de Mark Cousins, 2022).

A não perder de vista do coração!


jef, novembro 2024

«A Vida Entre Nós» (Hors-Saison) de Stéphane Brizé. Com Guillaume Canet, Alba Rohrwacher, Sharif Andoura, Marie Drucker, Emmy Boissard Paumelle, Lucette Beudin, Gilberte Bellus, Hugo Dillon, Stéphane Brizé, Johnny Rasse, Jean Boucault, Pauline Tamestit-Le Morlec, Tina Chemillé, Corentin Le Divellec. Argumento: Stéphane Brizé, Marie Drucker. Produção: Guillaume Canet, Sidonie Dumas. Fotografia: Antoine Héberlé. Música: Vincent Delerm. Guarda-roupa: Caroline Spieth. França, 2023, Cores, 115 min.

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Sobre o disco «ReEncanto» de Mayra Andrade, Komos 2024










No âmbito do Festival de Jazz de Londres, novembro de 2023, Mayra Andrade acompanhada apenas a guitarra acústica de Djodje Almeida, sobem ao palco e gravam ao vivo estas 18 canções, oferecendo-as ao público assim numa linha pura onde a voz e as cordas da guitarra vão fazendo uma conversa que se solta das raízes cabo-verdianas libertando-as para o singelo devaneio do jazz e da batida do coração. A voz do coração, simplesmente. A grande parte dos temas vêm dos álbuns de originais «Lovely Difficult» e «Manga» (Sony, 2013, 2019).

Aqui, dentro de certo eco (ou mesmo espiritualidade) oferecidos pelo espaço da Union Chapel, “Plena” ou “Navega” ou “Kodé” surgem como que a cappella, soltando-se a voz madura de Mayra Andrade da base das cordas percutidas de Djodje Almeida, e vice-versa, tornando-se numa espécie de comunicação poética sobre as palavras cantadas, uma vibração sónica muito íntima entre a música e os poemas de uma profunda simplicidade.

O que mais espanta em Mayra Andrade é a capacidade de fazer a música de Cabo Verde uma conquista sua, reconhecível por única, apropriando-se dela através de um modo muito especial: modernista, eléctrico ou agora de modo apenas acústico, um certo modo muito urbano e cosmopolita.

(Embora Mayra não a cante aqui neste disco ao vivo, o último álbum de originais contém uma canção linda, linda “Guardar Mais” que vou a correr ouvir e re-ouvir no dia de hoje, 19 de novembro, que faz um ano que morreu Sara Tavares. É de sua autoria e conta e canta a saudade que sente da sua avó Eugénia.)

jef, novembro 2024

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Sobre o disco «Gente» de Nancy Vieira, Galileo 2024







A música cravada em Cabo Verde é uma espécie de porto de abrigo. Nancy Vieira será a sua alegria, a sua transformadora revertendo essa metamorfose em tradição. E assim voltamos ao início. Sabe-me bem.

Mário Lúcio Sousa, Osvaldo Dias, Fred Martins, Adalberto Silva, Remna, Luís Firmino e Teófilo Chantre. E, claro, B. Leza. E a produção de Amélia Muge, António José Martins e Nancy Vieira.

“O Fado Crioulo” com António Zambujo, “Meditá” com Paulo Flores ou “Rosa Sábi” de e com Amélia Muge.

Quem não se comove (ou dança) ao som desta miscelânea musical? Mornas, coladeiras, fados ou tudo misturado. Quem não se tocará com essa forma erudita de tocar música popular ao som de violino, acórdão ou clarinete…?

Quem não se encanta com o modo de arranjos clássicos mas sub-reptícios, colocando ali assobios e sussurros, baixos, cavaquinhos e percussões costuradas com sensibilidade e perícia mas sem nunca desvirtuar a mistura musical inicial?

Nancy Vieira tem uma voz terna, talvez agora mais grave, que dá gravidade à distância e solidão geográficas sem esquecer de dar alegria a cada passo de dança.

E, atenção, termina com essa homenagem à Morna e à Morabeza cabo-verdianas numa espécie de valsa lenta e amorosa – “Dona Morna”.

Nancy Vieira, a revisitar, ouvindo, sempre!


jef, novembro 2024

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Sobre o filme «Anora» de Sean Baker, 2024














Sempre que vejo filmes como este lembro-me de Frank Capra. Essa amabilidade moral (política) servida por grandes actores, diálogos rigorosos, sinceros e sucintos, tudo no interior de uma história que, aparentemente, não perde tempo com pormenores, antes prefere expô-los bem visíveis mas laterais, apenas oferecidos aos que olham os seus filmes com máxima atenção. Onde a maldade, se existe, resulta do fruto das circunstâncias e a sua desmontagem é o cerne da intriga.

Anora (ou Ani, como ela prefere ser chamada para distanciar-se das suas origens eslavas) é uma espécie de Cinderela (musculada e de topete) que trabalha num clube de acompanhamento sexual em Nova Iorque, cumprindo o seu trabalho com rigor e profissionalismo. Até que surge ali um quase adolescente, quase pueril, Ivan (Mark Eydelshteyn), filho-família russa de enorme poderio económico, pronto a divertir-se até ao limite da loucura e do esbanjamento. Até ao casamento nocturno naquelas capelas cor-de-rosas e iconoclastas de Las Vegas. O resto do filme é como se imagina e o espectador vai seguindo a trupe de “funcionários” e “solicitadores” que a mando da família de Ivan tenta resolver a questão em definitivo.

Mas o filme (que arrecadou a palma de ouro em Cannes) coloca-nos perante a força interior e a construção da personalidade fortíssima de Anora, edificada pela magnífica, extraordinária Mikey Madison, uma mulher que aos poucos comanda definitivamente o percurso da história e as peripécias humorísticas de uma incrível perseguição automóvel. Contudo, o que move Anora é mesmo o sonho proposto de uma vida amorosa ideal que ela, afinal, assumiu como realidade, mas que, mais tarde, vai substituir pela defesa da individualidade e da dignidade femininas, culminando com o assombroso diálogo final com Igor (Yura Borisov) que abre espaço para o desenlace final, pungente, silencioso e nevado, à boa maneira dos mais belos clássicos do cinema americano.

Um dos grandes filmes de 2024.

E prestaremos muita atenção à actriz Mikey Madison e ao realizador Sean Baker, a quem devemos outro filme inteligente, emocional e político: «The Florida Project» (2017).


jef, agosto 2024

«Anora» de Sean Baker. Com Mikey Madison, Mark Eydelshteyn, Paul Weissman, Lindsey Normington, Emily Weider, Luna Sofía Miranda, Yura Borisov, Vincent Radwinsky, Brittney Rodriguez, Sophia Carnabuci, Anton Bitter, Ella Rubin, Ross Brodar, Zoë Vnak, Vlad Mamai, Maria Tichinskaya, Ivy Wolk, Karren Karagulian, Vache Tovmasyan, Morgan Charlton, Nazar Khamis, Charles Jang, Lana Svidonovich. Argumento: Sean Baker. Produção: Sean Baker, Alex Coco, Samantha Quan. Fotografia: Drew Daniels. Decoração: Christopher Phelps. Guarda-roupa: Jocelyn Pierce. EUA, 2024, Cores, 139 min.

domingo, 10 de novembro de 2024

Sobre o livro «Estilhaços» de Bret Easton Ellis, Asa, 2023. Tradução de Elsa T.S. Vieira


 









Este é um romance desabrido. Sem paninhos quentes ou rodriguinhos que facilitem a vida ao leitor. Uma espécie de livro policial ou de suspense ou thriller que fica a meio caminho entre a realidade e a vocação literária de alterar a realidade para melhor a fixar, melhor, para a modificar e assim ficar mais compreensível, mais dura, ou mais ficcional.

Califórnia, Los Angeles, colégio Buckley, 1981. O finalista Bret Ellis tem 17 anos e anda a escrever o seu primeiro romance «Menos que Zero». Ele e os colegas vivem em grupo, numa "bolha", a amizade protege-os no conforto da abundância e na independência e distanciamento familiares. O dinheiro, o sexo e as drogas não parecem ser problema no interior do luxo e da luminosidade de Los Angeles. As cassetes com as novidades discográficas e os teatros exibindo no grande ecrã os êxitos cinematográficos fazem de banda sonora e banda visual para o dia a dia daqueles adolescentes que ainda não estão preparados para enfrentar a visão adulta do mundo ou perder a alheada inocência que teimam em praticar. De «Shining» de Stanley Kubrick (1980) a «Icehouse» (1981). Apenas a homossexualidade vai ficando, oculta mas usufruída, suspensa na moldura do quadro do privilégio de uma sociedade. Até que, no último ano de liceu, é transferido um novo aluno, misterioso e atraente, no mesmo momento em que dá alvíssaras a actividade criminosa de um grupo que se aproxima, rondando, com uma série tenebrosa de assassinatos.

Em «Estilhaços» não existe contemplações com as narrativas sobre o sexo, as drogas e os cadáveres doa animais, ou com as descrições pormenorizadas das cores, das roupas, dos ambientes, das mansões e piscinas particulares, da geografia da costa californiana. Também do horror. Verdade ou simulacro literário?

Um quase diário sobre a especulação artística numa atmosfera que talvez já tenhamos vislumbrado com os livros de Raymond Chandler. Ou com «Mulholland Drive» (David Lynch, 2021) ou «Era Uma Vez Em... Hollywood» (Quentin Tarantino, 2019). Só que neste "filme" existe uma nova definição para a literatura de entretenimento e horror.

Silêncio e Mentira e Torpor e Medo são os substantivos que suportam esta narrativa imparável com uma estrutura exegética construída em finíssima minúcia.

Quem não se sentir tocado por estes substantivos adjectivados e continuar a dormir descansado depois da leitura de «Estilhaços» de Bret Easton Ellis já terá vendido o coração ao diabo.


jef, novembro 2024

sábado, 9 de novembro de 2024

Sobre a peça «Macbeth - A Peça Escocesa» de Manuel Jerónimo, a partir de William Shakespeare. Boutique da Cultura, 2024


 




























Uma peça amaldiçoada, por feminista. Lady Macbeth é mais famosa e engenhosa que o próprio Macbeth. Macbeth, pasto de visões e dúvidas, de bruxedos e ambições alheias, bons presságios que se tornam maus agoiros por deficiente interpretação, ventres defuntos que dão à luz nados vivos. E, contudo, as florestas movem-se, assim diz Shakespeare, eternamente plagiado por Orson Welles (1948) ou Akira Kurosawa («O Trono de Sangue» 1957) . Ou por Manuel Jerónimo…

O problema é que, agora, quase toda a intriga (e sanguinárias facadas) se move por cima de um balcão de haut cuisine ou, mais correctamente, por baixo do citado balcão. Onde permanecem os cinco actores transferindo a ansiedade psicológica ou o desvario psicopata da tragédia para uma tresloucada comédia cumprida sob a nevrótica paranoia das hauts cuisines televisivas.

E como é excelente Manuel Jerónimo a avisar que os espectadores vão estar sob vigilância de diabólicos prenúncios e que não devem sequer mencionar esse nome proibido. E como a plateia fica a rodear de modo acolhedor, íntimo, quase cúmplice, o palco de toda a trágica manipulação.

E como os cinco actores cumprem sem parar, numa velocidade para além do cruzeiro, todos os vaticínios sanguinolentos tendo nas mãos apenas a sua perfeita veia cómica e meia dúzia de tachos e frigideiras, uma ou duas facas que parecem dezenas, um ou dois tomates, (um pepino, claro!) e meia dúzia de tartes de natas à boa maneira da ancestral comédia vaudeville de Hollywood.

A encenação, os elementos cenográficos, o diálogo e a transposição dos personagens de tragédia para comédia numa movimentação de cena radical feita em poucos metros quadrados, fazem daqueles actores como que extraordinárias marionetas, ao mesmo tempo suspensas e escondidas.

Um exemplo de como hoje em dia o teatro em Portugal se move por óptimas águas, claras, inteligentes e populares.


jef, 7 de novembro de 2024


«Macbeth - A Peça Escocesa» Texto e encenação: Manuel Jerónimo, a partir de William Shakespeare. Direcção Artística: João Borges de Oliveira. Com Ana Isabel Sousa (Bruxa(s) / Lady Macbeth), Bruno Realista (Banquo / Donalbain, filho mais novo de Duncan), David Correia (Macbeth), Fernanda Paulo (Duncan, Rei da Escócia / Assassino) e Gonçalo Sítima (Malcolm, filho mais velho de Duncan /Assassino). Cenografia: Silveira Cabral. Desenho de Luz e Operação Técnica: Tiago Santos. Produção: Boutique da Cultura. 75 minutos.