Este
forte, cru, magnífico filme policial desenvolve-se em vários planos e parte da
premissa biológica – seremos mais fruto do que está impresso nos nossos cromossomas ou
dos dias e anos que que já passaram por nós?
Num
primeiro plano, existe a estética fotográfica sem compromisso que envolve
inexoravelmente os dois meio-irmãos: Armand (Achille Reggiani), assim chamado
como o pai de ambos, mas por decisão materna, e Guillaume (Arieh Worthalter),
polícia criminal na cidade normanda de Caen. Entre os dois, o Bowling Saturno, habitat
permanente do pai e do seu restante aguerrido grupo de caçadores de caça maior
e caça grossa. Armand, o pai, acaba de morrer e ao bowling são devidas
partilhas.
O plano estético fixa-se, no início, com a cena de uma echarpe que esvoaça mal cativa
de um vidro de automóvel fechado à pressa. Um acto poético que logo exprime a
personalidade do jovem Armand, perdido quase adolescente, no espaço de um
parque de estacionamento, pedindo auxílio. O enquadramento sintético sugere um
nocturno Edward Hopper fascinado pelos laivos luminosos da pintura flamenga. O
azul e o vermelho são símbolos.
Num
outro plano, os dois irmãos confrontar-se-ão com o legado de violência do pai
desaparecido. Um, pelo lado da investigação policial, o outro, pela veia psicanalítica.
Armand passará a usar um blusão feito de pele de píton do seu pai, como marca da
sua personalidade (assim também o fizera Nicolas Cage (Sailor) em «Coração
Selvagem», Davis Lynch 1990). A caça é o tema fulcral das três personagens.
Armand mimetiza Armand e todos caçam ou caçaram.
Outro,
ainda, é a certeza física, os planos que não temem colocar o espectador bem
frente aos corpos, às expressões, como nos filmes mudos expressionistas. A
diferença é que aqui os corpos parecem movimentar-se ao sabor de todos os
sentidos, com todas as marcas e máculas. Os corpos vivos e os cadáveres transportam
todos os sinais e todas as impurezas, cheiros, feridas, sangue e cicatrizes.
O
carácter violentamente físico dá expressão, acima de tudo, à extrema capacidade
emocional das personagens, justificando-a. Por isso, jamais toca a prespectiva voyeurista,
escatológica ou, digamos, “gore”.
E
todos os planos se unem perante uma sociedade que todos são obrigado a admitir (não
fosse o filme co-produzido pelos magos do cinema social Jean-Pierre e Luc
Dardenne).
E,
por fim e não menos importante, este forte, cru e magnífico filme tem uma
estrutura clássica de intriga policial onde o ilícito e a respectiva investigação
seguem atrás do conhecimento factual, já pertença do espectador.
A
não perder.
jef,
novembro 2024
«Bowling
Saturno» (Bowling Saturne) de Patricia Mazuy. Com Arieh Worthalter, Achille
Reggiani, Y-Lan Lucas, Leïla Muse, Frédéric van den Driessche, Olivier Faliez, Elisa
Hartel, Emmanuel Matte, Nicolas Lepy, Frédérique Renda, Denis Ardant, Anne-Lise
Heimburger, David Jonquières, Barnaby Apps, Stéphane Chancerel, Vinciane
Millereau, Heidi Varin, Sonia Mateos, Gabrielle Chabot, Anne Leblanc, Lou Gala.
Argumento: Patricia Mazuy, Yves Thomas. Produção:
Adrienne
D'Anna, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne, Patrick Sobelman. Fotografia: Simon
Beaufils. Música: Wyatt E., Sébastien Landauer, Stéphane Rondia. Guarda-roupa: Khadija
Zeggaï. França / Bélgica, 2022, 114 min.
Sem comentários:
Enviar um comentário