domingo, 24 de novembro de 2024

Sobre o filme «Bowling Saturno» de Patricia Mazuy, 2022



 






















Este forte, cru, magnífico filme policial desenvolve-se em vários planos e parte da premissa biológica – seremos mais fruto do que está impresso nos nossos cromossomas ou dos dias e anos que que já passaram por nós?

Num primeiro plano, existe a estética fotográfica sem compromisso que envolve inexoravelmente os dois meio-irmãos: Armand (Achille Reggiani), assim chamado como o pai de ambos, mas por decisão materna, e Guillaume (Arieh Worthalter), polícia criminal na cidade normanda de Caen. Entre os dois, o Bowling Saturno, habitat permanente do pai e do seu restante aguerrido grupo de caçadores de caça maior e caça grossa. Armand, o pai, acaba de morrer e ao bowling são devidas partilhas.

O plano estético fixa-se, no início, com a cena de uma echarpe que esvoaça mal cativa de um vidro de automóvel fechado à pressa. Um acto poético que logo exprime a personalidade do jovem Armand, perdido quase adolescente, no espaço de um parque de estacionamento, pedindo auxílio. O enquadramento sintético sugere um nocturno Edward Hopper fascinado pelos laivos luminosos da pintura flamenga. O azul e o vermelho são símbolos.

Num outro plano, os dois irmãos confrontar-se-ão com o legado de violência do pai desaparecido. Um, pelo lado da investigação policial, o outro, pela veia psicanalítica. Armand passará a usar um blusão feito de pele de píton do seu pai, como marca da sua personalidade (assim também o fizera Nicolas Cage (Sailor) em «Coração Selvagem», Davis Lynch 1990). A caça é o tema fulcral das três personagens. Armand mimetiza Armand e todos caçam ou caçaram.

Outro, ainda, é a certeza física, os planos que não temem colocar o espectador bem frente aos corpos, às expressões, como nos filmes mudos expressionistas. A diferença é que aqui os corpos parecem movimentar-se ao sabor de todos os sentidos, com todas as marcas e máculas. Os corpos vivos e os cadáveres transportam todos os sinais e todas as impurezas, cheiros, feridas, sangue e cicatrizes.

O carácter violentamente físico dá expressão, acima de tudo, à extrema capacidade emocional das personagens, justificando-a. Por isso, jamais toca a prespectiva voyeurista, escatológica ou, digamos, “gore”.

E todos os planos se unem perante uma sociedade que todos são obrigado a admitir (não fosse o filme co-produzido pelos magos do cinema social Jean-Pierre e Luc Dardenne).

E, por fim e não menos importante, este forte, cru e magnífico filme tem uma estrutura clássica de intriga policial onde o ilícito e a respectiva investigação seguem atrás do conhecimento factual, já pertença do espectador.

A não perder.

 

jef, novembro 2024

«Bowling Saturno» (Bowling Saturne) de Patricia Mazuy. Com Arieh Worthalter, Achille Reggiani, Y-Lan Lucas, Leïla Muse, Frédéric van den Driessche, Olivier Faliez, Elisa Hartel, Emmanuel Matte, Nicolas Lepy, Frédérique Renda, Denis Ardant, Anne-Lise Heimburger, David Jonquières, Barnaby Apps, Stéphane Chancerel, Vinciane Millereau, Heidi Varin, Sonia Mateos, Gabrielle Chabot, Anne Leblanc, Lou Gala. Argumento: Patricia Mazuy, Yves Thomas. Produção: Adrienne D'Anna, Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne, Patrick Sobelman. Fotografia: Simon Beaufils. Música: Wyatt E., Sébastien Landauer, Stéphane Rondia. Guarda-roupa: Khadija Zeggaï. França / Bélgica, 2022, 114 min.





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