18
anos depois («E Se Eu Gostasse Muito de Morrer», Dom Quixote, 2006), o autor
volta ao local de toda a convulsão, de toda a inquietação, de toda a morte…
Realmente nada há de mais certo. (Ou melhor, de toda a vontade de morrer). Principalmente,
numa cidade perdida na lonjura do mar, guardada pelo sopé da serra e
contemplando a planície alentejana que dali lhe foge. Por que será que o cante
alentejano não guarda memória das suas canções de protesto e revolta? Por que
será que o Alentejo reserva para si a mágoa, esquecendo-se de
si próprio para melhor construir daí a poética da sua memória? Por que será tão
atraente o suicídio naquelas paragens?
Cruzeta,
magro e introspectivo, regressa para um evento solene e festivo. Segue no carro
com o Altino e o Zeca. Matcha deflagrou-se a meio do espetáculo
punk-rock-cante-gregoriano “Os Escombros de Berlim”. A cerimónia é-lhe devida. Também
uma nova visita ao cemitério. Mas Cruzeta já não traz no bolso do quispo a
pinha de cavilha enferrugada. Também não visitará o bispo que terá calado a
tragédia do massacre de Wiriamu. O bispo já é outro, a cidade já é outra, mas
continua na mesma, como observaria o Príncipe de Lampedusa. E Cruzeta traz no
bolso uma nova arma – uma esfera onde vive, capturado morto, um auto-implosivo blobfish transportado de um próximo Japão.
Paz á alma do pobre peixe bem no fundo da barragem.
O
que impressiona na escrita de Rui Cardoso Martins é exactamente essa veia
cosmopolita e universal que leva a frase de Raskolnikov a cada uma das
personagens da Torre de Ver a Luz, mandada erigir por João dos Cães, ou a cada
um dos entusiastas vínicos do Esquadrão da Morte. Todo o Mundo, toda a
História, todo Portugal está dentro deste Alentejo mortalmente dirimido mas sobrevivo
na sua eterna alma.
Tal
como por exemplo em Olivier Rolin, também em Rui Cardoso Martins o mundo é a
casa de todos os átomos e de todos os factos, contudo a sua estratégia
literária assenta numa impressionante teia de pormenores ternos e
microscópicos, tão dramáticos como divertidos, que obrigam a ficção à pura
verosimilhança.
Aqui
talvez a ficção seja a realidade narrada pelo afecto, numa consciente vocação
emocional perante os pequenos seres, humanos ou animais, fazendo jus à veia cronista
ou jornalística ou teatral do autor.
E
se, pelo meio de tantas histórias, enredos, casas e paisagens, nos formos perdendo
atrás dos passos do Cruzeta, não nos preocupemos, Rui Cardoso Martins far-nos-á
o favor de, de tempos a tempos, relembrar o início dos tempos da história, tal
como os antigos faziam no relato das clássicas epopeias.
Um
enorme escritor!
jef, novembro 2024
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