quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Sobre o livro «As Melhoras da Morte» de Rui Cardoso Martins, Tinta da China 2024


 








18 anos depois («E Se Eu Gostasse Muito de Morrer», Dom Quixote, 2006), o autor volta ao local de toda a convulsão, de toda a inquietação, de toda a morte… Realmente nada há de mais certo. (Ou melhor, de toda a vontade de morrer). Principalmente, numa cidade perdida na lonjura do mar, guardada pelo sopé da serra e contemplando a planície alentejana que dali lhe foge. Por que será que o cante alentejano não guarda memória das suas canções de protesto e revolta? Por que será que o Alentejo reserva para si a mágoa, esquecendo-se de si próprio para melhor construir daí a poética da sua memória? Por que será tão atraente o suicídio naquelas paragens?

Cruzeta, magro e introspectivo, regressa para um evento solene e festivo. Segue no carro com o Altino e o Zeca. Matcha deflagrou-se a meio do espetáculo punk-rock-cante-gregoriano “Os Escombros de Berlim”. A cerimónia é-lhe devida. Também uma nova visita ao cemitério. Mas Cruzeta já não traz no bolso do quispo a pinha de cavilha enferrugada. Também não visitará o bispo que terá calado a tragédia do massacre de Wiriamu. O bispo já é outro, a cidade já é outra, mas continua na mesma, como observaria o Príncipe de Lampedusa. E Cruzeta traz no bolso uma nova arma – uma esfera onde vive, capturado morto, um auto-implosivo blobfish transportado de um próximo Japão. Paz á alma do pobre peixe bem no fundo da barragem.

O que impressiona na escrita de Rui Cardoso Martins é exactamente essa veia cosmopolita e universal que leva a frase de Raskolnikov a cada uma das personagens da Torre de Ver a Luz, mandada erigir por João dos Cães, ou a cada um dos entusiastas vínicos do Esquadrão da Morte. Todo o Mundo, toda a História, todo Portugal está dentro deste Alentejo mortalmente dirimido mas sobrevivo na sua eterna alma.

Tal como por exemplo em Olivier Rolin, também em Rui Cardoso Martins o mundo é a casa de todos os átomos e de todos os factos, contudo a sua estratégia literária assenta numa impressionante teia de pormenores ternos e microscópicos, tão dramáticos como divertidos, que obrigam a ficção à pura verosimilhança.

Aqui talvez a ficção seja a realidade narrada pelo afecto, numa consciente vocação emocional perante os pequenos seres, humanos ou animais, fazendo jus à veia cronista ou jornalística ou teatral do autor.

E se, pelo meio de tantas histórias, enredos, casas e paisagens, nos formos perdendo atrás dos passos do Cruzeta, não nos preocupemos, Rui Cardoso Martins far-nos-á o favor de, de tempos a tempos, relembrar o início dos tempos da história, tal como os antigos faziam no relato das clássicas epopeias.  

Um enorme escritor!

 

jef, novembro 2024

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