A minha mãe sempre dizia que o bicho-homem é um bicho que sempre
viveu com medos. Muitos. Medo da trovoada, do oceano sem fim, do céu escuro da
noite, da floresta, do inverno, do sol, das feras, e por aí fora... E para
aplacá-los foi imaginando seres mais ou menos superiores que comandavam tanto os
fenómenos naturais como a sua relação com os homens e, claro, também o
respectivo catálogo dos medos. A filosofia foi evoluindo e também os
conhecimentos científicos no espaço e no tempo. E os medos foram-se reduzindo,
assim como o número de deuses. Mas como é evidente, foi ficando o grande medo, único
e tenebroso – a Morte. E como era um medo insolúvel, o homem imaginou para o
acompanhar um deus apenas. Mesmo assim, multiplicaram-se as congregações para
adorar o tal único ser (ou ente ou entidade). Nascia o monoteísmo, para nem bem
nem mal dos nossos pecados. Origem de muitas guerras. Assim, rezava a minha mãe
que obviamente era ateia.
Mas antes de nascer esse monobloco, essa mono-obsessão, cada
cultura foi-se entretendo a criar um altar de divindades à sua imagem e
semelhança. Umas mais animistas para o lado africano, outras mais imaginativas
e dolorosas para o lado da América meridional, outras pelo convívio com sucessivas
e eternas reencarnações para o lado mais oriental. Estas foram migrando até ao Egipto,
misturando-se, depois até ao mediterrâneo passando pela Grécia, por terra de
Etruscos, pelo império romano e mais além, como diria o nosso Buzz Lightyear.
Mas no imenso Norte gelado de noites sem fim, iam
estacionando criaturas gigantes, mal dispostas e muito difíceis de entender, que
comandavam as frotas dos Vikings dando o mote a parte da grande literatura
nórdica. (Vá lá a gente conceber à luz da tradição cultural católica, por
exemplo, o mundo de certos e belos romances de Selma Lagerlöf – «A Saga de
Gösta Berling», 1891, ou «Os Milagres do Anticristo», 1897).
Pois, um grande amigo emprestou-me o presente livro com as
loucas histórias das divindades e proto-divindades nascidas junto do Círculo
Polar Norte entre universos de muitos mundos, luz e trevas, gelo e fogo, serpentes
gigantes, lobos péssimos, anões habilidosos, ogres manhosos, árvores do mundo,
bodes como cavalos que sobrevivem mesmo depois de guisados, cavalos de oito pernas,
deuses que se mascaram de deusas ou se metamorfoseiam em éguas para serem
fecundadas, gigantes que vão à pesca, deusas carecas, ou deuses belos que têm
medo de pesadelos.
Claro que todos prestam relativa vassalagem ao maior, Odin,
que trocou um olho pela sabedoria. Todos têm um certo medo de Thor, o célebre Thor, filho de
Odin, grande e hirsuto, que recebeu um cinto ampliador da força e um martelo
infalível, cobiçado por todos, oferecido por anões. Mas Thor não deve grande
coisa à deusa da inteligência.
Todavia, como toda a história politeísta ou monoteísta tem de
ter um diabo ou diabrete ou mafarrico para a intriga possuir sal, pimenta, sangue, suor e lágrimas, aparece o lindo, maléfico, o ardiloso, o sedutor, Loki,
irmão de Odin. Loki, o traidor mas também por vezes salvador, tem sapatos que o
deixam voar e não há história onde ele não meta o bedelho.
Não restam dúvidas. As mitologias religiosas, politeístas ou
monoteístas, são um poço de imaginação, encantamento, horror, bondade e fantasia.
Talvez sejam mesmo a maior obra de ficção criada pelo homem.
jef, março 2025
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