sexta-feira, 30 de maio de 2025

Sobre o filme «Amor e Queijo» de Louise Courvoisier, 2024





























Como viver em França, na região de Auvergne-Rhône-Alpes, sem pais, sem pastagens nem vacas nem meios de produção e, mesmo assim, tentar produzir um queijo e propô-lo para Denominação de Origem Protegida?

Eis uma fábula sobre a adolescência, a dolorosa iniciação na vida adulta e a consequente e vatídica solidão.

Contudo, aqui é mesmo uma fábula de contornos morais onde Totone (Clément Faveau) e a sua irmã pequenina, Claire (Luna Garret), vencerão por alegria, amizade e sobrevivência, com a ajuda dos amigos, Jean-Yves (Mathis Bernard) e Francis (Dimitri Baudry), e também da suposta namorada, a indómita Marie-Lise (Maïwène Barthélemy).

Pouco importa a verosimilhança do argumento, a estratégia levada pela narrativa, aqui o que interessa mesmo é a moralidade vencedora da história e a representação sinceramente expressionista, entre a inocência, a ingenuidade e a continua transgressão, de Clément Faveau, Luna Garret e Maïwène Barthélemy.

Podemos não ficar a saber muito bem a que temperatura deve estar o leite para que bem fermente juntamente com o coalho, contudo sabe sempre bem saber que ainda há benévolos filmes sobre o crescimento e o fim da juventude.

A fotografia de Elio Balezeaux e a banda sonora composta (familiarmente) por Charles Courvoisier e Linda Courvoisier são excelentes.


jef, maio 2025

«Amor e Queijo» (Vingt Dieux) de Louise Courvoisier. Com Clément Faveau, Maïwène Barthélemy, Luna Garret, Mathis Bernard, Dimitri Baudry, Armand Sancey Richard, Lucas Marillier, Lorelei Vasseur, Damien Bilon, Jean-Marie Ganneval, Hervé Parent, Marine Pasculin, Isabelle Courageot, Mélissa Zehner, Christian Vadin, Aurélien Cavagna, Anthony Salvatori, Guy Fléchon, Fabio Lacroix. Argumento e diálogo: Louise Courvoisier e Théo Abadie. Produção: Muriel Meynard. Fotografia: Elio Balezeaux. Música: Charles Courvoisier e Linda Courvoisier. Guarda-roupa: Perrine Ritter. França, 2024, Cores, 90 min.

 

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Sobre o disco «Critterland» de Willi Carlisle, Signature Sounds 2024

 



 







Não pensei que a country desapareceu ou que a América profunda e combativa se finou no escape de um Tesla ou pendurada na gravata encarnada do outro. A mais profunda e combativa música de Willi Carlisle vem do extremo da sua terra, chamada Arkansas, trazida na bolsa marsupial dessa criatura de nome “critter”. Dentes aguçados e língua viperina, numa pata a pistola, na outra, a Bíblia, pelo meio, um bando de dólares esvoaçando.

“They think I’m a queer or a communist

But I’ll go along to get along, ‘cause it feels so right.”

Canta Willi Carlisle na canção de abertura, um hino ao amor e à liberdade de escolha. Mas não se pense que as restantes nove canções são mais hinos à capacidade de amar numa fuga directa para o interior harmonioso da natureza humana.

                           “Father forgive me for what I have done

Drove 200 miles for six inches of love

And what I called love affair

They say was a death of despair”

Canta em “When the Pills wear off”, uma prece pelo perdão ou pela redenção. Ou nessa ode à diferença “Two Headed Lamb”. Quando descobrirem a aberração do cordeiro será morto pelo fazendeiro. Por enquanto, na noite, ele está vivo, protegido pelo amor da mãe, vendo o dobro das estrelas! Ou o lamento profundo “The Arrangments”:

                              “He was dead inside my head long before he died

    It’s allright, I’m my own father now”

Terminando nessa longa expiação, um monólogo meio falado meio cantado, “The Money Grows on Trees” sobre as vicissitudes sofridas por um passador de droga.

Afinal a minha América ainda é grande. Essa minha América que confunde os acordes, a luta e a fina e amorosa linha melódica das velhas canções folk ou country (Bob Dylan, Pete Seeger, Woody Guthrie, Willie Nelson, Johnny Cash ou mesmo Gonzalez ou Don McLean).

Afinal, ainda podemos respirar de alívio. A América Vive!

(Mas não chamem a Willi Carlisle queer ou communist. Ele apenas vive, compõe e canta como bem entende!)

jef, maio de 2025

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Sobre a peça «Mamma Mia!», Campo Pequeno, 2025



 

















Confesso que sempre tive um enorme preconceito por teatros musicais famosos, apesar de gostar muito de filmes musicais, desde miúdo.

Também confesso que, por altura do Festival da Eurovisão da Canção de 1974, enquanto os Abba ganhavam com a canção “Waterloo”, a minha religião musical proibia tal inclinação infra-popular, extra-burguesa, retro-revolucionária. O meu cânon político musical seguia avidamente “Cão Raivoso” de Sérgio Godinho, “Era um redondo vocábulo” de José Afonso, “P'ró que der e vier” de Fausto Bordalo Dias ou “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” de José Mário Branco. Enfim, a revolução trazia-nos ideias, poemas e acordes distintos. Não havia espaço para cedência ou conciliação.

Mas realmente, lá dizia o Camões, mudam-se os tempos, atenuam-se os preconceitos radicais e hoje até acho alguma piada a algumas canções dos Abbas. Em 2008, renitente, guardando não tanto preconceito mas já o meu gosto musical assumido, fui ver o filme «Mamma Mia!». Por devoção ao cinema e a Meryl Streep, apostando que iria fazer um esforço grande para o ver até ao final. Contudo, a divina Meryl Streep e a realização de Phyllida Lloyd (2008) derrotaram-me em definitivo e passei também a saber trautear aquelas canções. (Repito: sempre gostei de filmes musicais). Se não os podes derrotar, junta-te a eles (e com alegria!).

Agora, e por influência de uma alma querida que não dispensa os musicais da Broadway ou do West End fui assistir ao espectáculo no Campo Pequeno, conhecendo de cor e salteada a história da lutadora empresária hoteleira Donna, de sua filha, a casadoira Sophie, e dos três pais desta, Harry, Bill e Sam. Entendo o apoio popular ancorado na simplicidade tocante da história, costurada entre as canções, a alegria festiva de uma comédia que bem podia sair das populares récitas das antigas óperas bufas ou operetas, da felicidade inscrita nas apresentações teatrais saídas da imaginação de Lorenzo da Ponte ou dos dramas vendidos pelas ruas em livrinhos de cordel.

Todo o teatro, musical ou não, popular ou erudito, tem a mesma ancestral função digamos paradoxal, fazer compreender a realidade, sublinhando-a, através da falsidade da respectiva ficção.

Um aplauso maior para a simplicidade funcional do palco. Outro aplauso para as vozes, em particular, de Ellie Kingdon e de Steph Parry.

(Por última confissão. Abbas à parte, dogmas ou preconceitos esquecidos, “Era um redondo vocábulo” continua a ser uma das canções que guardo para sempre no fundo do meu coração!)


jef, 25 de maio de 2025

«Mamma Mia». Texto: Catherine Johnson. Música: a partir das canções dos Abba (Benny Andersson e Björn Ulvaeus). Direcção: Phyllida Lloyd. Coreografia: Anthony Van Laast. Direcção Musical: Martin Koch. Produção: Mark Thompson. Com Ellie Kingdon (Sophie Sheridan), Farirayi Garaba (Ali), Freya Humberstone (Lisa), Sarah Earnshaw (Tanya), Nicky Swift (Rosie), Steph Parry (Donna Sheridan), George Maddison (Sky), Elliott Baker-Costello (Pepper), Jonathan Cordin (Eddie), Stuart Reid (Harry Bright), Bob Harms (Bill Austin), Richard Standing (Sam Carmichael). 130 minutos.

 

terça-feira, 27 de maio de 2025

Sobre o filme «O Falso Culpado» de Alfred Hitchcock, 1956



 


























Desta vez, quando Hitchcock surge ele não está escondido entre alguma multidão de figurantes. Esconde-se sim mas na contraluz e ao longe. Em nome próprio e como introdução, faz um sério aviso. Não iremos ver nada a que estávamos habituados. assistiremos a uma história verdadeira muito mais inverosímil que as suas anteriores, coloridas e espantosas ficções.

A história de um normalíssimo e pacato americano, contrabaixista numa banda de cabaret onde nunca bebeu, com uma mulher bela e extremosa, dois filhos competentíssimos, vago apostador nas corridas de cavalos, algumas dívidas contraídas para umas férias modestas ou um tratamento de dentes, mas que sempre foram ressarcidas. Christopher Emanuel Balestrero ‘Manny’ (Henry Fonda) nunca chega atrasado aos compromissos…

… excepto quando é confundido com um assaltante e os alibis a favor da inocência parecem fugir-lhe entre os dedos. O espectador sabe todo o drama e acompanha os planos directos e angustiantes sobre os seus passos, a sua figura, a sua expressão. O recolher de todas as impressões digitais é acompanhado lentamente, uma a uma, sob a música tensa e trágica de Bernard Herrmann. Acompanhamos o drama kafkiano de ‘Manny’ a par e passo até que a fragilidade emocional da sua mulher, Rose (Vera Miles), quebra por fim e passamos a acompanhar a sombra de uma culpa que ela parece assumir como expiação por supostos erros cometidos. Contudo, ‘Manny’ não desarma, não quebra, não se afasta e espera por um milagre enquanto tacteia as contas de um rosário.

A densidade espectral de cada um dos episódios deste calvário sobrepõe-se, sem a anular, à capacidade que Hitchcock tem sempre de transferir para os espectadores a tensão provocada pelo medo ou a angústia latente pela injustiça sofrida e não redimida.

Um filme sobre a culpa, a interiorização da culpa e a ausência de desculpa. Um filme que pode estar integralmente contido na magistral sequência de cenas da agressão e da imagem reflectida num espelho quebrado.

(Não sei por que carga de água lembrei-me de «O Carteirista» de Robert Bresson (1959).)


jef, maio 2025

«O Falso Culpado» (The Wrong Man) de Alfred Hitchcock. Com Henry Fonda, Vera Miles, Anthony Quayle, Harold J. Stone, Charles Cooper, John Heldabrand, Esther Minciotti, Doreen Lang, Laurinda Barrett, Norma Connolly, Nehemiah Persoff, Lola D'Annunzio, Kippy Campbell, Robert Essen, Richard Robbins, Dayton Lummis, Peggy Webber, Alfred Hitchcock. Argumento: Maxwell Anderson e Angus MacPhail, segundo a história de Maxwell Anderson. Produção: Herbert Coleman e Alfred Hitchcock. Fotografia: Robert Burks. Música: Bernard Herrmann. EUA, 1956, P/B, 105 min.

 


segunda-feira, 26 de maio de 2025

Sobre o filme «Ossos e Nomes» de Fabian Stumm, 2023

 




















Um filme a transbordar de lógica e de ternura. Aqui não há maus nem ódios, apenas o tempo que passa sobre a relação de Boris (Fabian Stumm) e Jonathan (Knut Berger), que já vai durando há oito anos. Boris é actor e estuda o papel para o novo filme, onde tem de contracenar com Tim (Magnús Mariuson). Boris entrega-se ao papel enquanto Jonathan, escritor, entre o abandono e o ciúme, revolta-se por tal entrega. Contudo, também ele se entrega ao seu romance sobre a perda, a morte e o luto duplo. Realiza entrevistas para confrontar a ficção com a realidade.

Pelo meio, existe a família de Jonathan. E também existem os planos frontais, lisos, câmara fixa ou rodando muito lentamente campo-contracampo. Também existe a arquitectura limpa, escorreita, sem rodeios, muito clara, quase branca. Dos interiores e da cidade vazia, na madrugada.

Um pormenor importante na história e fundamental em toda a vida da não ficção. Num momento em que Jonathan é entrevistado na radio sobre o seu próximo livro, sobre o medo da perda, Boris que o escuta vai, por momentos, comprar um café. Deixa de ouvir uma resposta, enquanto nós espectadores, omniscientes, ficamos esclarecidos. A verdade é truncada, o mal entendido ou a suspeita crescem.

Afinal, este filme é um prodígio lógico de ternura sobre a morte, ou sobre a sua inevitável aproximação. Muita atenção à entrevista, face a face connosco, de Heidi (Ruth Reinecke) e Michael (Ernst Stötzner), os pais de Jonathan. Ali pode estar a resposta que confirma a frase, mais tarde. No final, o que resta são apenas ossos e nomes.

podemos entendê-lo como uma comédia melancólica sobre percalços ou um drama esclarecido sobre a inevitabilidade de um certo futuro, a inevitabilidade de uma certa música (Bach, Tchaikovski, Handel, Pachelbel ...)


jef, maio 2025

«Ossos e Nomes» (Knochen und Namen) de Fabian Stumm. Com Fabian Stumm, Knut Berger, Luise Helm, Milena Dreißig, Godehard Giese, Haley Louise Jones, Magnús Mariuson, Marie-Lou Sellem, Anneke Kim Sarnau, Rainer Sellien, Ruth Reinecke, Ernst Stötzner, Lisa Marie Becker, Tanju Bilir, Tina Pfurr, Anne Haug, Doreen Fietz, Nicola Heim, Susie Meyer, Alma Meyer-Prescott, Maria Schell. Argumento: Fabian Stumm. Produção: Nicola Heim, Fabian Stumm. Fotografia: Michael Bennett. Guarda-roupa: Anna Hellmann, Marie Siekmann. Alemanha, 2023, Cores, 104 min.

domingo, 18 de maio de 2025

Sobre a exposição «Espuma, Ruído e Atonia (2020-2025)» de Paulo Romão Brás. Inaugura a 22 de Maio na Biblioteca Camões, em Lisboa











Espuma, Ruído e Atonia (2020–2025)

Paulo Romão Brás

 

O tempo e a sua estrutura.

Feita de atmosfera, a estrutura da espuma está suspensa entre a química das moléculas e as forças da respectiva física. A espuma é uma espécie de nada que se pulveriza com o tempo. Quando observada de perto, tem a sua arte. Efémera.

Existe uma frase repetida de Schopenhauer que diz que a música traduz a maior filosofia através de uma linguagem que a razão não compreende. O ruído, tal como a música, é igualmente uma ligação irracional, com uma estrutura ainda mais incompreensível, que o tempo não consegue aprisionar idiomaticamente, fazendo-o desaparecer no momento imediato.

Por outras palavras, tanto a espuma como o ruído (e a música) sofrem de acentuada atonia, de uma lassidão atómica, de uma fraqueza muscular. Não se podem esculpir, polir, agarrar e colocar sobre o aparador para que as visitas, convidadas para o jantar, possam admirar.

A arte e o seu tempo.

A obra de Paulo Romão Brás contraria essa vacuidade temporal, surgindo como se de um pêndulo a oscilar se tratasse, sistematicamente, entre a sombra que surge da profundidade da fotografia rasurada e o brilho definido pela cor solar. Os limites de um recorte planificado a duas dimensões, por uma colagem imposta pelas matérias física e digital. Penumbra e contorno, sombra e colorido, balançando com o pêndulo do relógio de parede exposto na sala.

O tempo com o seu tempo.

Kurt Schwitters, nos anos 40 do século XX, riscava já o tempo com a arte, colando figuras e letras, refazendo o abecedário da pintura, castigando a textura da própria evolução artística, hostilizando o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo. Kurt Schwitters provoca o minuto presente no seu quotidiano.

Ao contrário, «Espuma, Ruído e Atonia», apresentando 24 obras realizadas entre os anos 2020 e 2025, está bem ciente do minuto que a assiste, sublinhando-o, não o provocando. Estas obras redefinem o limite dos espaços e a sólida arquitectura das linhas de fuga que vêm de um passado assumido. Relembre-se «Coisa Perene Entre a Casa e o Crânio» (Galeria do IAC, Angra do Heroísmo, 2019), «O Ciclo Curvo das Noites» (A Morte do Artista, 2019) ou «Camera» (LP, Knok Knok, 2024).

A arte com a sua arte. A função estruturalista.

Com «Espuma, Ruído e Atonia», Paulo Romão Brás não pretende quebrar o vidro do relógio, antes convidar-nos a relembrar um tempo em que o artista e sua arte estiveram confinados epidemiologicamente, clinicamente. Um tempo em que o tempo ficou sem estrutura, parado, mas onde a função do homem como artista esteve a cargo do mundo que o envolve, por sistema. Ou seja, pela ética, ou melhor pela respectiva linguagem comum, a que se pode chamar: Estética.

Sintam-se convidados. O jantar é servido.


Biblioteca Camões, Lisboa

Inauguração: 22 de maio de 2025 (quinta-feira) - 18:30.

Patente até 20 de junho de 2025


jef, 18 de maio de 2025

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Sobre o filme «Bird» de Andrea Arnold, 2024

 


























Natureza aprisionada. No início, Bailey (Nykiya Adams) observa as aves através das grades de uma passagem para peões. Ela filma com o telemóvel tudo o que voa, gaivotas, moscas, borboletas. Depois projecta as imagens na parede riscada da sua espécie de quarto. É a sua liberdade solitária. Do outro lado da cortina, dorme o irmão, Hunter (Jason Buda). Mais à frente o pai, Bug (Barry Keoghan) com a sua noiva. Bug tem uma espécie de oportunidade de negócio com a aquisição de um sapo alucinogénio que baba quando ouve Coldplay.

Baley representa o ponto de fuga, adulto e responsável, também as linhas de convergência num horizonte tão inóspito quanto libertário. A câmara corre desesperadamente atrás da história e dos movimentos das personagens até estacionar frente à indómita perseverança de Baley. Aí parece que a respiração se sustém para poder observar os animais e observar-nos.

Bird (Franz Rogowski) aparece do nada num campo em pousio onde os cavalos pastam. Também ele desaparecerá na vacuidade do tempo, feito anjo da guarda. Ele apenas tenta descobrir uma certa origem desaparecida. Exactamente o oposto do que se passa com Baley, que vive rodeada de camadas sobrepostas de família, conhecidos, desconhecidos. Por isso, Bird e Baley se reconhecem e se amarão. Apesar de tudo, é essa a palavra certíssima a ser utilizada.

Por fim, a conclusão parece tender para a inconclusão, ou antes, para a destruição violenta final. Contudo, o que acharíamos ser um filme realista sobre a Inglaterra frugal e fatal em jeito de Ken Loach ou Mike Leigh, termina como uma fantasia (epifania) necessária para que a unidade cósmica tenha o seu ponto de fuga e a esperança na reunião familiar, as respectivas linhas de convergência!

Por tudo isso, enquanto o genérico final vai correndo sem explicações ou categorias de participação, em cada canto do bairro todos cantam (pelos Blur): “it really, really, really could happen” (‘The Universal’)

 

jef, maio 2025

«Bird» de Andrea Arnold. Com Nykiya Adams, Franz Rogowski, Barry Keoghan, Jason Buda, Frankie Box, Jasmine Jobson, James Nelson-Joyce, Jason Williamson, Sarah Beth Harber, Rhys Yates, Joanne Matthews, Kirsty J. Curtis, Calum Speed, Andrew Richard Bryant. Argumento: Andrea Arnold. Produção: Lee Groombridge, Juliette Howell, Tessa Ross. Fotografia: Robbie Ryan. Música: Burial. Guarda-roupa: Alex Bovaird. Grã-Bretanha / Dinamarca / França /EUA, 2024, Cores, 119 min.

 

terça-feira, 13 de maio de 2025

Sobre o filme «O Ano Novo Que Não Aconteceu» de Bogdan Mureşanu, 2024



 




















Afinal, na Roménia, o 25 de Abril aconteceu no dia 20 de dezembro de 1989. Eis um facto que serve de mote tenso ou conclusão alegre a todo o filme. Uma história social, política e familiar entre a nostalgia, a opressão e a esperança. Nada nos é explicado a priori e todas as diversas personagens centrais, ou núcleos familiares, surgem em simultâneo, sequencialmente e sem aviso prévio. Suspeitamos que todas estão relacionadas, porque é um filme romeno na esteira de outros vindos de décadas atrás, onde a tragédia não deixa de conter algum laivo de comicidade no interior: «12:08 A Este de Bucareste» (Corneliu Porumboiu, 2006), «A Morte do Senhor Lazarescu» (Cristi Puiu, 2005). Logo de início, enquanto a radio do carro toca uma canção, duas personagens falam em surdina de uma suposta resistência clandestina. Também falam de um recente caso de repressão violenta com vítimas em Timişoara. Uma estação pública de televisão grava o programa de final de ano mas a vedeta feminina acaba de desertar para o estrangeiro e vai ter de ser substituída sem grande espalhafato mas com um grau de ansiedade cada vez maior. Uma criança escreve ao pai Natal e pede como presente para o pai a morte do “Tio Nick”. Dois estudantes seguem de carro clandestinamente, equipados e com dinheiro, para mergulharem na fronteira do Danúbio. Um prédio será demolido mas a velha inquilina recusa-se a abandonar o apartamento. Um censor teme que o telefone esteja sob escuta, e deve vigiar as toupeiras que o regime introduziu no meio universitário.

Toda a história se encaminha para o dia certo, todos se vêem no fio da navalha. Nós acompanhamos o entrelaçar das histórias num minucioso trabalho de argumento. Começamo-nos a interessar por todos os personagens, a entender os seus dramas, a torcer por que tudo acabe rápido e os deixe em paz. Acabamos por gostar de todos.

Chega o dia da grande parada dos trabalhadores frente à varanda onde discursará o grande líder quando parece que tudo está à beira de sucumbir. Porém, nós continuamos a escutar o longo cadenciar de tercinas do Bolero de Ravel como sinal final de esperança.

É comovente a sequência final de cenas de arquivo onde a alegria popular se expande e a nossa memória recorda emocionalmente uma das primeiras revoluções na segunda metade do século XX – o 25 de Abril de 1974.

(Muita atenção à aos decores, ao guarda-roupa, à banda sonora.)

 

jef, maio 2025

«O Ano Novo Que Não Aconteceu» (Anul nou care n-a fost) de Bogdan Mureşanu. Com Adrian Vancica, Iulian Postelnicu, Emilia Dobrin, Nicoleta Hancu, Marian Adochitei, Virgil Aioanei, Afrodita Andone, Mircea Andreescu, Iulian Burciu, Florin Calbajos, Mihai Calin, Doru Catanescu, Sorin Cocis, Marius Damian, Elvira Deatcu, Ioana Flora, Ada Gales, Floriela Grapini, Manuela Harabor, Ilinca Harnut, Vlad Jipa, Mircea Lacatus. Argumento: Bogdan Mureşanu. Produção: Bogdan Mureşanu, Viorel Chesaru e Vanja Kovacevic. Fotografia: Boroka Biro e Tudor Platon. Guarda-roupa: Dana Anghel. Roménia, 2024, Cores, 103 min.

domingo, 11 de maio de 2025

Sobre o disco «Scars and Ashes» de Decline and Fall. Bleak Recordinds, 2025.


 











Podemos tomar este disco como a afirmação de um percurso desejado, amado e coeso através do princípio libertário dos Decline and Fall. Pesquisar nos arquivos do passado a eterna sustentação da criação no presente. Simples e complexo ao mesmo tempo, porque vão directamente vasculhar aos meus próprios arquivos (Ah, Joy Division! Ah The Durutti Column!) 

O futuro é simplesmente uma consequência e este LP é o futuro lógico e consequente dos dois EP, «Gloom» e «Pulse», editados pela banda em 2024. Digamos que a partir do negro que toda da luz absorve expande-se esta ópera electro-pop-punk sobre a viagem ao interior emocional de um coração que busca e se perde, mas também em torno do nosso quarto fechado – como se estivéssemos a revisitar a «Viagem à Volta do Meu Quarto» (Xavier de Maistre, 1795).

Dois actos, nove faixas, que terminam, um, com a expressa vontade do regresso a casa mesmo que todos os caminhos sejam enviesados e se dirijam a uma outra cidade, no final do lado A (“Rome”); o outro, com o belo e talvez possível reconforto no seio de um amor, no final do lado B (“Whenever Your Eyes Glow”).

Um álbum tão íntimo e obscuro quanto luminosamente sinfónico.

Ao mesmo tempo, um álbum muito fácil de entender, quase viciante.

A capa reproduz duas peças do artista plástico Paulo Romão Brás.

 jef, maio de 2025


quinta-feira, 8 de maio de 2025

Sobre o filme «Carta de Amor» de Kinuyo Tanaka, 1953


 



















Guerra, livros e cartas de amor.

O primeiro filme realizado pela actriz Kinuyo Tanaka. Não sendo possível esquecer os espaços geométricos, restritos, interiores do Japão de Yasujiro Ozu, o filme surge modernista com a exigência cénica de outros espaços, os espaços exteriores. Espaços livres e arborizados, profundidade de campo poético, um modo de colocar a intimidade do amor e da amizade sob o foco amplo do ambiente público, mesmo que esse cenário aponte para a solidão e indique a paixão reprimida, o desejo adiado, a culpa intrínseca.

A guerra terminara, o Japão perdera, a América ocupara e impusera um ritmo e um estilo de vida, para além de soldados famintos de companhia. O emprego escasseava, o dinheiro fugia mas os produtos americanos eram cobiçados: os tais soldados com dólares e modernas revistas.

Dois irmãos partilham uma casa. O melancólico Reikichi (Masayuki Mori), repatriado de guerra, faz traduções encomendadas pelo irmão Hiroshi (Juzo Dozo), um fura-vidas que compra e vende livros e não pára até conseguir um quiosque para estabelecer o seu próprio negócio. Não compreende por que é que o irmão nunca sai de casa. Este guarda no bolso uma velha carta de amor, recebida durante a mobilização e, na carteira, uma antiga fotografia de quem a enviara.

Reikichi, entre a multidão que enche as ruas e os comboios de Tóquio, procura insistente alguém. Contudo, esse alguém não surge mas nessa busca acaba por encontrar um velho amigo de infância Naoto (Jukichi Uno) que lhe propõe um estranho emprego: escrever cartas de amor em inglês aos soldados americanos que partem, pedindo-lhes dinheiro para aquelas que eles deixaram no Japão.

Entre aquelas que encomendam as cartas, surge uma voz que conta uma história que parece ser diferente, uma voz de alguém que Reikichi reconhece mas que não chega a ver de quem é.

(Ela é Michiko, a actriz Yoshiko Kuga.)

Esta é uma história sobre a condição feminina e as cicatrizes incuráveis que a guerra deixa na cultura e na vida de uma cidade. A história de uma magnífica amizade, de um amor indissolúvel. A definição da dignidade feminina, do remorso e do eterno e exigido perdão.

Se o genérico inicial mostra o deslumbramento de uma pintura fugaz sobre o papel e a escrita japonesa, as cenas finais traçam de modo peremptório a superioridade cinematográfica de Kinuyo Tanaka.


jef, março 2025

«Carta de Amor» (Koibumi) de Kinuyo Tanaka. Com Masayuki Mori, Yoshiko Kuga, Jukichi Uno, Juzo Dozo, Chieko Seki, Shizue Natsukawa, Kyoko Anzai, Yumi Takano, Kikuko Hanaoka, Harumi Kajima, Ichiro Kodama, Ryuzo Oka, Toshikazu Hara, Sayoko Ono, Chiyoko Kuni, Akiko Kamishiro, Naoko Kubo, Sanae Mitsuoka, Yôko Mihara, Yôko Fujikawa, Junko Mizuho, Teru Harumi. Argumento: Keisuke Kinoshita segundo o romance de Fumio Niwa. Produção: Ichiro Nagashima. Fotografia: Hiroshi Suzuki. Música: Ichiro Saito. Japão, 1953, P/B, 94 min.